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A transexualidade tida como uma patologia

81 2.3.3 As sexualidades e seus reflexos corporais nas várias fases da vida humana: algumas

3 A NOMENCLATURA JURÍDICA A RESPEITO DAS SEXUALIDADES HUMANAS NA ATUALIDADE

3.3 O CONCEITO DE TRANSEXUALIDADE E SUA RELAÇÃO COM O DIREITO

3.4.1 A transexualidade tida como uma patologia

O sistema jurídico trata a transexualidade como uma patologia. A patologização da

277 Interposta pela Procuradoria Geral da República, protocolada em 21 de julho de 2009, assinada por Deborah Macedo

Duprat de Britto Pereira. O objetivo da ADI, ainda sem decisão final, é dar interpretação, conforme a CR, ao artigo 58, da Lei n. 6.015/73, levando-se em consideração a redação modificativa da Lei n. 9.708/98, para que as pessoas transexuais possam modificar o prenome e o sexo (nos anais dos circunlóquios do direito registral) sem a

necessidade axial de uma cirurgia de transgenitalização.

278 Segundo Berenice Bento (2008, p. 119-126), no livro O que é transexualidade, inúmeros países - Espanha,

Inglaterra, Itália - já combinam normas a respeito do assunto. No entanto, redesignar o sexo calca o discurso no binarismo sexual - homem/masculino e mulher /feminino - , completamente equivocado do ponto de vista de uma construção social da sexualidade humana. Além disso, nem todo corpo humano modificado em/na vida pode - e deve - ser classificado como pertencente a um dos lados. Assim, pode acontecer de um ser humano não querer classificar- se nem como homem/masculino tampouco como mulher/feminino. No entanto, não há norma no Brasil que fulcre tal empreitada.

transexualidade acaba levando as pessoas transexuais ao tratamento médico. No entanto, é um direito elencado na CR o direito ao acesso à saúde - art. 6º., caput. Assim o discurso no qual indica ser a patologização uma coisa boa e útil ao transexual por conta de sua inclusão na seara medicamentosa é um completo logro. Afinal de contas, todos já estão inseridos nos cuidados da saúde no Brasil - o sistema é único e universal - , leia-se o Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro.

Desta forma, mesmo a transexualidade não sendo uma doença, o SUS deve cuidar das pessoas, tendo doenças ou não. Somente no sentido de ratificar o quanto dito, a gravidez não é uma doença, porém está sob o pálio do SUS brasileiro. Dessarte, o correto será o patrocínio do SUS a todos os seres humanos necessitados, por quaisquer motivos, de ajuda por conta de uma vulnerabilidade concernente ao corpo, seja ela qual for. Por outro lado, mesmo não havendo uma vulneração direta aos indivíduos, o SUS deverá – como política de Estado - fomentar a saúde prevenindo possíveis doenças, como acontece na aplicação das vacinas.

A patologização da transexualidade vive nas amarras de um conceito equivocado do sexo binário calcado na biologização das identidades de gênero e dos papéis sociais em derredor das questões generificadas. A afirmação da doença como um sinônimo do fenômeno transexual causa trauma e sofrimento a quem se vê em um posicionamento não linearmente elencado, no que tange à própria sexualidade - determinada e marcada em tempos remotos na vida da pessoa.

Por outro lado, em uma visão mais técnico-jurídica o decisor de uma medida precisa de arrimo – fundamentação - para basear a própria afirmação em um sentido ou em outro do julgamento, caso seja provocado. Apesar de algumas decisões jurídicas terem a fundamentação culturalmente fincada na racionalidade dos direitos humanos, fundamentais e de personalidade, outras tantas carecem de afirmações mais percucientes porquanto são dubitativas e elencadoras de fulcro religioso e/ou moralizante.

Fatos axiomáticos – evidentes - não carecem de prova. Alguém que tem a cabeça decepada enquanto dormia, por claro, deixou de respirar após a perda - é evidente e lógico pensar dessa forma e nada há de falta de fundamento ao julgador que assim pensa. Há, por outro lado, fatos que decorrem de presunções legais, como, por exemplo, a questão da paternidade e maternidade dentro do casamento. Além disso, há fatos notórios em âmbito social - a sociedade brasileira é condescendente279 com o jeitinho malandro280 de muitas pessoas no cotidiano social.

279 Segundo Alberto Almeida (2007, p. 45), no livro A cabeça do brasileiro, o jeitinho faz parte do cotidiano brasileiro.

Senão, se veja: ―A PESB mostra que isso acontece porque a corrupção não é simplesmente a obra perversa de nossos políticos e governantes. Sob a simpática expressão ‗jeitinho brasileiro‘, ela é socialmente aceita, conta com o apoio da população, que a encara como tolerável.‖

Dessarte, o magistrado utiliza dos meios necessários para gerar a certeza possível, quais sejam: pessoas, documentos ou perícias. O juiz somente pode acessar pessoas - quando estas puderem, através de seus veículos sensoriais - audição, gustação, olfato, tato e visão - informar algo vivido através dos sentidos a respeito do ocorrido em julgamento. Dessa forma, alguém, por exemplo, que estava presente no momento de uma briga poderá, sem sombra de dúvidas, ser utilizada pelo Estado-juiz no afã de buscar a verdade dos fatos, por conta da certeza do aparelho sensorial da dita pessoa ter captado os acontecimentos.

Outra forma possível de gerar certeza no julgamento do magistrado é através de meios documentais. Os documentos são, segundo o art. 232 do Código de Processo Penal (CPP): ―os escritos, instrumentos ou papéis, públicos ou particulares, a partir dos quais se permite provar um fato.‖ Alguns fatos, na seara jurígena, somente poderão ser provados através de documentos seguindo-se a súmula n. 74 do STJ que indica: ―Para efeitos penais, o reconhecimento da menoridade do réu requer prova por documento hábil.‖

Por último, o magistrado poderá utilizar das perícias,281 quando precisar de alguém especializado em alguma matéria - ou em alguma situação - no intento de gerar certeza para o julgamento. Os peritos são auxiliares do magistrado no ato de julgar - o juiz é o perito dos peritos. Assim ocorrendo, o decisor terá maior certeza, por conta da utilização de alguém bastante estudado na matéria, a falar a respeito das perguntas/questões realizadas.

Percebe-se, ab initio, a utilização da teoria do discurso perelmeniana na constatação de uma tranquilidade judicial quando de uma perícia realizada - argumentos retóricos sendo utilizados no desejo de convencer outras pessoas. Assim, a linguagem dos expertos seria uma tonalidade fortíssima de argumento de autoridade. Segundo Perelman e Tyteca (2005, p. 348), no livro Tratado da argumentação: a nova retórica: ―O argumento de prestígio mais nitidamente caracterizado é o argumento de autoridade, o qual utiliza atos ou juízos de uma pessoa ou de um grupo de pessoas como meio de prova em favor de uma tese.‖

A Medicina e as ciências psi são determinantes históricos de mudanças conceituais e

arte do Estado brasileiro é ventilado por Luís Roberto Barroso (2008, p. 05), no texto Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro, quando afirma: ―Herdeiros de uma tradição autoritária e populista, elitizada e excludente, seletiva entre amigos e inimigos – e não entre certo e errado, justo e injusto - , mansa com os ricos e dura com os pobres, chegamos ao terceiro milênio atrasados e com pressa.‖

281 O conceito de perícia, segundo Guilherme Nucci (2014, p. 504), no Manual de processo penal e execução penal, no

que tange ao processo penal, é: ―Perícia é o exame de algo ou de alguém realizado por técnicos ou especialistas em determinados assuntos, podendo fazer afirmações ou extrair conclusões pertinentes ao processo penal. Trata-se de um meio de prova.‖ Natalie Pletch (2007, p. 105), no livro Formação da prova no jogo processual penal, assim versa: ―A relevância da prova pericial reflete a confiança depositada na ciência moderna, em especial na

racionalidade e neutralidade que lhe são atribuídas. Assim, a sentença baseada no laudo pericial também partilha de sua cientificidade e imparcialidade pelo desprendimento dos peritos compromissados da parcialidade das teses de acusação e da defesa.‖

procedimentais do Direito, sem dúvida. Sempre se buscam argumentos científicos no intento de embasar o decisório jurígeno. Afinal, Michel Foucault (2006, p. 10), na obra A ordem do discurso, organiza o sentido da importância do discurso quando indica: ―[...] o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar.‖ (Grifos nossos)

A medicina é um dos poderes organizativos sobre o corpo humano. E, por claro, ―não fala toda a verdade sobre a doença‖, segundo Michel Foucault (2006, p. 31), no livro A ordem do discurso. No entanto, a atualidade carrega tantas mudanças que fazem coro uma dose salutar de dúvida282 das certezas biológicas atuais. Mesmo havendo confiança robusta na medicina e nos autores teóricos da literatura psi.

Berenice Bento e Larissa Pelúcio (2012, p. 488), no texto Vivências trans, assim versam a respeito do assunto:

Enfim, as discussões desenvolvidas neste dossiê buscam fazer enfrentamentos a discursos fortemente instituídos que, historicamente, têm tratado travestis, transexuais e intersexo no marco da patologização ou de um reducionismo biológico no qual todo um léxico médico-fisicalista tem sido acionado para regular e normalizar corpos e subjetividades.

Alfim, no desejo fundamentador de decisões judiciais, o julgador precisa de meios de certeza encontrados possíveis. O discurso médico é uma fortaleza portentosa na qual as pessoas podem se proteger, albergando os próprios preconceitos e concepções equivocadas sem nenhum pudor maior. Michel Foucault (2006, p. 53), no livro A ordem do discurso, assume que: ―Deve-se conceber o discurso como uma violência que fazemos às coisas, como uma prática que lhes impomos em todo o caso.‖

A perícia é o único meio de prova no qual há uma pessoa especializada no assunto - diversas vezes com estudos longos, em nível de graduação e pós-graduação - especializações, mestrados e doutorados - , como os médicos peritos. Dessa forma, o juiz tranquiliza-se283 quando a definição a respeito da possível dúvida já vem pronta - por um perito/especialista, em formato de documento - e apenas tem de adaptar o discurso ao tema proposto na peça inicial. Juntam-se, dessa forma, uma pessoa somada ao documento confeccionado - a perícia.

282 Por conta disso, Miriam Ventura (2010, p. 103), na obra A transexualidade no tribunal, assevera: ―Como dificuldade

adicional, as bases médico-científicas estritamente biológicas sobre as quais o saber jurídico vem construindo suas interpretações e estruturando seus institutos, especialmente aqueles relacionados à sexualidade e à reprodução, não mais oferecem uma única definição que possa ser facilmente subsumida ao modelo binário de dois sexos.‖

283 Fermin Schramm, Heloisa Barboza e Anibal Guimarães (2011, p. 71), no texto A moralidade da transexualidade,

assim afirmam a respeito do assunto, mostrando a necessidade de mudanças coporais na pessoa transexual para uma decisão positiva originária da Justiça: ―Não resta dúvida de que, para os magistrados, o corte físico tem efeito convicente.‖

O criador do Direito, pouco conhecedor das nuanças a respeito das sexualidades, busca alguém de nome e renome para dar espeque a uma decisão na qual uma vida humana irá ser modificada completamente. No entanto, diante de um viver cada vez mais marcado de diferenças, começa a duvidar de verdades construídas em tempos passados a respeito de indivíduos já vencidos pelo tempo e inexistentes na atualidade.

Por fim, a patologização do transexual serve, justamente, no empenho de gerar certeza técnica ao magistrado a respeito do assunto duvidoso - as sexualidades, na hodiernidade, não comportam mais certezas absolutas, como em tempos passados. No entanto, apesar da busca da racionalização das decisões judiciais,284 a patologização tem por fundamentos crenças arraigadas de tabus tradicionais. Portanto, não deve vingar como algo justo e perfectível em um regime Democrático de Direito emancipador e libertador das sexualidades.

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