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Isabel Lage | i.c.lage@gmail.com

Professora do Ensino Secundário

Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora; E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,

Que nunca é o que se vê quando se abre a janela. Fernando Pessoa

Tomamos o pequeno almoço na cozinha, cumprindo o ritual destes dias de confinamento. O Simão, ainda de pijama, mas já agarrado ao seu smartphone, vocifera que os colegas afirmam que a “stora” de Português pediu para mandar o TPC.

– E tu porque não mandaste? – inquiri, intuindo a resposta.

– Não sabia que era para mandar – apressou-se a explicar. – NÃO SA-BI-A MÃE! – reforçou estridentemente ao mesmo tempo que, arrastando o banco para trás, se levantava e, sempre a teclar, saía da cozinha. E assim, fiquei com a certeza de que ele não tinha feito o trabalho e que alguém já lhe enviava uma cópia.

Ao meu lado, a Laura acabava a sua torrada, em silêncio e sem fazer migalhas. Reparo que combinou a cor dos brincos com a camisa que trazia vestida e que tinha escovado meticulosamente o seu cabelo liso até que nenhum fio ficasse fora do sítio.

Estas semanas de quarentena parecem realçar as diferenças entre os meus filhos. A proximidade a que estamos obrigados amplificou (se é que isso é possível) o meu sentimento de proteção, apetecendo-me cercá-los com um escudo blindado que nenhum vírus ousará ultrapassar. Tento não demonstrar a minha apreensão, ostentando uma normalidade que pretende ajudar a marcar o ritmo das rotinas de um dia a dia que me nego a encarar como um tempo de espera ou de mera sobrevivência. Porque o(s) mundo(s) não para(m), ele(s) prossegue(m) por outros caminhos que desenham trajetórias menos previsíveis e que, por isso, nos causam mais estranheza. A vida do Simão, da Laura, assim como de todos os meus alunos continua como um carreiro de água que, quando encontra um obstáculo, insiste em fluir contornando-o conforme o relevo.

A Laura interrompe o meu pensamento e, sempre económica de palavras, informa que vai para as aulas. Desta vez, não veste o casaco nem pega na mochila preparada de

véspera. Hoje, como tem acontecido nos últimos dias, vai para o seu quarto e liga o computador.

Acabo de arrumar a cozinha, enquanto reparo num melro a espreitar na janela (não existiam melros nesta zona da cidade), e também eu vou preparar-me para começar a trabalhar.

Pelo corredor não deixo de ficar espantada com a vida que vem do quarto do rapaz, que continua a rir e a falar com outros colegas que, tal como ele, alteram constantemente a frequência da voz denunciando a sua idade. O Simão já vestiu uma T- shirt, mas não tirou as calças do pijama, está completamente despenteado e inclinado na cadeira em frente do computador onde a professora já tinha iniciado a aula. Mas não era a ela que ouvia.

Separado pela linha do corredor, outra porta entreaberta, o silêncio. A Laura fixava o ecrã, com a expressão de preocupação que a carateriza. A cada frase recebida pelos auscultadores alterava o desenho dos seus olhos e endurecia a linha dos seus lábios, revelando uma forma estranha de sofrimento própria dos perfecionistas.

Senti uma tontura, o meu coração a bater mais forte e uma vontade de entrar no mundo dele, para lhe apertar as regras, e no dela, para lhe aliviar a tensão. Mas, vencida pela memória de atuações mil vezes repetidas, decido continuar para a minha sala de aula duas portas mais à frente.

Sentada à mesa, ligo o ProBook, introduzo a password, procuro os ficheiros no OneNote, preparo o PowerPoint e entro no Teams. O ecrã começa avidamente a abrir pequenas janelas de onde saltam, uma a uma, algumas faces, ainda embaciadas, que arrastam uns “bons dias” entorpecidos - ecoam em mim as palavras do poeta: “Não basta abrir a janela para ver os campos e o rio”.

Embora o computador já tenha sinalizado a presença de todos, insisto em fazer a chamada, aproveitando esta oportunidade para trocar uma palavra com estes rostos que, assim, vão tomando forma, redesenhando as feições, agora um pouco mais nítidas e emolduradas por janelas que se vão tornando maiores. É um encontro fugaz, rápido e aparentemente simples, protegido por uma tela, mas que sinto difícil para certos alunos que aqui verbalizam as poucas palavras que enunciarão ao longo do dia. Para alguns, estes momentos (de quase intimidade) denunciam uma solidão oculta em palavras

ensaiadas, que creem projetar a sua imagem idealizada, mas que mais não são do que expressões da sua vulnerabilidade.

Forço-me a ser breve, pois reduzido é também o tempo de que disponho. Revejo a lista de tarefas e salto para um sintético feedback dos trabalhos em grupo que me enviaram na véspera e sobre os quais vou pedindo comentários.

A Inês, aparentando um grande à vontade, vai defendendo o seu trabalho. Com treinada segurança e demasiados okays ela explica cada uma das opções que tomou (diz tomou e não tomamos), aproximando-se demasiado da câmara, revela uma maquilhagem subtil e um cabelo ainda não totalmente seco a limitar um rosto que alterna de expressão com demasiada frequência.

Quero falar com o Mário que faz parte do mesmo grupo. Contrariamente à colega, a sua imagem surge muito afastada, escondido atrás dos óculos que ensombrecem o seu rosto. Quando liga o microfone ouvem-se outras vozes. O Mário, monossilábico, explica que o irmão está a ter aulas mesmo ali ao lado, pois só há bom sinal de internet na sala. Desvalorizando a situação, solicito que esclareça um aspeto do trabalho. Acena ligeiramente com a cabeça, não percebo a sua expressão pelo que coloco a imagem em ecrã inteiro descortinando um rosto tenso que olha ligeiramente para o lado, para a continuidade do braço – onde presumo que tenha como extensão um telemóvel por onde comunica com os colegas. Atrás de si duas paredes unem-se, está num canto da sala. Tenho a sensação que à medida que o tempo passa e o silêncio se apodera do momento, a imagem se deforma e as paredes se afastam da pessoa que se torna cada vez mais pequena. Quando o Mário finalmente responde, a imagem volta instantaneamente ao normal – terei sonhado? Tento ser positiva e pôr de lado a quase certeza de que a resposta saltou do telemóvel. Incito-o a continuar a explicação, que lá vai correndo entre frases curtas e momentos de silêncio em que retorna aos seus pensamentos – e mais uma vez me parece ouvir: “Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores”.

Continuo para outro trabalho e outro grupo, tentando criar vínculos, procurando o sentido desta realidade fragmentada, na busca obstinada de uma unidade perdida. Em cada participação encontro um mundo novo, mais ou menos distante, mais ou menos oculto, mas sempre repleto de significados. Apetece-me ficar assim, retida nos olhares, perdida em conversas sobre assuntos que já têm vida própria. Porém, a

miragem de um exame, de contornos pouco claros e assimétricos, faz-me enveredar por uma apresentação em PowerPoint que conclui ontem, já tarde, esperando não encontrar lapsos provocados pelo cansaço. Penso novamente, se não devia utilizar as apresentações pronto-a-vestir que as editoras nos mandam, pois constato que a erosão de criar novos materiais todos os dias começa a provocar algum desgaste. Conforme falo sinto-me amputada, uma vez que o gesto não acompanha a palavra, nem a emoção acompanha o gesto. Vou dirigindo perguntas enquanto tento adivinhar as expressões de cada um, agora ocultas pelo slide que a partilha de ecrã não me deixa vislumbrar. Nem todos respondem logo. Será que estão com problemas na internet? Ou não estão a ouvir (como o Simão)? Será que temem responder (como a Laura)? Na minha cabeça já misturo as preocupações.

Forço-me a desviar o olhar da moldura sobre a mesa que enquadra uma fotografia de duas crianças sentadas na praia, e volto a focar o ecrã enquanto dou por terminada a sessão de hoje. Recomendo uma pesquisa para a próxima aula, apontando dois sites mais adequados na tentativa de encurtar o tempo dedicado aos trabalhos de casa, como vejo acontecer com os meus filhos que parecem cravados ao PC muito para além das aulas.

Desvio mais uma vez o olhar da moldura com a foto, que agora confundo com uma janela aberta no computador.

Volto a ver as imagens dos alunos enquanto se despedem e as suas janelas virtuais se vão fechando em mim. Alguns são mais demorados, ficando para o fim e revelando um pouco para além de si. Vejo um poster na parede, uma estante em desalinho, uma porta de vidro com um reflexo de um vulto, alguém sentado… quantas pessoas estiveram hoje na minha sala de aula?

Desligo também eu a sessão, apercebendo-me que mantenho os lábios demasiado apertados. Dou por mim a pensar o que fica desta realidade demasiado superficial, demasiado rápida e demasiado distante.

Do corredor chegam risos de um lado e, do outro, o silêncio.

Tento separar os membros desta equação que afinal é única e decido, definitivamente, mudar de sítio a moldura com a imagem de duas crianças sentadas na praia.