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ABORDAGENS E DEFINIÇÕES DA RELAÇÃO MÃE-BEBÉ NA GRAVIDEZ

CAPÍTULO 2. A RELAÇÃO MÃE-BEBÉ NA GRAVIDEZ

2.1. CONCEPTUALIZAÇÃO DA RELAÇÃO MÃE-BEBÉ NA GRAVIDEZ

2.1.2. ABORDAGENS E DEFINIÇÕES DA RELAÇÃO MÃE-BEBÉ NA GRAVIDEZ

O que é a relação mãe-bebé?

Diferentes Abordagens e Definições

São de facto inúmeros os estudos realizados no campo da relação mãe-bebé; mas se é possível encontrar consenso empírico quanto à existência de uma relação da mãe com o bebé no período gravídico, não há, no entanto, consenso na forma de conceptualizar esta relação, havendo diferentes formas de abordar esta relação.

Entre os psicodinâmicos, destacam-se Anthony e Benedek (1970), Breen (1975), Bibring e colaboradores (1961), Caplan (1960) e Rubin (1975) como alguns dos investigadores que exploraram a dinâmica emocional da grávida, identificando os sentimentos e as percepções em relação ao bebé: a grávida tem que ver o seu bebé como parte de si, física e emocionalmente, mas simultaneamente como separado de si, como um indivíduo. Assim, estes autores valorizam o processo de individuação mãe- bebé na construção desta relação que culminaria no momento do parto.

Enquadrando-se também nestes pressupostos, Rubin (1975), descreveu a evolução do investimento no bebé desde o amor narcísico inicial, a uma diferenciação progressiva entre o feto e o self, numa percepção crescente de um indivíduo separado. Esta autora refere-se especificamente à tarefa de "binding-in", como um processo de tomada de consciência ao longo do qual a mulher percepciona, sente afecto e interage com o bebé como um indivíduo separado de si, como uma das quatro tarefas desenvolvimentais da preparação para a maternidade na gravidez. Também Leifer (1980) valoriza a evolução da experiência afectiva da mãe desde os sentimentos abstractos e difusos já presentes

nas primeiras fases da gravidez, a sentimentos mais concretos e personificados, ficando, mais tarde, activamente envolvida em interacções tácteis e verbais tais como chamar o bebé por diminutivos. Leifer (1980) valoriza os comportamentos de interacção com o bebé na gravidez como traduzindo laços emocionais significativos. Para esta autora, a relação mãe-bebé prenatal é um conceito constituído por um conjunto de cinco dimensões (fantasia, interacção, afecto, diferenciação, e partilha) que assumem diferentes pesos ao longo do processo gravídico.

Mecca S. Cranley (1981) operacionaliza o conceito da relação da mãe com o bebé na gravidez em itens indicadores de afiliação e interacção em relação ao bebé que incluem comportamentos de falar ou cantar para o bebé, chamar-lhe um nome carinhoso ou um diminutivo, assumir comportamentos que contribuam para a sua saúde, atribuir-lhe intenções ou fantasiar sobre a sua vida futura em conjunto. Esta autora identifica cinco dimensões da relação mãe-bebé na gravidez: aquisição do papel materno {roletaking), diferenciação do self em relação ao bebé, partilha do self, atribuições ao bebé e interacção com o bebé, sistematizando as formulações de Rubin (1975) e de Leifer (1980). Nesta abordagem, é já valorizada a construção da identidade materna como componente da construção da "ligação" materna ao bebé. Numa crítica à valorização da dimensão comportamental dos estudos de Cranley, Mary E. Muller (1993a) enfatiza a relação afectiva desenvolvida entre a mãe e o bebé, definindo o "prenatal attachment" como "a relação afectiva, única, que se desenvolve entre a mulher grávida

e o seu feto" (1993a, p.11), valorizando a interacção e comunicação com o bebé3, a

3 Ao longo deste trabalho, privilegiaremos o termo "bebé" sobre o termo "feto" ou "embrião", na medida em

que estes últimos termos reflectem abordagens de natureza médica ou biológica, enquanto que o termo "bebé" remete preferencialmente para uma dimensão mais psicológica e relacional pois, é desta forma que a sua representação pela grávida e os outros é construída: nenhuma grávida fala ou pensa no seu "feto", mas sim no seu "bebé" (Cyrulnik, 1989). No entanto, faltam-nos termos que melhor ajudem a clarificar se estamos a falar do bebé durante ou após a gravidez. Assim, recorreremos ao termo "feto", sempre que seja necessário facilitar a distinção entre o período pré e pós-natal. Na literatura anglo-saxónica esta dificuldade é contornada pelo recurso a um terceiro termo ("the unborn baby" ou mesmo ou "the developing baby" ou "the coming baby") sem tradução directa para a nossa língua.

Portanto, privilegiaremos o termo "bebé" pois, aquilo que em termos médico é um feto, é já um bebé em termos psicológicos e relacionais (ninguém diz que tem um embrião ou um feto dentro de si, mas sim um bebé). Esta preferência reflecte também a nossa abordagem da relação mãe-bebé na perspectiva das representações da grávida. No entanto, o facto de muita da investigação da relação mãe-bebé na gravidez

atribuição de características individuais e a identificação de sentimentos de amor. Esta autora define, assim, esta ligação como os pensamentos, sentimentos e comportamentos da mãe em relação ao bebé e operacionaliza a proposta de Leifer (1977) organizando-a em cinco dimensões interrelacionadas com diferentes pesos ao longo da gravidez: fantasia, interacção com o bebé, afecto, diferenciação entre o selfe o bebé e partilha com os outros (Muller, 1992; 1993a).

Numa perspectiva inspirada pela teoria da vinculação, John Condon (1993), utiliza o termo "antenatal emocional attachment', considerando que a "experiência nuclear de vinculação" está já presente na gravidez associada a um conjunto de experiências subjectivas ou atitudes: 1. querer conhecer; 2. querer estar e interagir; 3. evitar a separação ou a perda; 4. querer proteger; e 5. querer gratificar e satisfazer o objecto de vinculação. Estas atitudes estão orientadas para manifestações comportamentais específicas como a procura de informação e de proximidade, ou o evitamento de comportamentos de risco que ponham em perigo o bebé. Este autor valoriza dimensões mais atitudinais e estruturais na base das eventuais manifestações comportamentais. Da mesma forma, Laxton-Kane e Slade (2002) definem esse conceito como "a relação única entre uma mãe e o seu feto representada pela forma como a mãe conceptualiza o bebé". Mas, Mendes (2002), prefere utilizar o termo "ligação materno-fetal", considerando-o "mais abrangente no que diz respeito à construção de representações de interacções relevantes e significativas na formação de laços emocionais" (Mendes, 2002, p. 48). Fleming e Corter (1988), revendo estudos com abordagens tão diversas como a psicanálise e a desenvolvimental até à análise da fisiologia mecanicista do comportamento materno humano e animal, utilizam o termo "maternal responsiveness" para englobarem diferentes formas de comportamento parental em diferentes espécies, e para que se possa aplicar às diferentes fases do ciclo materno (incluindo a gravidez). Estes autores utilizam este termo para se referirem aos sentimentos profundos de envolvimento, interacção e cuidado materno, que se reflectem tanto no auto-relato da mãe, como nos comportamentos e formas de interacção que são supostos traduzir

ser da área da enfermagem reflecte-se na utilização frequente e generalizada do termo "feto" na literatura científica específica.

esses sentimentos4. Com este termo os autores procuram compreender não apenas os

sentimentos e reacções / interacções em relação ao filho, mas também os sentimentos relativos às actividades de cuidador e o seu próprio sentido de competência materna. A delimitação destes conceitos realça a vertente materna desta dimensão relacional, definida na perspectiva da grávida. No entanto, parece não haver uma conceptualização consensual desta relação. Assim, uns recorrem ao termo "binding-in" (Rubin, 1975), outros referem-se a um "maternal bond' (Carter-Jessop & Keller, 1987), outros preferem falar em "maternal responsiveness" (Fleming & Corter, 1988), ou de um

"prenatal attachment' (Cranley, 1981), um "emocional antenatal attachment' (Condon,

1993), outros ainda de um "attachment bond' (Harlow, 1974). Assim, encontramos claramente uma dificuldade na conceptualização desta relação.

Conceptualização da Relação Mãe-Bebé: Vinculação ou Bonding?

Os autores que se dedicaram mais à investigação empírica da relação mãe-bebé durante a gravidez são da área da enfermagem (Bloom, 1995; Cranley, 1981, 1993; Grace, 1989; Heidrich & Cranley, 1989), baseando-se em larga medida nas formulações de Rubin (1975, 1984) e nos instrumentos de Cranley (1981). Contudo, apesar de utilizarem o termo vinculação prenatal, raramente se referem especificamente aos contributos e perspectivas das teorias de vinculação.

Muitos autores preferem então utilizar o termo bonding para contornar a dificuldade na conceptualização da relação mãe-bebé como sendo uma relação de vinculação (ex: Mendes, 2001). No entanto, os dois termos acabam muitas vezes por ser usados de forma indistinta como se tivessem significado semelhante5.

Gross, DeHart e Stroufe (1996) exploram a distinção entre os dois termos. A vinculação refere-se a uma relação que se desenvolve gradualmente e que evolui ao longo de um

"underlying feelings of nurturance and engagement with, or involvement in, being a mother, as reflected in women's self-report, as well as the behaviors or ways of interacting that we assume reflect these feelings"

(pp.191)

5 Como está patente, por exemplo, na definição de Cranley (1984) que define prenatal attachment como "a

capacidade da grávida assumir comportamentos que representem uma afiliação e interacção com o feto" (1981). West e Keller (1994) distinguem precisamente o conceito de vinculação da noção de afiliação com que é muitas vezes confundido por estes autores, referindo que a afiliação tem um carácter menos íntimo e intenso, menos duradouro, menos ligado à protecção e mais ao alargamento de interesses.

período alargado. Para a perspectiva da vinculação, todas as experiências deste período são importantes, pois considera-se que a vinculação é construída em função da história das interacções que a precederam. É neste sentido que, para esta perspectiva, são importantes as primeiras experiências de interacção, na medida em que marcam o início do processo de se conhecerem uns aos outros. Assim, a gravidez poderá ser considerada uma fase importante para a construção de um modelo relacional, na medida em que parece ser já possível identificar um padrão de interacção e responsividade às necessidades e aos sinais do bebé, já existente neste período (Condon, 1993; Pollock & Percy, 1999). Esta relação não pode ser estabelecida instantaneamente. Williams e colaboradores (1987) reforçam esta ideia, defendendo que o contacto e a experiência das primeiras horas ou dias de vida são relevantes mas constituem, apenas, uma pequena parte, do muito mais vasto processo de desenvolvimento desta relação de vinculação. Também estes autores lembram que o período de responsabilidade parental é tão longo nos seres humanos que os dois primeiros dias após o parto não poderiam funcionar como período crítico da mesma forma que acontece noutras espécies. E de facto, o próprio conceito de bonding, inicialmente compreendido como um mecanismo estabelecido quase automaticamente desde que as condições estejam asseguradas (analogia com o imprinting das aves), evoluiu no sentido de acentuar o papel das experiências maternas durante a gravidez na construção da relação da mãe com o seu filho, reforçando a compreensão processual desta relação (Klaus & Kennell, 1982, cit por Gross et ai, 1996).

Aliás, se compararmos as diferentes concepções e formas de avaliar a relação mãe- bebé, podemos considerar que é possível encontrar inúmeras semelhanças e paralelismos. A mulher grávida expressa sentimentos e pensamentos pelo bebé (Breen, 1975; Bretherton et ai, 1989; Condon, 1993; Leifer; 1984; Muller; 1989; Rubin, 1984; Williams et ai, 1987); procura tocar e interagir com o seu bebé (Condon, 1993; Cranley,

1981; Leifer, 1980; Muller, 1993; Rubin, 1984; Williams et ai, 1987); zelar pela sua saúde e bem-estar (Carter-Jessop & Keller, 1987; Condon, 1993; Cranley, 1981); e, ao longo deste processo, vai construindo uma representação do bebé e de si como mãe (Ammaniti, et ai, 1992; Stem & Bruschweiler-Stem, 1998; Cranley, 1981; Rubin, 1984; Siddiqui et ai, 2000).

Neste sentido, podemos considerar as diferentes formas de encarar a relação da mãe

com o bebé como compatíveis com a compreensão desta relação como sendo de vinculação.

Rubin (1984) refere-se ao processo de tomada de consciência na gravidez ao longo da qual a mulher percepciona, sente afecto e interage com o bebé como um indivíduo separado de si, Muller (1992) refere-se aos sentimentos de afecto e à interacção e comunicação com o bebé, incluindo a atribuição de características individuais e a identificação de sentimentos de amor, Cranley (1981) identifica os inúmeros comportamentos de interacção e sentimentos de afiliação com o bebé, Reading (1983) fala em sentimentos maternos, Williams e colaboradores (1987) constatam sentimentos de proximidade emocional, Carter-Jessop e Keller (1987) incluem o papel de pensamentos, sentimentos e comportamentos maternos na construção do laço emocional, Mikunlincer e Florian (1999) referem-se à atitude afectiva, cognitiva e comportamental (bem como à semelhança percepcionada em relação ao bebé), Koniak-Griffin (1988) fala de afiliação pelo bebé, ou, finalmente, Condon (1993) que se refere ao laço emocional ou experiência de "amor" que combina, num modelo hierárquico, pensamentos, sentimentos e comportamentos de conhecimento e interacção, de protecção e satisfação de necessidades, e de evitamento da perda. Assim, os diferentes autores, parecem, de uma forma geral, valorizar a construção de uma relação duradoira, emocionalmente intensa, centrada na interacção real e simbólica com o bebé (sentimentos, pensamentos e comportamentos maternos), com um impacto significativo no sentido de identidade da mãe, parecendo fazer sentido, neste contexto, falar-se em vinculação prenatal.

Tentaremos discutir a possibilidade de transpor o conceito de vinculação tal como desenvolvido por Bowlby e seguidores para a construcção da relação mãe-bebé ao longo da gravidez.

Assim, e apesar das teorias da vinculação reservarem, tradicionalmente, o termo "vinculação" para descrever a ligação do bebé com alguém "mais forte e mais sabedor" (Bowlby, 1988), o termo é aqui usado de forma mais abrangente para descrever os sentimentos maternos duradoiros de ligação emocional profunda ao bebé, bem como o seu sentido de si como capaz de cuidar e gostar ("care") do seu filho (Cohen & Slade, 2000).

Este processo resulta na construção de uma representação do bebé e de uma representação do self materno com grande impacto na identidade da mulher que passa a integrar o papel de mãe (sentido de si, como capaz de cuidar e gostar do filho) e a relação de responsabilidade e entrega pessoal face ao bebé (cuidado com a saúde, o desenvolvimento e o bem-estar físico e emocional do filho) que se constitui como um componente central nesta tarefa da maternidade. Portanto, na compreensão da vinculação prenatal, destacaremos, não apenas os sentimentos e comportamentos em relação ao bebé, mas também os sentimentos relativos ao papel de cuidador e à própria identidade materna. Assim, implicitamente relacionada com o desenvolvimento da relação com o bebé, está a consciencialização da mulher grávida para o repensar da sua própria imagem e do seu papel em relação às tarefas maternas, numa construção e identificação com o seu papel materno. Autores como Cranley (1981), Mercer e colaboradores (1988) e Rubin (1984) tinham já sublinhado o facto de a mulher durante a gravidez começar simultaneamente a imaginar como será o assumir da responsabilidade de cuidar do bebé e a organizar-se cognitivamente para o assumir do seu papel de mãe. Também Fleming e Corter (1988) referem, para além dos sentimentos e reacções / interacções em relação ao bebé, os sentimentos relativos às actividades de cuidador bem como o próprio sentido de competência materna6. Deste

modo, adoptaremos a definição proposta por Cohen e Slade (2000) que utilizam o termo vinculação prenatal para descrever os sentimentos maternos duradoiros de ligação emocional profunda ao bebé, bem como o seu sentido de si como capaz de cuidar e gostar ("care") do seu filho (Cohen & Slade, 2000). Esta definição vai ao encontro da concepção de Stern e Bruschweiler-Stem (1999) em que a construção da representação materna do bebé inclui tanto a representação do bebé como a representação do self materno, que são complementares no sentido em que cada aspecto de uma implica um aspecto na outra. Esta interdependência entre as representações do self materno {self-as-mother) e as representações do bebé na gravidez, foi confirmada por Ammaniti e colaboradores (1992).

Estes autores utilizam o termo "maternal responsiveness" para englobarem diferentes índices de sentimentos e responsividade parental e valorizando tanto o auto-relato como os comportamentos na expressão dos sentimentos de envolvimento e cuidado do bebé.

2.1.3. VINCULAÇÃO PARENTAL: A RELAÇÃO PARENTAL COMO UMA RELAÇÃO