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A autoridade do discurso médico ao redor do conceito de transexualidade e sua influência na concreção do Direito

81 2.3.3 As sexualidades e seus reflexos corporais nas várias fases da vida humana: algumas

3 A NOMENCLATURA JURÍDICA A RESPEITO DAS SEXUALIDADES HUMANAS NA ATUALIDADE

3.3 O CONCEITO DE TRANSEXUALIDADE E SUA RELAÇÃO COM O DIREITO

3.4.4 A autoridade do discurso médico ao redor do conceito de transexualidade e sua influência na concreção do Direito

Conforme já foi dito algures, a feitura de documentos serve como arrimo de certeza aos decisores de querelas brumosas. Seguindo o mesmo raciocínio, de fulcrar decisões, diversas instituições, em um desejo – dentre outros - de auxiliar as avaliações e os julgamentos – médicos, sociais e jurídicos - , tecem manuais orientativos nos quais elencam assuntos relacionados às doenças de os seres humanos, entre estas, as chamadas doenças mentais.

A OMS, órgão vinculado à ONU, possui, com revisões periódicas, duas classificações de

294 O seguinte julgado confirma o posicionamento do MPF: ―Apelação cível. Retificação de registro civil. Transgenêro.

Mudança de nome e de sexo. Ausência de cirurgia de trangenitalização. Constatada e provada a condição de transgênero da autora, é dispensável a cirurgia de transgenitalização para efeitos de alteração de seu nome e designativo de gênero no seu registro civil de nascimento. A condição de transgênero, por si só, já evidencia que a pessoa não se enquadra no gênero de nascimento, sendo de rigor, que a sua real condição seja descrita em seu registro civil, tal como ela se apresenta socialmente DERAM PROVIMENTO. UNÂNIME. (Apelação Cível n. 70057414971, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Relator: Rui Portanova, Julgado em 05/06/2014) Fonte: Instituto Brasileiro de Direito de Família.‖ O filme Vestido de Laerte (2012), narra um dia na vida do reconhecido cartunista Laerte Coutinho. Mostra, em uma das passagens, uma indagação se não haveria transexuais sem necessidade de modificação corporal. Ou seja, uma espécie de transexualidade sem cirurgia de readaptação genital. Haveria, tão só, o reconhecimento público do ser-estar mulher em/na vida e em/no viver por conta da expressão de gênero feminina e da padronização em/na vida e em/no viver da vivência como mulher identitariamente falando, estável e constante. No entanto, contrariamente a idéia defendida nos presentes escritos, Jean-Paul Branlard (1993, p.491), no livro O sexo e o estado das pessoas (Tradução nossa), em francês Le sexe et l‟état des personnes, assim versa: ―Outra aberração decorrente de uma mudança de sexo registral sem transformações anatômicas: um homem tornado mulher no estado civil poderia dar a vida a uma criança; uma mulher reconhecida como homem poderia dar à luz.‖ No original, em francês, está assim grafado: ―Autre aberration pouvant découler d'un changement juridique de sexe sans transformations anatomique: un homme devenu femme à l'état civil pourrait engendrer un enfant; une femme reconnue homme pourrait accoucher.‖ O medo do autor francês, realmente,

aconteceu. Assim, na Argentina, Alexis Taborda, uma pessoa FTM, deu a luz ao seu filho. Conforme notícia de Lígia Mesquita, elencada no site do jornal Folha de São Paulo, do dia 20 de janeiro de 2014, cuja chamada foi Nascido mulher, 1º homem a dar à luz na Argentina relata o caso inédito. Disponível em:

<http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2014/01/1400063-nascido-mulher-1-homem-a-dar-a-luz-na-argentina-relata- o-caso-inedito.shtml>. Acesso em: 05 nov. 2014. Nos EUA, Thomas Beatie também deu a luz, no ano de 2011, em evento similar ao quanto ocorrido em plagas portenhas. Conforme a notícia „Homem grávido‟ perde peso após dar à luz e exibe músculos, escrita por Fernando Moreira, em 29 de julho de 2011, no site do jornal O Globo. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/blogs/pagenotfound/posts/2011/07/29/homem-gravido-perde-peso-apos-dar-luz-exibe- musculos-395308.asp>. Acesso em: 05 nov. 2014.

referência295 das quais os profissionais de saúde vinculados à instituição devem seguir como orientação e balisa de entendimento. A CID (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde), e a CIF296 (Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde), são, assim, utilizadas complementarmente como padrões, a respeito das doenças, a serem seguidos pela comunidade médica.

As elucidações aduzidas pelas classificações orientam ordenações políticas e toda a comunidade de profissionais de saúde ao redor de pessoas vulnerabilizadas no tangente à saúde, na busca de uma vida e viver menos dolorosos aos indivíduos. Por outro lado, como as revisões não são lépidas,297 enclausuram determinadas classificações categoriais dificultando a modificação de tratamento e ajuda aos seres humanos bitolados às enumerações contidas nos ditos documentos, como no caso dos transexuais.

Dessa maneira, segundo a OMS, até os dias atuais, o transexual teria um transtorno de identidade sexual. Conforme elenca, a CID-10, no item, F.64.0, através do seguinte conceito:

F.64.1: Transexualismo. Trata-se de um desejo de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto. Este desejo se acompanha em geral de um sentimento de mal estar ou de inadaptação por referência a seu próprio sexo anatômico e do desejo de submeter-se a uma intervenção cirúrgica ou a um tratamento hormonal a fim de tornar seu corpo tão conforme quanto possível ao sexo desejado.

O documento citado não deve ser visto como verdade absoluta298 da qual não se pode fugir. Neste sentido, a transexualidade, na CID -11, a ser publicada, em versão final, possivelmente, em 2015, excluirá a transexualidade como uma doença mental. A versão beta299 da CID-11, cuja

295 Segundo Heloisa Nubila e Cassia Buchalla (2008, p. 327), no texto O papel das Classificações da OMS: CID e CIF nas definições de deficiência e incapacidade: ―A OMS agora tem duas classificações de referência para a descrição dos estados de saúde: a CID-10 e a CIF. Na família de classificações internacionais da OMS, as condições ou estados de saúde propriamente ditos (doenças, distúrbios, lesões, etc.) são classificados principalmente na CID-10, que fornece um modelo basicamente etiológico, embora tenha uma estrutura com diferentes eixos ou grandes linhas de construção, entre estes o etiológico, o anátomo-funcional, o anátomo-patológico, o clínico e o epidemiológico. A funcionalidade e incapacidade associadas aos estados de saúde são classificadas na CIF.‖

296

O documento de apresentação da CIF (2004, p. 07) aduz: ―O objectivo geral da classificação é proporcionar uma linguagem unificada e padronizada assim como uma estrutura de trabalho para a descrição da saúde e de estados relacionados com a saúde.‖

297 Assim, Ruy Laurenti et al. (2013), no artigo científico A Classificacao Internacional de Doencas, a Familia de Classificações Internacionais, a CID-11 e a Síndrome Pós-Poliomielite, afirmam a respeito das modificações nos documentos internacionais a respeito das doenças: ―Até a 9a Revisão (CID-9), as revisões da CID eram decenais. No

entanto, a CID-10 foi aprovada após 15 anos, em 1989 e a próxima futura revisão (CID-11) deverá ser publicada em 2015, ou seja, após um intervalo aproximado de 25 anos. Admite-se tal intervalo mais amplo em razão de existir, a partir da décima revisão, a possibilidade de atualização da CID entre as revisões, o que não ocorria antes.‖

298 Nesse sentir, Liliana Sampaio e Maria Thereza Coelho (2013, p. 03), no texto A transexualidade na atualidade,

quando afirmam: ―Portanto, ao contrário do que muitos entendem, o CID não deve ser empregado como se

estivéssemos diante da verdade absoluta sobre o conceito de doença, como muitos o entendem. O CID apenas nos dá uma definição.‖

votação definitiva está agendada para a Assembleia Mundial de Saúde, em 2017, inclui a transexualidade no capítulo seis Condições relacionadas à saúde sexual (Tradução nossa), em inglês Conditions related to sexual health, fora, assim do capítulo referente aos Transtornos Mentais ou Comportamentais.

Após, informa Incongruência de gênero (Tradução nossa), em inglês Gender incongruence, e, finalmente, define-a da seguinte maneira: ―Incongruência de gênero é caracterizada por uma marcante e persistente incongruência entre o gênero uma individual experiência de gênero e o sexo atribuído.‖ (Tradução nossa)300

Apesar da decisão construída de retirar a transexualidade do rol de doenças mentais, o Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT (2014), no texto Novos avanços na revisão do Código internacional de doenças sobre saúde transexual pela OMS, preocupa-se com a manutenção de categorias diagnósticas ao redor da transexualidade, da seguinte maneira: ―É também essencial continuar na luta pela garantia de acesso a saúde e do reconhecimento da identidade de gênero como direitos humanos e que estes direitos não dependam de nenhuma categoria diagnóstica.‖ (Grifos nossos)

Assim, retirar a transexualidade do lugar de doença mental não é o mesmo de despatologizar, completamente, a transexualidade. Por conta disso, em 2012, surgiu um movimento mundial chamado de, em inglês, Stop Trans Pathologization 2012,301 algo como Parada à patologição trans 2012 (Tradução nossa) ou Stop patologização 2012 (Tradução nossa), em português, com uma agenda repleta de requerimentos fundamentados juridicamente nas necessidades de densificação dos direitos humanos à comunidade trans.

A base do movimento calca-se na ausência de doenças nas sexualidades no tangente a comportamentos privados e consensuais sem quaisquer danos a outros indivíduos. Neste sentido, Claudia Colluci (2013), em artigo intitulado Transexualismo deve sair da lista de doenças mentais, publicado em site especializado em notícias, aduz que Geoffrey Reed, diretor de saúde mental da OMS, em visita ao Brasil, no ano de 2013, teria afirmado que: "Comportamentos sexuais que são inteiramente privados ou consensuais e que não resultem em danos às outras pessoas não devem ser considerados uma condição de saúde." (Grifos nossos)

Existem outros documentos importantes ao entendimento da transexualidade por parte das instâncias de controle biomédico formalizado. A Associação Americana de Psiquiatria (Tradução nossa), no original American Psychiatric Association, nos mesmos moldes da OMS, faz um documento, desde o ano de 1952, chamado Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos

300 O original está grafado da seguinte maneira: ―Gender incongruence is characterized by a marked and persistent

incongruence between an individual‘s experienced gender and the assigned sex.‖

Mentais (Tradução nossa), em inglês Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. O chamado, após quatro atualizações, DSM-IV, assim define a respeito da transexualidade: ―Perturbação da Identidade de Gênero: A. Uma forte e persistente identificação de gênero cruzado (não um mero desejo de pertencer ao outro sexo por qualquer vantagem cultural).‖ (Grifos nossos e tradução nossa)302

Seguindo uma tendência de retirar a transexualidade do rol de doenças mentais, a atualização mais recente do manual, chamada de DSM –V, lançada, oficialmente, no dia 18 de maio de 2013, modificou o lugar da transexualidade no rol de doenças mentais, como se espera ocorrer na revisão final da CID-11. No entanto, continua patologizando a transexualidade. Dessa maneira, não houve uma despatologização mas uma continuidade de mantença do poder biomédico ao derredor da temática através da classificação diagnóstica.

Explicando a respeito da questão, Álvaro Araújo e Francisco Lotufo Neto (2014, p. 78-79), no artigo A Nova Classificação Americana Para os Transtornos Mentais – o DSM-5, assim aduzem: ―O DSM-5 fragmentou o antigo capítulo Transtornos Sexuais e da Identidade de Gênero que deram origem a três novos capítulos: Disfunções Sexuais, Disforia de Gênero e Transtornos Parafílicos.‖ (Grifos nossos)

Finalmente, terminam com a seguinte explicação: ―A Disforia de Gênero é um diagnóstico que descreve os indivíduos que apresentam uma diferença marcante entre o gênero experimentado/expresso e o gênero atribuído.‖ (Grifos nossos) A palavra disforia, segundo Andrei Moreira (2012, p. 43), no livro Homossexualidade, significa nas ciências médicas: ―indisposição geral, mal-estar permanente.‖ Dessa forma, houve manutenção da patologização da identidade trans mudando-se, tão só, a nomenclatura diagnóstica.303

Importante indicar que indústrias farmacêuticas e seguradoras utilizam tais documentos como pilar decisório diante de fatos ventilados na vida de seus clientes. Por conta disso, os manuais acabam sendo fundamentais na vida de milhões de pessoas ao redor do planeta. A retirada abrupta de classificações poderá gerar maior enfado no manejo do acesso à saúde por parte da comunidade

302 No original está grafado da seguinte maneira: ―Gender Identity Disorder: A. A Strong and persistente cross-gender

identification (not merely a desire for any perceived cultural advantages of being the other sex). (Grifos nossos)

303

Diversos sites explicitaram a situação citada. Neste sentido, pode-se conferir nos sites Dezanove, na notícia DSM-5: Pessoas transexuais já não são consideradas doentes mentais. Disponível em: <http://dezanove.pt/441701.html>. Acesso em: 05 set. 2014. O site Pará diversidade narra, na notícia Associação Psiquiátrica Americana retira “transtorno de identidade de gênero” da atualização de seu manual, que a patologização continuou. Nesse sentido, informou: “Apesar dessa significativa alteração no DSM-V, a doutora em Psicologia Social e pesquisadora da questão de gênero Jaqueline Jesus observa: ‗Vale atentar para o fato de que a APA não despatologizou a

transexualidade, apenas a realocou dentro do Manual, e a agregou com outras expressões transgênero dentro da

categoria ‗disforia de gênero‘‘, considerando assim que todas as pessoas trans sofrem por terem essa identidade de gênero. Isso ainda é patologizar os gêneros.‖ (Grifos nossos) Disponível em:

trans, sem dúvida.

No entanto, como claro afirma-se, as doenças mentais não findam de cessar em âmbito humano. As listas atuais são atualizadas por razão da indefinitividade dos saberes médicos contemporâneos. Assim, a cada dia podem surgir novas doenças e desaparecer as certezas da existência de outros tantos aspectos circunvizinhos às sexualidades como patologias - como aconteceu com a homossexualidade em tempos passados.

O ideal estaria restrito à retirada completa, dos manuais diagnósticos mundiais, das identidades humanas a respeito da própria sexualidade como doentias, disforias, patologias. No entanto, importante frisar a estratégia de maior acesso à saúde da comunidade trans com a permanência da situação nos anais médicos.

Por fim, as chamadas Normas de Cuidado para a Saúde de Transsexuais, Transgêneros, e Pessoas com sexo não conformados (Tradução nossa), em inglês Standards of Care (SOC) for the Health of Transsexual, Transgender, and Gender Nonconforming People, na sétima versão, de julho de 2012,304 esclarece, finalmente, a respeito da transexualidade não mais como uma patologia mas sim como uma questão identitária. Ipsis literis: ―Ser transexual, transgênero ou de gênero não conformado é uma questão de diversidade e não de patologia.‖305

Assim, a pouco e pouco, com muitas lutas sociais, os discursos vão sendo modificados no sentido de explicitar o quanto vivido em derredor do mundo a respeito do fenômeno da transexualidade.

A Advogada da União, em parecer306 a respeito da ADI citada e estudada, Andrea de La Rocque Ferreira indica, com base em alguns doutrinadores a respeito da transexualidade, o seguinte: ―Aplicando-se as assertivas acima ao caso em estudo, percebe-se que em nenhum momento impede a redesignação do prenome dos transexuais em razão de sua disfunção sexual.‖ (Grifos nossos)

Assim sendo, não há uma abordagem a respeito da transexualidade como uma vivência dos seres humanos diante das próprias identidades sexuais. Busca-se o discurso médico - no azo argumentativo de convencimento - sem indicar o porquê ser impossível existirem outros sexos/gêneros e múltiplas correspondências, além do homem/masculino e mulher/feminino na atualidade da pós-humanidade.

As argumentações do poder médico atravessam zonas de fronteira e respingam em áreas diversas, como o casamento. Dessa maneira, aspectos das identidades humanas que, sem nenhum

304

Documento disponível em: <http://www.wpath.org/documents/SOC%20V7%2003-17-12.pdf>. Acesso em: 12 set. 2012, p. 04.

305 No original está grafado da seguinte maneira: ―Being transsexual, transgender, or gender nonconforming is a matter of diversity, not pathology.‖

306

FERREIRA, Andrea de La Rocque. Parecer. Disponível em:

esforço, poderiam ser alçadas a segredos são tratadas com a pecha de valores negativos, dos quais a confissão deveria imperar. Assim, a transexualidade é comparada a comportamentos criminosos ou doenças graves.

O Direito, através de interpretações fulcradas em aspectos amplamente discutíveis, até os dias atuais, insiste em afirmar condutas obrigatórias aos transexuais as quais não são requeridas às pessoas não transexuais, diante do próprio viver em sociedade. Conforme se verá na próxima seção, quando se estudará a respeito de um dos aspectos da anulação do casamento no direito brasileiro. No entanto, antes se vislumbrará a necessidade de alargamento do sentido do termo mulher em âmbito penal para incluir pessoas transgêneras.

3.5 REFLEXOS PENAIS DA IDENTIDADE DE GÊNERO HUMANA: A QUEBRA DO

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