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A intersexualidade humana e a sua normatização jurídica diante da vulneração social Há uma linha clara de vulnerabilização, estigma e sofrimento social diante do sexo

81 2.3.3 As sexualidades e seus reflexos corporais nas várias fases da vida humana: algumas

2.3 O SEXO PERANTE O DIREITO

2.3.2 A intersexualidade humana e a sua normatização jurídica diante da vulneração social Há uma linha clara de vulnerabilização, estigma e sofrimento social diante do sexo

biológico dos seres humanos. Os ditos homens são menos vulnerados que as ditas mulheres; que são menos vulneradas que os ditos intersexuais. A intersexualidade é tida como uma patologia merecedora de medicamentos, remédios e cirurgias pois, segundo a medicina, existe um sexo biológico verdadeiro.128

O poder biomédico129 impõe a própria estrutura de pensamento através da imposição do binarismo sexual e necessidade de cirurgia corretiva.130 Isto porque, a sociedade, em formato ricochete, impõe sexos biológicos de maneira binária aos seres humanos, como normais, naturais e não patológicos, quais sejam: homens e mulheres. As pessoas nas quais há dúvida de pertencimento a um dos sexos citados chama-se intersexual – ou intersex. Outrora, em tempos primevos, conforme já citado, chamava-se hermafrodita.

Os intersexuados, no entanto, são aqueles cujo corpo biológico não condiz com os parâmetros determinados pelo binarismo reinante. Michel Foucault (1988, p. 45), em História da sexualidade I, demostra o extremado preconceito, ao longo da história, com os intersexuados: ―Durante muito tempo os hermafroditas foram considerados criminosos, ou filhos do crime, já que sua disposição anatômica, seu próprio ser, embaraçava a lei que distinguia os sexos e prescrevia sua

être en sursis (supplément ‗Science & médicine‘ du 30 avril).‖

128 Sarug Ribeiro (2010, p. 98), no texto Reflexões sobre mitos no manuscrito autobiográfico de Herculine Barbin,

assim versa: ―Vale lembrar que, por volta dos anos de 1860-1870, a procura da identidade na ordem sexual é

praticada, cada vez mais, com maior ferocidade pela medicina e pela justiça, impondo uma norma rígida na definição e na captura do verdadeiro sexo para os indivíduos de condição hermafrodita.‖ (Grifos nossos) Gabrielle Houbre (2005, p. 51), no artigo O casamento e as recomposições familiares, versa a respeito da descoberta da verdade a respeito da natureza humana no século XIX: ―[...] os médicos das Luzes criam uma ciência médica racional que, fundada na observação da anatomia e da psicologia, deveria permitir a descoberta de toda a verdade sobre a natureza humana.‖

129

Ana Canguçu-Campinho, Ana Bastos e Isabel Lima (2009, p. 1.149), no artigo O discurso biomédico e o da construção social na pesquisa sobre intersexualidade, corroboram o pensamento: ―Este dado reflete a condição de hegemonia do saber biomédico, uma vez que a cirurgia é considerada como uma conduta legitimada socialmente.‖ Segundo a Cartilha denominada Dignidade da criança em situação de intersexo (2014, p. 12), organizada por Ana Canguçu-Campinho e Isabel Lima, a definição do termo ambiguidade genital é a seguinte: ―Denominação utilizada pelos profissionais de saúde quando não é possível definir, com certeza, o sexo da criança ao ver somente os seus órgãos sexuais externos.‖ Loup Wolff (2014, p. 06), no texto Meninas e meninos: as fronteiras ambíguas (Tradução nossa), em francês Filles et garçons: des frontiéres ambiguës, assim assevera a respeito do número de pessoas ambíguas genitalmente: ―As estimativas do número de crianças afetadas no nascimento varia de 1 a mais de 17 em 1000, de acordo com as fontes e os autores.‖ (Tradução nossa) Em francês: ―Les estimations du nombre de nourrissons concernés à la naissance varient de 1 à plus de 17 pour 1000, selon les sourcers et les auteurs.‖

130 Sarug Ribeiro (2010, p. 98), no texto Reflexões sobre mitos no manuscrito autobiográfico de Herculine Barbin,

assim indica: ―Essa postura jurídicobiológica se manteve feroz e constante, exercendo influências até os dias de hoje, quando é usual que um indivíduo hermafrodita seja submetido, ao nascer, a ininterruptas cirurgias corretivas para estabelecimento definitivo de sua genitália.‖

conjunção.‖

Conforme a Cartilha intitulada Dignidade da criança em situação de intersexo (2014, p. 15), organizada por Ana Canguçu-Campinho e Isabel Lima, a definição do termo Intersexo é:

O intersexo é uma condição de nascença em que os órgãos sexuais e/ou reprodutivos não correspondem ao que a sociedade espera para o sexo masculino ou feminino. Esta situação pode se expressar na dúvida sobre o sexo da criança ou, em adolescentes criadas como meninas, na ausência de útero, ovário ou presença de testículo na região do abdome.

A intersexualidade é uma marcação corpórea, biológica, médica. Ou seja, não é uma escolha do ser humano alçar o status jurídico de intersexual, por inexistir, em terras brasilis, tal estado sexual jurídico. Mas, sem dúvida, poderá haver a aceitação identitária da intersexualidade, em momento posterior mais maduro da vida e do viver. No entanto, até os dias atuais, não há norma possibilitadora da vivência jurídica registral. Há, assim, de haver a escolha por um dos sexos biológicos citados para que haja o registro no cartório da criança nascida com vida.

O sistema de controle judicial brasileiro não identifica normativamente o intersexual dentro do status sexual dos seres humanos, gerando maior vulneração pois haverá – possivelmente em tenra idade – uma pressão social – à família - a uma escolha por um dos sexos da classificação atual. A indefinição gera ansiedade, angústia, silêncio e dor nos familiares pois a sociedade, difusamente, pressiona por conhecer o sexo biológico da criança.

A teoria queer exprime a fundamentação de inexistência de apenas dois sexos – biológicos – ao redor dos seres humanos. Dessa maneira, os intersexuais, na atualidade não deveriam ser patologizados, como em tempos pretéritos, dando margem à fundamentação jurídica131 de um terceiro sexo – biológico - possível, como já aconteceu em muitos países132 do globo.

Como exemplo atual, a Alemanha, desde novembro de 2013, modificou o inciso III do § 22 da Lei do Estado Civil133 alemã. Dessa forma, o novo inciso assim versa: ―Poderá não ser

131

Ana Canguçu-Campinho, Ana Bastos e Isabel Lima (2009, p. 1.146), no artigo O discurso biomédico e o da construção social na pesquisa sobre intersexualidade, assim definem: ―Entretanto, ao longo das décadas, algumas transformações ocorreram a partir da contribuição de outras disciplinas, como Psicologia, Serviço Social e Direito, no atendimento à pessoa intersexual.‖

132

Os intersexuais são pessoas humanas entre os – ou além dos - ditos sexos e, na atualidade, já se inicia um processo mundial de reconhecimento de sua existência como um ser humano capaz de desenvolver-se sem a pecha de ter uma doença, como acontecia em tempos passados. Segundo o jornal Direct Matin, n. 1.481, de 16 de abril de 2014, países como Alemanha, Austrália, Índia e Nepal já têm normatizações a respeito da existência de um terceiro sexo.

133

Disponível em: <http://www.gesetze-im-internet.de/pstg/BJNR012210007.html>. Acesso em: 13 fev. 2014. O original está assim grafado: ―Kann das Kind weder dem weiblichen noch dem männlichen Geschlecht zugeordnet werden, so ist der Personenstandsfall ohne eine solche Angabe in das Geburtenregister einzutragen.‖ Importante indicar que Bernard Saladin d‘Anglure (2012, p. 01), em entrevista a Aline Pénitot, intitulada Os Inuit e o requinte dos três gêneros (Tradução nossa), em francês Les Inuit et le raffinement des trois genres, informa que no Canadá, na sociedade Inuit, segundo um dos seus alunos haveria a possibilidade de escolha similar a respeito do sexo do bebê,

atribuído à criança nem o gênero feminino, nem o masculino, então o estado civil, neste caso, sem tal indicação, será inscrito no registro de nascimento.‖ (Tradução Laurício Alves Carvalho Pedrosa)

Dessa forma, a Alemanha indica uma quebra no velho binarismo sexual, no tangente à biologia, dos seres humanos. A necessidade da norma de legitimar a existência de um terceiro sexo está na tranquilidade à família de não ter de fazer inscursões medicamentosas no afã de ajustar o sexo ao quanto dito pela ciência médica. Assim, a Alemanha se sobressai, no cenário mundial, como um Estado protetor e emancipador das pesspas vulneradas através do sistema jurídico cunhando uma norma capaz de não vulnerabilizar, ainda mais, vidas humanas quebradoras do binarismo sexual reinante no ocidente.

No entanto, importante indicar a presença de inúmeras complexidades sociais inerentes à opção de não indicar, nos registros documentais, o sexo da criança quando há uma norma social indicativa do engessamento das possibilidades de sexo biológico em somente duas alternativas. Não há, ainda, experiências bastantes para se afirmar como as crianças irão reagir a uma visualização de não enquadramento em um dos sexos biológicos tidos como naturais e normais.

A discussão a respeito dos gêneros dos seres humanos será construída em seção posterior da presente tese. No entanto, importante frisar a intersexualidade como um conceito circunscrito ao corpo humano. O gênero – também chamado de sexo cultural, psicológico, social – circunscreve- se, como se verá em tempo propício, no ajuste identitário do masculino e feminino das pessoas humanas em/na vida com reflexos na escolha do sexo biológico perante si mesmo e o mundo. Assim, resumindo didaticamente, se pode indicar que o gênero é cultural com reflexo no corporal. A intersexualidade é corporal com reflexo no cultural.

Os seres humanos, quando nascem, ainda não explicitam a construção do masculino e feminino ventilado em sociedade. Dessa maneira, quando uma criança apresenta o sexo biológico – seja ele qual for – dubidativo daquilo que se conhece como homem ou mulher tem-se, em realidade, a noção de intersexualidade. A transexualidade, como se verá a posteriori, é a migração dos indivíduos de um dos ditos pólos sexuais – já definidos em idade inicial – para outro, por conta das fundamentações de gênero não condizentes com as matrizes fixas impostas.

A complexidade do tema é patente quando pode ter ocorrido a formação conceitual da intersexualidade e uma intervenção médico-cirúrgica no azo corretivo. Mas, quando a performance134 do masculino e o feminino amadurecem, pode haver a transexualidade com a

senão se veja: ―Falando a respeito durante uma das minhas aulas em Québec, uma aluna me explicou que nos hospitais, era possível marcar ‗indeterminado‘ quando do nascimento de uma criança." (Tradução nossa) No original está grafado da seguinte maneira: ―En parlant de cela lors d‘un de mes cours au Québec, une étudiante m‘a expliqué que dans les hôpitaux, il était possible de cocher la case ‗indéterminé‘ à la naissance d‘un enfant.‖

migração do sexo escolhido – pelas instâncias de controle - em tempos pretéritos. Assim, são duas categorias diferentes porém incrustradas em terrenos movediços de vulnerabilidades humanas.

Dessa forma, caso uma pessoa nasça pode acontecer a não identificação do sexo biológico, dentro da paleta atual brasileira. Há a dúvida mas, a família, pressionada pela sociedade, pede aos médicos que indiquem qual o sexo verdadeiro da criança. O corpo médico age, no desejo de melhorar a vida de todos e mitigar a dor causada pela dúvida, realizando uma cirurgia corretiva. Ao mesmo tempo, ratifica uma tradição antiga do binarismo sexual da qual a própria ciência não tem certeza.

A pessoa do exemplo supra terá o sexo biológico definido como mulher da qual se espera a correspondência com o feminino. Cresce e constrói o próprio gênero em torno do masculino. Ou seja, quer mostrar a si mesmo e à sociedade o masculino como veio imperante em/na vida escolhendo o correspondente do sexo biológico como homem. Assim, para o sistema jurídico, tornar-se-á um transexual. Mas, lá no início, bastava indicar – juridicamente - a intersexualidade135 para que se soubesse a possibilidade de fluidez das construções futuras, sem carecer de intervenções cirúrgicas precárias e ansiosas.

Portanto, o Direito brasileiro não pode - não é legítimo - , sob o intento regulamentador da sociedade, engessar no binarismo antigo - homem e mulher - as múltiplas construções - já existentes e atuantes - das sexualidades. A pós-humanidade já demonstrou as naturalidades biológicas como questões ultrapassadas. Pois, na atualidade, os corpos humanos ultrapassam os quereres biológicos.

Novos seres sociais são cunhados segundo a segundo, em todas as cidades do planeta, com dificílima - ou quase impossível - acompanhamento classificatório. Dessa forma, a sistemática jurídica não pode inibir uma pessoa de não querer ser nem homem nem tampouco ser mulher pois o direito à própria identidade perante a sexualidade é construído ao longo da vida de cada ser humano de maneira completamente diversa.

De lege ferenda, o Brasil poderia criar uma terceira categoria jurídica do sexo biológico, como acontece na Alemanha, para pessoas não coadunadas com o binarismo atual. O intento será evitar todo o sofrimento familiar e pessoal. Além de haver a mitigação do poder biomédico de escolha da vida e modo de viver dos seres humanos por questões meramente corporais. Há de se

performance de gênero da seguinte maneira: ―A compreensão da performatividade não é como um ato pelo qual o sujeito se torna o que ele/ela nomeia, mas como este reiterativo poder do discurso para produzir o fenômeno que

regula e obriga.‖ (Grifos nossos) 135

Noëlle Châtelet (2014, p. 02), no texto O louco jardim dos corpos (Tradução nossa), em francês Le jardin fou du corps, assim narra: ―A intersexualidade não é certamente a transexualidade. Os transexuais são definidos por um sexo específico antes que um desejo irreprimível se imponha de uma cobiça em outro, mais ou menos precocemente, mais ou menos inconscientemente.‖ (Tradução nossa) Em francês: ―L‘intersexualité n‘est certes pas la transsexualité. Les transsexuels sont définis par un sexe spécifique avant qu‘un désir irrépressible s‘impose d‘en convoiter un autre, plus ou moins précocement, plus ou moins inconsciemment.‖

notar a continuidade da determinação médica pois será a equipe de saúde que indicará a existência do sexo biológico diverso quando do nascimento da criança.

Por outro lado, o cinzelamento da norma não quebrará o velho binarismo sexual, mantido há séculos na civilização ocidental. No entanto, será uma maneira de fortalecer a família e a própria pessoa tida como intersexual diante das agruras de expedir documentação jurídica e feitura de intervenções cirúrgicas de ajustamento. Nesse sentido, o artigo (art.) 54 da LRP teria um parágrafo quarto136 indicativo da modificação aduzida.

A norma citada, em seção posterior, deve indicar a possibilidade de a atribuição ajustar-se ao quanto querido pela pessoa humana, em relação ao próprio sexo biológico. Assim, se deve respeitar o ajuste – ou não – às normas sociais identitárias de gênero. Portanto, caso a pessoa humana pretenda exteriorizar um dito sexo – no caso brasileiro, circunscritos à escolha entre ser homem ou ser mulher – deve haver a possibilidade normativa da escolha em fase posterior da vida.

Dessa maneira, o art. 54 da LRP poderia ter um parágrafo quinto da seguinte forma:

Lei n. 6.015/73 - Art. 54 O assento do nascimento deverá conter: [...] § 5º. O estado sexual da pessoa humana poderá ser mantido como diferente por toda a vida ou ajustado ao sexo masculino ou feminino, neste último caso através de pedido administrativo no cartório correspondente, sem necessidade de qualquer explicação fundamentadora ou documento de origem médica ou judicial.

No entanto, enquanto o sistema legislativo não define uma norma capaz de emancipar da dor os seres humanos intersexuais, o Direito deve – através dos seus construtores - , como uma forma de gerar saída para as pessoas nascidas no Brasil cujo sexo não é adaptável, juridicamente, ao binarismo sufocante da atualidade, similarmente à norma alemã – por analogia in bonam partem - , permitir a suspensão da necessidade de inscrição no registro do sexo da criança até posterior construção do sexo do indivíduo.

Desta forma, não haverá intervenção cirúrgica inicial até que a própria pessoa humana – quando estiver mais crescida e puder consentir - possa indicar qual a identidade pretendida perante o sexo biológico. Os responsáveis pela criança devem levar em consideração a liberdade de correspondência do sexo à identidade de gênero no intento de não intervir prematuramente na vida corporal dos indivíduos.

2.3.3 As sexualidades e seus reflexos corporais nas várias fases da vida humana: algumas

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