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NATUREZA HISTÓRICA E DESENVOLVIMENTAL DA VIVÊNCIA DO CORPO

CAPÍTULO 3. A VIVÊNCIA DO CORPO NA GRAVIDEZ

3.1. A VIVÊNCIA DO CORPO

3.1.2. NATUREZA HISTÓRICA E DESENVOLVIMENTAL DA VIVÊNCIA DO CORPO

Esta forma de abordar a dimensão psicológica do corpo permite evidenciar a sua natureza histórica e desenvolvimental, em que será naturalmente com base na organização da experiência passada que é construído este modelo de organização do

self. Como Richardson (1990) refere, "a experiência corporal está inundada pelas

respostas emocionais que derivam das interacções passadas e presentes, imaginárias ou reais com os outros" (Richardson, 1990: 94), consistente com a perspectiva de Orbach (2004, 141) que refere que "body subjectivity has a developmental history", ou como diz Schilder (1950, cit. por Richardson, 1990), as experiências corporais "are

embraced within the self system", o que é reforçado pelos estudos de Orbach e

Mikulincer (1998) que evidenciam a associação da relação com o corpo com a percepção dos cuidados maternos precoces, com a superprotecção materna, e com a auto-estima, enfatizando a relevância da experiência corporal na compreensão do funcionamento e desenvolvimento psicológico.

Desta forma, a experiência corporal é melhor compreendida em termos de uma estrutura idiossincrática de relação com o corpo, na linha da teoria desenvolvimental da

imagem corporal de Schilder (1950) para quem a representação mental do corpo adulto

depende da resolução dos estádios desenvolvimentais anteriores. Esta concepção relaciona a resolução dos estádios desenvolvimentais de organização da imagem

corporal da infância e da adolescência com a qualidade da organização da imagem corporal do adulto.

A base do desenvolvimento desta estrutura seria construída na interacção corporal estabelecida com os outros; neste sentido, é possível destacar a relação precoce estabelecida com a mãe como uma forma primeira de interacção corporal (Orbach & Mikulincer, 1998; Bowlby, 1969; Pipp, 1990 15) na qual ocorreria a co-construção de

15 Pipp (1990) considera que a interacção mãe-bebé precoce é constituída pela acção resultante do self

corporal da mãe e do bebé. Bowlby (1969) considerava que a ligação corporal seria a forma mais básica e primitiva de "bonding".

padrões de proximidade e responsividade física (em paralelo com a comunicação de estados emocionais e a construção de uma sintonia afectiva). Aquele padrão precoce de relação com o corpo fornece assim uma base, um ponto de partida, que o sujeito activamente reconstrói e que, ao longo do seu desenvolvimento (nas diversas tarefas desenvolvimentais com que se depara e nas diferentes relações que estabelece) é reformulada e actualizada na construção de uma estrutura idiossincrática de relação com o corpo.

Esta estrutura pode valorizar mais ou menos as "mensagens" corporais (Low, 1994) na expressão e na experienciação do self, o que é consistente com a descrição de self

corporal como podendo apresentar diferentes graus de sensibilidade às sensações e

respostas corporais (Pylvanainen, 2003). Assim, ao longo do desenvolvimento da relação com o corpo há que aprender a reconhecer e integrar as "mensagens" (experiências) corporais para lidar com elas de uma forma adaptativa (e não ignorá-las, submetendo-as ao funcionamento cognitivo) (Low, 1994). Richardson (1990) lembra- nos que "as experiências corporais tanto representam desejos, como assinalam ameaças" (Richardson, 1990: 94). Assim, as "mensagens" corporais deverão ser valorizadas como uma forma poderosa de conhecimento (do self e do outro) e de relação (o que é bem ilustrado pela experiência gravídica). Também para Pylvanainen (2003) a promoção do desenvolvimento da relação com o corpo (que envolve a capacidade de atender às experiências corporais) promove a identidade e a relação, consistente com a perspectiva de Agostinho Ribeiro (1996). A desvalorização da experiência corporal (pelo sujeito ou os outros), pode provocar discrepâncias internas,

ie, um desajuste entre a memória corporal e as novas exigências com que se defronte (self corporal). Desta forma, estas discrepâncias constituem oportunidades de

desenvolvimento psicológico, já que despoletam um sentimento interno de desajuste e de desequilíbrio quando o seu padrão de funcionamento não lhe permite dar uma resposta satisfatória às novas exigências, que se constituem assim numa tarefa desenvolvimental (mudança ao nível daquilo a que Pylvanainen chamou memória

corporal).

Esta noção de que a organização da imagem corporal pode ser "suboptimum" é consistente com a teoria desenvolvimental da imagem corporal de Schilder (1950) que considera que a representação mental do corpo adulto como adequado, completo ou

íntegro depende da resolução satisfatória dos diferentes estádios desenvolvimentais. A não resolução satisfatória dos conflitos desenvolvimentais contribuiria, segundo este autor, para a construção de uma representação mental do corpo como frágil, fragmentada, inflexível, vulnerável ou mesmo, no limite, estruturalmente distorcida (Richardson, 1996).

Também Orbach e Mikulincer (1998) abordam a qualidade da relação com o corpo, a que chamaram "investimento emocional no corpo". Estes autores destacam o "bodily

love vs body rejection" referindo-se a um sentido mais geral da experiência corporal,

construído como positivo ou negativo, envolvendo atitudes e sentimentos (positivos ou negativos) face ao corpo, mediadores do prazer e satisfação corporal. Também para estes autores a qualidade da relação com o corpo resulta de um processo desenvolvimental e destacam neste processo as experiências corporais precoces. Nas experiências corporais precoces relevantes para a construção do self corporal que estariam na base do self mental, Orbach e Mikulincer (1998) destacam as sensações auditivas, visuais e quinestésicas, o contacto físico, as experiências psicofisiológicas internas, a satisfação das necessidades, as reacções parentais ao corpo do bebé e a tonalidade afectiva geral da relação pais-filhos (Kruger, 1989; Van der Velde, 1985, citados por Orbach & Mikulincer, 1998).

Consistente com esta perspectiva desenvolvimental, Rosen e colaboradores (1997) exploram as experiências críticas para a construção da imagem corporal, identificando momentos, situações e relações-chave (acontecimentos de vida significativos) ao longo do percurso de vida do sujeito (com amostras clínica e não clínica) em termos do seu impacto na qualidade da relação com corpo em diferentes estádios do desenvolvimento (infância, adolescência, idade adulta, ...). É no contexto deste processo desenvolvimental de organização da relação com o corpo que se destaca a experiência da gravidez enquanto estádio (crítico) de desenvolvimento adulto.