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Pedro Jesus | pedro.jesus@csdoroteia.info

Professor do Colégio de Santa Doroteia e Doutorando de Ciências da Educação na Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica Portuguesa

maio de 2020

São frequentes os relatos, provenientes de diversos contextos educativos, das transformações nos respetivos modelos de ensino, que permitiram muito rapidamente passar do ensino presencial ao ensino a distância. Normalmente, são relatos de sucesso e satisfação por se ter encontrado, num curtíssimo espaço de tempo, um novo modelo de funcionamento. O sentido de urgência nessas mudanças parece ter sido compreendido e aceite pelas comunidades educativas, que terão reconhecido os esforços de uma transformação rápida e eficiente. Há, certamente, muitos motivos de contentamento. Algumas oportunidades de alteração dos elementos da gramática escolar tornaram-se, inesperadamente, uma realidade. Algo tão difícil de renovar como, por exemplo, a lógica de construção dos horários letivos, subitamente perdeu o seu caráter de imutabilidade. Mas estamos perante uma mudança (mais ou menos) generalizada nos modos de pensar e nas lógicas de ação em educação?

Ao fim de uns dias de confinamento acabaram-se-me os cadernos. Ou melhor, deixei de ter folhas livres onde listar tarefas, escrever, organizar ideias. Decidi, por isso, fazer a compra online do caderno habitual. Passado uns dias foi-me entregue um caderno, mas não o que eu pensava ter comprado. Chegou-me a casa um moleskine de bolso. Este desencontro entre o que comprei e o que queria ter comprado serve aqui como representação análoga de outros desencontros possíveis do tempo escolar que vivemos. O olhar desatento que não valorizou a diferença entre comprar online e comprar na papelaria pode ajudar a iluminar e, porventura, a compreender outras divergências entre o que está a acontecer e o que pensamos ou gostaríamos que estivesse.

Quando e se os professores entenderem

Nos últimos dias da pausa letiva da Páscoa, a minha filha mais velha, que se encontra a frequentar o ensino profissional artístico-especializado no correspondente

ao 11º ano, recebeu indicações por email sobre o funcionamento do ensino a distância no 3º período. Teria uma aula síncrona no início da manhã do primeiro dia de aulas. À hora marcada, ela e os colegas entraram na sala virtual para poder participar na aula. Qual não foi o seu espanto, o professor que a lecionaria não compareceu. Tentando perceber o que teria acontecido, os alunos procuraram uma explicação junto do diretor de turma, que veio através da resposta: “as aulas síncronas acontecerão, de acordo com o horário, mas apenas quando e se os professores entenderem”.

O cumprimento das tarefas

Um amigo descreveu-me, há umas semanas, ter participado numa reunião de professores em que se discutiu, durante grande parte do tempo, formas de controlo e registo do incumprimento de tarefas por parte dos alunos e consequente comunicação aos encarregados de educação. E expressava algum desconsolo por não ter ainda discutido também: o que ensinar e para quê? com que ações? como chegar mais aos alunos, a todos os alunos, e motivá-los?

Gostaríamos de trabalhar a pares

Andou a circular pelas redes sociais uma imagem de um computador com a inscrição em francês “Ceci n’est pas une école”. Considerei irresistível utilizá-la como provocação numa conversa com os alunos da minha direção de turma, a frequentar o 7º ano. Apoiado na ideia “isto não é uma escola”, questionei o que poderíamos fazer para poder afirmar: “mas nós somos”. A partir daí, os alunos partilharam o que desejariam que este tempo escolar lhes proporcionasse. Expressaram de modo quase generalizado o desejo de realização de trabalhos a pares e de ocorrência de algumas aulas interativas, com recurso a aplicações que permitissem reunir, em tempo real, as realizações de uns e outros. E lamentaram isso não estar a acontecer.

Receio que esteja a baixar o nível de exigência

Procurou-me há dias um encarregado de educação e partilhou a dificuldade que sente, no atual contexto, de acompanhar a progressão das aprendizagens do seu filho. Manifestou ainda algum receio de que o nível de exigência do colégio esteja a baixar: a maioria dos seus amigos tem os filhos noutros colégios cujas aulas decorrem todas no

horário antigo, sendo todas as aulas síncronas. E pediu ajuda para compreender o que se está a passar.

Recuperar o tempo perdido

Em mais do que uma ocasião, de mais do que uma pessoa ouvi a ideia que no próximo ano letivo se iria “recuperar o tempo perdido”. Sem querer esvaziar os múltiplos sentidos que a expressão pode comportar, até porque o atual contexto social e educativo é substancialmente diferente do que sempre tivemos, senti sempre algum desconforto quando a escutei. Questiono-me se, no fundo, se acredita pouco nas aprendizagens que se podem fazer nesta altura e se não pode estar a crescer uma espécie de fome que conduza, na retoma do presencial, a um reforço do que ficou para trás e do modo como sempre se fez.

A urgência de uma mudança em andamento no modelo de ensino gerou, naturalmente, múltiplas respostas coletivas e individuais, e originou diferentes representações e expectativas. Estes episódios curtos parecem relatar mal-entendidos, incompreensões, olhares divergentes sobre o momento que vivemos e sobre o que ele pode trazer. De certa forma, desvendam também alguns riscos e oportunidades. Riscos:

- as desigualdades no acesso e fruição de uma educação de qualidade, que parecem ficar mais a nu: as originadas pela condição social dos alunos, mas também as desigualdades entre escolas, lideranças pedagógicas e professores tornam-se mais visíveis;

- a tendência a reproduzir, individual e coletivamente, o modo de pensar e agir próprio do modelo escolar dito tradicional, afinal de contas a nossa “língua materna”, expresso, por exemplo, na insistência em preocupações de controlo burocrático, algumas com sentido, outras talvez sem tanto;

- o “estacionamento” no ensino remoto de emergência6, sem desenvolver aprendizagens individuais e coletivas do ensino-aprendizagem online e sem as capitalizar na preparação de um novo modelo presencial, mais eficaz na promoção das aprendizagens de todos os alunos;

- uma maior invisibilidade dos alunos, ou pelo menos de alguns, habituados de há muito a ter pouco a dizer sobre a sua escola;

- a ausência ou diminuição da comunicação com as famílias, que conduza a uma quebra na compreensão dos caminhos pedagógicos que estão a ser percorridos e das dificuldades que estão a ser experimentadas.

Oportunidades:

- a desconstrução da imagem dos alunos enquanto massa e a emergência da pessoa do aluno - estranhamente, a distância, aliada a novas formas de comunicação, parece potenciar interações personalizadas;

- o desenvolvimento efetivo da autonomia e autorregulação das aprendizagens; - a capacitação docente na utilização de metodologias ativas, apoiadas por recursos digitais, e de novas formas de avaliação de aprendizagens;

- a facilidade de promoção de formas de participação na vida escolar (de alunos, professores, pais), e de partilha e disseminação de aprendizagens importantes que estejam a ser feitas e possam ser alargadas;

- uma maior flexibilidade na organização dos tempos e do agrupamento dos alunos, que favoreça a aprendizagem institucional e permita “recuperar tanto tempo perdido” neste campo.

Não devemos estar perante a alvorada de um novo sistema educativo como alguns anunciam, mas “ensinar e aprender em tempo de COVID19” abre, inesperadamente, algumas janelas de oportunidade que seria uma lástima não rentabilizar em projetos

educativos que procurem, constantemente, a melhoria gradual da escola, ou seja, da vida dos seus membros.

Quanto a mim, quando precisar de novo caderno, comprarei exclusivamente um moleskine de bolso? Provavelmente não. Mas, entretanto, aprendi que consigo dele resultados inesperados quando o utilizo com outra orientação. E poderei levá-lo, mesmo, para todo o lado!

figura 1 - o moleskine de bolso (fotografia do autor)