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O espaço e o tempo educativos e os desafios em tempo de COVID 19

Irene Cortesão Costa | irenecortesao@esepf.pt

Professora adjunta, Escola Superior de Educação Paula Frassinetti

De acordo com a tradição sociológica (Durkheim, 1977), cada pessoa assume papeis diferentes de acordo com os contextos sociais em que se move, adotando também atitudes, formas de falar, de estar e até mesmo de agir, de acordo com o que os papeis que desempenha nesses contextos e com o que esses contextos esperam de si (Berger & Berger, 1977). No cenário da atual pandemia causada pela COVID 19 e consequente isolamento social, as fronteiras entre os papeis sociais, os papeis de aluno, professor, das famílias e dos profissionais ficam esbatidas, mostrando-se mesmo como dispostas a invadir o espaço umas das outras. O conceito de espaço social que, como Bourdieu (2013) afirma, se inscreve simultaneamente na objetividade das estruturas espaciais e nas estruturas subjetivas que são também o produto da incorporação dessas estruturas objetivadas, fica também com as suas fronteiras esbatidas. Quando um professor dá uma aula online a um aluno que está em sua casa, com os seus pais, no seu espaço familiar, o professor interage com o seu aluno esperando que se comporte como tal. No entanto, na mesa casa e muito provavelmente na mesma sala, está a família, que, nestas circunstâncias pode observar esta criança/jovem a comportar-se não como filho/a mas como aluno. O que os filhos sabem que os pais esperam deles enquanto assumindo o papel de filho/a, não é o papel que os professores esperam que eles/as desempenhem. E isto, claramente, faz com que os dois papeis se misturem, se esbatam fronteiras entre duas situações antes claramente distintas. Por outro lado, os professores, de certo modo, entram na intimidade dos seus alunos, deixando também que as suas aulas invadam o seu próprio espaço familiar. O professor também não é “só” professor no seu espaço familiar. Está igualmente a desempenhar um papel que, para a sua família, pode ser estranho, mesmo inesperado e também, por vezes, não compreendido.

Tudo isto mudou de forma muito rápida, de um dia para o outro. Professores e alunos, tiveram de se adaptar a esta nova realidade. Uma nova realidade em que o nosso espaço casa já não é só o “nosso” espaço de intimidade, de lazer, de descanso, da família e dos amigos. De um dia para o outro houve necessidade de partilhar este espaço íntimo,

espaço da interioridade (Bourdieu, 2013) com o espaço publico da exterioridade (Giddens, 2003, Bourdieu, 2013) que é o de trabalho.

Como afirmam Serra & Salgado,

A relação que o indivíduo estabelece com o espaço e a forma como este é apropriado, bem como as actividades desenvolvidas em cada compartimento da casa, são factores e indicadores portadores de significados, de informação e compreensão dos modos de habitar, quer actuais, quer ideais (2009, p.14).

Neste novo contexto (quase) todas as divisões da casa se tornaram possíveis salas de aula, possíveis salas para reuniões de trabalho, espaços para produção de trabalhos de grupo à distância. São espaços de trabalho, antes espaços públicos, onde as câmaras dos computadores nos deixam entrever os espaços e tempos que antes eram privados. Ficamos a antever aspetos diferentes sobre colegas, sobre os nossos alunos e eles sobre nós, sobre a nossa casa e mesmo sobre quem a partilha connosco.

Esta questão surgiu-me como muito evidente, na quarta semana de ensino à distância, quando estava a desenvolver uma atividade, que anteriormente seria realizada numa sala de aula com uma turma de 3º ano de uma licenciatura em Educação Básica. Era uma aula de apresentação de trabalhos de grupo, em que as diferentes equipas deveriam fazer a apresentação de um pré-projeto de intervenção. Os alunos utilizaram o PowerPoint, partilhando o ecrã e seguindo-se depois um momento de discussão em grande grupo sobre o que tinha sido apresentado. Nessa altura os elementos de cada grupo tinham, evidentemente, de ter as suas câmaras ligadas uma vez que estavam a discutir os seus trabalhos com colegas e professora. Numa dessas apresentações, uma das estudantes, que normalmente não tem a sua câmara ligada durante as aulas, apareceu na discussão. Estava na cozinha da sua casa e, enquanto fazia a apresentação do seu trabalho, por detrás dela a sua mãe cozinhava tranquilamente, pegando ingredientes no frigorífico, continuando a conversar com alguém que não apareceu no ecrã. O espaço da aula desta estudante estava claramente a penetrar (e invadir?) o espaço íntimo que é a cozinha de uma casa, com os preparativos de uma refeição. E isto acontecia numa situação em que ela, como aluna, estava a apresentar um trabalho, em que estava a falar, por vezes ao mesmo tempo que os seus familiares. Se a fronteira do que é o espaço/tempo que se pode/deve reservar para as crianças/jovens enquanto alunos é de complexa definição quando se está num contexto

como o que atualmente vivemos, o respeito pelo oficio do aluno (Perrenoud, 1995) e a compreensão do que é que ele significa e implica, é muito mais difícil de perceber para famílias cujo capital cultural (Bourdieu, 2010) não os aproxima das normas e valores culturais e linguísticos da instituição Escola. Isto significa também que os desafios que surgem, de facto não aparecem com a mesma dimensão para todos. Não é “só” a dificuldade de acesso aos meios tecnológicos, ao computador e à internet. Mesmo com isso assegurado, claramente o espaço/tempo de cada criança/jovem para ser estudante, a valorização deste papel e o reconhecimento da importância de respeitar estas fronteiras entre espaço/ tempo público e privado são problemas que se colocam de forma diferente para crianças e jovens. E estas são questões que nós, todos os educadores e professores, não podemos nunca ignorar.

Referências bibliográficas

Berger, P., & Berger, B. (1977). Socialização: como ser um membro da sociedade. Bourdieu, P. (2010). A distinção. Uma crítica social da faculdade do juízo. Lisboa: Edições, 70.

Bourdieu, P. (2013). Espaço físico, espaço social e espaço físico apropriado. Estudos avançados, 27(79), 133-144.

Durkheim, É. (1977). A divisão do trabalho social, vol. I. Lisboa, Presença.

Giddens, A. (2003). A Constituição da Sociedade. ed. Martin Fontes. Rio de Janeiro. Perrenoud, P. (1995). Sentido do trabalho e trabalho do sentido na escola. Ofício de Aluno e Sentido do Trabalho Escolar. Organizado por Maria Teresa Estrela e Albano Estrela. Porto/Portugal: Porto Editora, 188-198.

Serra, A., & Salvado, M. (2009). Espaço Doméstico: Contributos para uma leitura integrada de Habitat. In Actas dos Atelieres do V Congresso Português de Sociologia.