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A urgência da escola num ecrã e a aproximação ao essencial em educação É possível percorrer

Anabela Sousa | sousanabela@gmail.com

Professora do Ensino Secundário, Agrupamento de Escolas n.º3 de Rio Tinto

A primeira temporada da série inicia sem publicidade ou divulgação. Nos écrans de vários equipamentos a escola, as escolas, constroem uma narrativa alternativa. Os primeiros episódios surgem sem guião estabelecido, e a personagem central procura sobreviver e adaptar-se num contexto diferente do qual aprendeu a agir, declarando, a cada instante, estar on.

O exercício tantas vezes ensaiado de pensar o futuro da escola, certamente não arriscaria uma mudança tão drástica, repentina e sem qualquer preparação. Ainda assim, dos três cenários de evolução dos sistemas de ensino propostos por António Nóvoa (2009: 4), o que se alicerça na importância das novas tecnologias emerge como inevitável no atual contexto de pandemia: “A educação pode acontecer em qualquer lugar e a qualquer hora, tendo como referência professores reais ou virtuais”. Este cenário imagina formas de ação totalmente distintas das conhecidas até aí: escolas passam a ser plataformas digitais de aprendizagem, disponíveis 24 horas por dia, todos os dias; estratégias e ferramentas interativas promotoras da individualização do ensino e de percursos de aprendizagem diferenciados.

A condição de necessidade extrema sempre foi motivação para transformações que permitissem a continuidade. Aos muitos sentimentos associados a tal condição de excecionalidade respondem, como refere António Damásio (2017:238) “o conhecimento, a razão e a imaginação, ou seja, a inteligência criadora”. É também assim que os diversos atores e autores da escola têm respondido. Ainda que sem tempo de reflexão, porque a ação (pedagógica) é sempre prioritária em tempos de crise, a escola à qual foi imposto o encerramento abriu-se, revelando e clarificando muito do que a “caixa negra” guardava em si.

Sem tempo e com muitos meios (diferentes), o trabalho educativo organiza-se em torno do que é essencial à sua nova condição de se manter on. Esta sala de aula que passa a estar no ecrã do computador, do telemóvel, da televisão parece focada no essencial da sua função, garantir situações de aprendizagem a todos. Ao longo do

tempo, porque, em muitos locais do mundo, a escola se havia afastado dessa condição de sobrevivência, muitas outras foram as funções que lhe foram sendo atribuídas, matizando esta sua essencialidade.

Numa luta que foi assumida como “de todos”, rapidamente se estabeleceram comunidades de cooperação para enfrentar as novidades do contexto a distância. Centenas de partilhas, horas de pesquisa, formações rápidas e à medida permitiram continuar essa aventura de encontrar novas soluções. Um mundo de oportunidades de melhorar as aprendizagens, de desenvolver competências que o espaço e tempo limitados e espartilhados no horário não permitiam. O ensino tem então, a oportunidade de se tornar no acompanhamento próximo, ainda que a distância e mediado por diversas ferramentas, das aprendizagens e da evolução de cada aluno. Talvez nunca, na história mais recente do ensino, se tenham planificado tantas atividades com o propósito de proporcionar a aprendizagem. Muitos professores saíram do palco, deixaram de ensinar e construíram guiões que permitiam aprender, que permitiam orientar e guiar o percurso de cada aluno. As oportunidades de uma avaliação ao serviço das aprendizagens foram muito amplificadas pelos “convites” ao feedback individual e à criação de rubricas de avaliação nas diversas plataformas digitais. A avaliação tradicional do teste é colocada em causa pelas novas condições de pandemia, que sugere outras formas de pensar o modo de classificar e certificar as aprendizagens. O aluno passa a ser o centro de todos os guiões da escola. Só assim a escola continuaria on. Alguns dos episódios desta saga tornam-se, assim, inspiradores para a mudança de outros.

O contágio do qual que se protege através do ecrã, coloca a escola e os professores na condição de maior abertura ao exterior de que há memória. As aulas são seguidas pelas famílias que pela primeira têm a possibilidade de contactar/ver todos os professores, conhecem os seus modos de trabalhar e entendem (?) os desafios da aprendizagem.

Mas há também novas soluções para problemas (antigos) com que a escola sempre se deparou? A insistência da transposição de modelos escolares tradicionais dos países mais desenvolvidos para esta condição de sobrevivência, pela natural seleção realizada pelas condições do meio, não resistiria. E não, a escola não chega a todos. O afastamento físico não resolve e pode até agravar as desigualdades e colocar mais

constrangimentos à equidade. Todos os que se mantêm ligados a esta nova escola não têm oportunidades idênticas, alguns estão apenas em modo stand by, outros não têm as competências individuais e familiares que permitam dar continuidade à tarefa da escola. Ainda mais quando, quase sem perceber, a escola se aproxima desse outro cenário possível, identificado por Nóvoa, do regresso a formas de educação familiar. Está também a abrir-se este outro caminho, muito facilitado com a disponibilização de tantas ferramentas para famílias pedagogicamente bem apetrechadas. A urgência em avançar e a pressa de arranjar respostas traz riscos associados.

Seria ingénuo, da parte do guionista, não dar conta das dimensões que tendem a despertar maior interesse em séries que se adivinham com mais temporadas. As tensões latentes em discursos políticos de aparente consenso, as prioridades insinuadas ou declaradas nas medidas implementadas, a ausência ruidosa de alguns temas, são também essenciais para a construção deste momento da escola. Entre um discurso normativo que declara a prioridade de uma avaliação formativa, as escolas (as outras, as confinadas ao seu espaço físico) organizam-se para garantir condições para resposta(s) aos exames nacionais, priorizando, para além do discurso, as aprendizagens que são alvo de testagem externa, acentuando as implicações reconhecidas no desenvolvimento do currículo. Esta emergência do regresso às condições presenciais do ensino revela a desconfiança no sistema criativo construído para realizar aprendizagens à prova de exame nacional e não dá alternativas aos que não pretendem contribuir para a disseminação de um vírus, ou aos que têm medo. Neste regime de excecionalidade de condições de acesso ao Ensino Superior há renovados e mais intensificados “medos”, que significam tão só condições distintas de (im)possibilidades de escolha. Ressurgindo também, por esta via, o outro cenário hipotético colocado por Nóvoa (2009) alicerçado na definição da educação como “bem privado”. Limitando-se o Estado a criar e divulgar indicadores de qualidade das escolas, permitindo uma escolha pelas famílias e financiando os mais desfavorecidos.

Entre os diversos cenários, e as múltiplas possibilidades híbridas de evolução da atual escola no ecrã, esta situação poderá constituir-se como uma oportunidade de (re)construir uma escola centrada na sua função essencial, centrada na aprendizagem. Não se trata retomar lógicas programas mínimos, ou as tendências do back to basics, mas antes colocar como preocupação principal a aprendizagem, em todas as suas

dimensões, do saber, do saber-fazer, do questionar e do criar. Nesta perspetiva, é essencial assegurar que “que todas as crianças adquirem uma base comum de conhecimentos” e não considerar “o insucesso e o fracasso como fatalidades impossíveis de combater” (Nóvoa, 2009: 12). Uma escola em que cada aluno concretize aprendizagens verdadeiramente significativas e, nesse processo atribua um sentido à escola.

A escola apenas on ecrã, crê-se, não substituirá nos tempos mais próximos a experiência da partilha e da construção do saber mediada pela relação pedagógica, pela palavra olhos nos olhos, e pelo sentimento de pertença a uma comunidade que partilha objetivos. Mas, num tempo que se afasta da convencional ordem dos processos rotineiros em que vivíamos imersos sem a questionar, devemos assumir a perspetiva de Damásio (2017: 332) “devemos estar abertos e atentos quando decidimos abordar o desconhecido”.

Referências bibliográficas

Damásio, António (2017). A estranha ordem das coisas. A vida, os sentimentos e as culturas humanas. Lisboa: Círculo de Leitores.

Nóvoa, António (2009). Educação 2021: Para uma história do futuro António Nóvoa. Consultado em 13/05/2020. Disponível em http://hdl.handle.net/10451/670.