• Nenhum resultado encontrado

A Intermitência dos tempos que correm

Hélder Filipe Silva Martins | heldermartins@ribadouro.com

Externato Ribadouro/Colégio da Trofa.

No dia seguinte ninguém morreu. O facto, por absolutamente contrário às normas da vida, causou nos espíritos uma perturbação enorme, efeito em todos os aspectos justificado, basta que nos lembremos de que não havia notícia nos quarenta volumes da história universal, nem ao menos um caso para amostra, de ter alguma vez ocorrido fenómeno semelhante, passar-se um dia completo, com todas as suas pródigas vinte e quatro horas, contadas entre diurnas e noturnas, matutinas e vespertinas, sem que tivesse sucedido um falecimento por doença, uma queda mortal, um suicídio levado a bom fim, nada de nada, pela palavra nada.

José Saramago, As Intermitências da Morte, 2005

Contrariamente à Morte saramagiana, que cessou funções ao apaixonar-se, a Morte quotidiana, de um dia para o outro, decidiu assinar contrato sem termo com uma entidade acelular, desprovida de metabolismo próprio e com um apetite voraz por hospedeiros humanos.

A alma lusitana, salgada pelo terror vivenciado nas mais diversas civilizações, recolheu à recôndita e escudada caverna familiar. Fecharam centros comerciais, restaurantes, bares, estádios, museus, igrejas, empresas e escolas. As gargalhadas, o tilintar dos copos aquando dos brindes, os hinos comemorativos das claques e as contemplações religiosas deram lugar a uma sonoridade timbrada pela mortalidade matemática e pelo chilrear inaugural de uma primavera diferente.

Assisti, atónito, à desertificação crescente daqueles que considerava serem

habitats seguros – as escolas onde trabalho foram, igualmente, despojadas de gente e

o ímpeto de conservar os seus pulsares levaram-nos a colocar nas malas os materiais necessários para que se evitasse a instalação de outros não lugares. Do trabalho colaborativo entre Lideranças de topo, intermédias e Professores nasceu um esquema

de ensino a distância e, ao terceiro dia de exílio, através de uma plataforma digital,

desconhecida pela maioria, deu-se início a um outro tempo de ensino e de aprendizagem.

As ciberescolas abriram as suas portas e o cruzamento entre alunos nativos digitais e professores cyborgs materializou uma inovação tecnológica que trouxe fôlego, entusiasmo e novos ritos – liga e desliga microfone; partilha ou não partilha ambiente

de trabalho; aciona ou bloqueia câmara. Os hotspots de internet preservaram os fios de uma rede capaz de sustentar o peso do término do segundo período. As nossas escolas, organizações aprendentes, reinventaram-se e em contexto pandémico foram capazes de otimizar procedimentos avaliativos e de cumprir a sua função certificadora.

A interrupção letiva da Páscoa converteu-se num tempo de dormência e os pães ázimos em símbolo de êxodo desta estranha forma de viver.

Ultrapassada a vibração tecnológica, o terceiro período solicitou um aprimorar ao nível da gestão dos tempos, de modo a equilibrar a componente síncrona e assíncrona da modalidade de trabalho a distância selecionada. Trouxe, também, a necessidade de um olhar atento e reflexivo em torno das práticas pedagógicas. Mudaram os ambientes, que de espaços privados passaram a praça pública, e as condições de aprendizagem, pois o universo digital disponibiliza, in loco, um manancial de informação. Contudo, não se alterou significativamente o modelo pedagógico. A aula continuou dominada pela exposição dialogada, quando metodologias ativas como a aprendizagem baseada em projetos, a aprendizagem baseada na resolução de problemas, a instrução em pares, entre outras, ao colocarem a tónica no aluno construtor de conhecimentos e no professor orquestrador de aprendizagens se coadunam mais com os ofícios desejáveis para o aluno e para o professor do século XXI.

Muitos são os fatores que contribuem para esta cristalização das práticas pedagógicas, destacando-se, na minha perspetiva, a rendição ao upgrade tecnológico, que atesta que a inovação pedagógica não se esgota na instrumentalização digital; a cegueira do cumprimento dos extensos programas enciclopedistas, que subalternizam as estratégias de ensino-aprendizagem, enquanto caminhos para alcançar os conteúdos; a pressão de performatividade, pois a passagem das salas de aula de jardins secretos para mundos sem fronteiras expõem o professor ao escrutínio de um Outro que, globalmente, considera o professor-mestre como o modelo a seguir e o monopólio das provas externas estandardizadas, que contribuem para a inculcação de um mimetismo e afunilamento curriculares e para a reificação de uma lógica dominante de reprodução e de recuperação de conteúdos.

A mudança desejada(?) nos modos de trabalho exigiria uma alteração nos modos de avaliar, com soberania das práticas de avaliação formativa, mediante recurso a um

potenciador de aprendizagens significativas e implementação de estratégias de autorregulação/metacognitivas. Se possuo dúvidas quanto à força do ensino a distância na desmistificação da maior fiabilidade atribuída aos instrumentos de avaliação de pendor sumativo, reconheço na revolução digital subjacente uma oportunidade para a melhoria da recolha de dados, ao serviço de uma avaliação eminentemente processual e para uma gestão mais equilibrada do tempo necessário para a sua operacionalização. A nível micro, no que respeita à minha experiência em contexto de sala de aula, saliento pela negativa, a incerteza associada à realização das tarefas pelo aluno, a dificuldade na leitura da linguagem não verbal e o dilema permanente entre a exposição de novas temáticas, mediante o discurso dominante do professor, e as aprendizagens sólidas e lentas protagonizadas pelo aluno. Pela positiva, destaco a maior diversificação de estratégias de ensino-aprendizagem, em particular a possibilidade de uma maior utilização da estratégia da gamificação e da prática da integração de conhecimentos pela coadjuvação com colegas de outras áreas disciplinares, a construção de portfolios digitais e a economia de tempo na recolha de evidências para a verificação das aprendizagens

A nível pessoal, sinto que vivi esta quarentena no limbo entre a prisão domiciliária e a liberdade condicional. Fui coordenador, professor, pai e marido. Tudo no mesmo espaço e às vezes em simultâneo. Percebo, por isso, a dificuldade experienciada por muitos profissionais de ensino, assim como a tendência para a vinculação a um modelo pedagógico mais tradicionalista, pois o controlo traz, muitas vezes, segurança, sobretudo em tempos de grandes intermitências.

O futuro, esse, é incerto, continua envolto em nevoeiro. O otimismo diz-me que o ser humano jamais se vergará à doença e espero que, de um modo análogo ao romance de Saramago, surja o dia em que mais ninguém morra de COVID.

12. O ensino e a aprendizagem em tempos de COVID-19 à luz da teoria da ação