• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 3. A VIVÊNCIA DO CORPO NA GRAVIDEZ

3.2. DESENVOLVIMENTO DA VIVÊNCIA CORPORAL NA GRAVIDEZ

É portanto no contexto deste processo desenvolvimental de organização da relação com o corpo que se destaca a experiência da gravidez enquanto estádio de desenvolvimento adulto. Mas, o papel do corpo no desenvolvimento psicológico é muito mais valorizado na criança e no adolescente, apesar de ter uma grande importância ao longo de todo o ciclo de vida, com tarefas específicas e distintas, tais como aquela suscitada pela gravidez, que envolve novas descobertas das fronteiras do corpo e uma percepção de estados corporais diferenciados, a par de novas funções e significados para as experiências corporais.

No estudo da influência da vivência corporal no desenvolvimento da identidade do adulto, é assim possível destacar a primeira gravidez como um acontecimento de vida normativo (nas mulheres) que reúne claramente os dois níveis de mudança psicológica: ao nível da vivência corporal, são óbvias as mudanças e experiências corporais; ao nível do processo de desenvolvimento da identidade, é também evidente o forte desafio que é colocado pelo novo papel. A experiência (corporal) da gravidez permite, ainda, destacar a dimensão relacional do funcionamento e desenvolvimento do self corporal. Assim, a proposta de exploração da experiência da gravidez tem como objectivo contribuir para a compreensão da vivência do corpo no adulto e sua importância nas relações significativas que estabelece e que são o palco e o motor do seu

desenvolvimento psicológico.

De facto, toda a desinquietante experiência da gravidez pode desafiar os padrões habituais de vivência do corpo (a memória corporal de Pylvanainen, 2003). Assim, enfatizamos a afirmação de Pereira (1996) que, a partir da sua análise de caso acerca da construção feminina da noção de corpo, considera que, na gravidez, além de todos os processos de mudança normalmente referidos na literatura (nomeadamente a relação com a mãe, a relação com o companheiro, a relação com o self), há também uma mudança ao nível do self corporal, especialmente pela relação com o bebé (e depois com a criança) que lhe exige um padrão de interacção corporal novo que lhe deverá suscitar uma flexibilização e uma reorganização da forma como gere as distâncias/proximidades físicas e psicológicas.

Neste sentido, a vivência corporal da gravidez é um óptimo analisador do self corporal. De facto, as desafiantes experiências corporais da gravidez deverão ser valorizadas e integradas pela grávida como uma forma poderosa de relação (conhecimento e interacção) com o bebé, exigindo um padrão de funcionamento corporal mais complexo e sofisticado, constituindo-se, assim, numa tarefa de desenvolvimento do self corporal (Rosen et ai, 1997). A grávida tem que reconhecer e valorizar as suas experiências corporais, atribuindo-lhes significado e integrando-as numa forma de organizar a vivência do corpo, face ao self e à relação com o outro. A vivência corporal da gravidez implica, deste modo, uma nova forma de a mulher se perspectivar a si própria como um ser profundamente corpo, contribuindo esta tarefa desenvolvimental para a construção de um self mais unitário, coerente e flexível que integre cada vez mais a vivência corporal, quer no padrão de construção de significados quer no padrão de relação com o outro. Assim, a vivência corporal da gravidez implica uma mudança na forma de experienciar a sua relação com o self (construção da identidade de mãe) e a sua relação com os outros, como uma relação que, ao longo de toda a gravidez, vai sendo mediada de forma progressivamente mais intensa pelas transformações corporais. Este processo ocorre não só em relação à interacção cada vez mais evidente e significativa com o bebé, através das mensagens corporais (processo de construção da vinculação prenatal); este processo ocorre também em relação aos elementos com quem a grávida vai interagindo ao longo do processo gravídico, e que, quer sejam mais ou menos próximos e significativos, vão-se envolvendo cada vez mais com a mulher em função do seu corpo grávido (contribuindo também para a construção da sua identidade materna). Não só o próprio companheiro altera a sua visão da mulher, que da imagem de mulher-companheira passa a assumir também a imagem de mulher-mãe (o que nem sempre é fácil de gerir para a mulher e para o seu companheiro), como também todos os elementos que com ela interagem passam a fazê-lo de uma forma diferente, necessariamente mediada pelas suas transformações corporais. Um bom exemplo é o papel que a "barriga" pode assumir nas interacções sociais da grávida. Assim, assiste- se a uma maior integração das experiências corporais tanto no relacionamento com o

self como no relacionamento com o outro (seja o bebé, o companheiro, a família e os

elementos significativos da mulher, bem como toda a sua teia relacional: colegas de trabalho e elementos da comunidade), passando a assumir cada vez mais, ao longo de toda a gravidez, o papel do corpo como elemento de identidade e de relação (na linha

da proposta de Ribeiro, 1996), nomeadamente ao nível da construção da identidade materna e da construção da relação com o bebé, destacando-se o papel das "mensagens corporais" na construção da identidade de mãe e na construção da representação e do envolvimento emocional com o bebé.

Mas, no processo de desenvolvimento da identidade, como já vimos, nem sempre é construída uma relação com o corpo que valorize e integre a dimensão corporal de forma flexível e adaptativa. A experiência corporal da gravidez, ao desafiar os padrões habituais de vivência do corpo, confronta o self com a necessidade de construir um novo padrão de funcionamento comportamental, emocional e cognitivo, no sentido de uma maior flexibilização e complexificação que lhe permita lidar com a sua (nova) corporalidade.