Primeira Parfe Q UESTÕ ES PRÉVIAS
1 Acerca desta proposta metodológica, e bem assim de toda a orien tação fundamental das investigações realizadas no presente livro, R Ode-
brecht, na sua Ãsthetik der Gegenwart (19), pp. 25 e segs., escreveu: «Podemos virar-nos para «a coisa», valorizando-a, sem tomarmos o valor em si como objecto (Husserl). Isto exige de novo uma orientação própria «dbjectivadora». Este facto passa despercebido a todos os fenomenólogos, que, por exagerado receio do psicologismo, eliminam a vivência estética, ocupando-se do «portador» neutro do valor, como se o valor aderisse ao portador (como supõe a escola de Rickert) e dele pudesse ser arbi- tràriamente separado. A este erro de princípio não foge o trabalho de Roman Ingarden sobre a obra de arte literária. A investigação penetrante da estruturação multistratificada da obra literária, a caracterização de quatro estratos especiais (formações fónico-linguísticas, unidades de signi ficação, objectividades apresentadas, aspectos esquematizados), estética mente considerados, pairam no ar. N ão se pode considerar a obra ora simplesmente imaginável ora valiosa, porque se trata, neste caso, de dois «objectos» diferentes. Desde o início é preciso manter presente a dupla
intentio perante o objecto ideado como obra de arte.»
A isto tenho de observar que nem a Husserl (expressamente men cionado por Odebrecht) nem a mim passaram despercebidas a possibilidade e a diferença das duas atitudes perante o objecto de valor estético. Trata-se até mais exactamente — como eu julgo ter mostrado no meu livro, publi cado em 1937, em língua polaca: Sobre o Conhecimento da Obra Literária — de atitudes diferentes, muitas vezes entrelaçadas, relativamente à obra
§ 3. O problema do modo de ser da obra literária
A primeira dificuldade é-nos oferecida pela pergunta: Entre que objectos, reais ou ideais, devemos enumerar a obra literária?
A divisão de todos os objectos em ideais e reais parece ser a mais universal e, ao mesmo tempo, completa. Poderíamos, portanto, julgar ter afirmado algo de decisivo quanto à obra literária, após a solução deste problema. Todavia não é tão fácil de resolver. E não o é por duas razões: primeira, porque até hoje a determinação dos objectos ideais e reais segundo o seu modo de ser, apesar de muitas tentativas importantes, não chegou a ser definitivamente realizada. Em segundo lugar, não é, de mo mento, claro o que seja propriamente uma obra literária. Ainda que nos tenhamos de contentar, provisoriamente, com conceitos de objectividades reais e ideais não suficientemente clarificados, as tentativas fracassadas em considerar a obra literária como objectividade ideal ou "real mostrar-nos-ão, da maneira mais sensível, quão obscuro e insuficiente é o que sabemos da obra literária.
Mterária. N a verdade — como Odebrecht acertadamente v ê — , não se trata apenas de perceber a obra ora sem o valor «a ela aderente» ora com este mesmo valor. Conforme a atitude, chegamos a uma concretização da obra em causa de mui diferente contextura e de diversa configuração em muitas das suas linhas (o que ainda não foi possível discutir aqui, cf. adiante cap. 13.°). Isto, porém, não exclui a possibilidade da percepção puramente cognitiva da obra, enquanto fundamento último de todas as potenciali dades nela radicadas das concretizações constituídas na atitude estética e ainda na não-estética, tendo naturalmente em consideração os modos dife rentes em que a obra se nos apresenta nas diferentes fases da vivência estética. N o livro mencionado sobre o conhecimento da obra literária fiz, entre outras, uma análise pormenorizada da vivência estética. Apresentei dela um breve resumo ao 2.° Congresso Internacional de Estética e Ciência Geral das Artes, em Paris, em 1937. Quanto mais se exigir, no caso indi vidual, esta captação puramente cognitiva da obra para compreendermos d s modos de chegar às diferentes concretizações a partir da identidade ia cbra, tanto mais numa consideração totalmente universal da essência da obra literária (e também da obra de arte), como é escopo do presente livro. Que isto não é nenhum «erro», como Odebrecht julga, resulta do próprio facto de a obra literária entrar, por assim dizer, como esqueleto em qualquer concretização adequadamente constituída, que reveste este mesmo esqueleto apenas de traços e pormenores diferentes, como sucede num corpo vivo. Através deste revestimento, que encerra em si qualidades estéticamente valiosas e mostra o valor estético nelas fundado, o esqueleto :orna-se visível e pode até dele dissociar-se. Só na medida em que este esqueleto está contido na concretização e nela continua visível fica obvia mente assegurada a identidade da obra em todas as suas mutações durante a sua vida histórica.
Falamos aqui de objectividades reais e ideais apenas no sentido de algo que, no seu ser, é em si mesmo autónomo e independente de todo o acto cognoscitivo que o vise !. Se alguém não estivesse disposto a aceitar connosco a autonomia no ser dos objectos ideais2 teria de distinguir entre estes e as objec tividades reais, ao menos pelo facto de estas começarem num momento qualquer temporal, durarem algum tempo, se modi ficarem eventualmente durante ele e deixarem finalmente de existir3, não se podendo afirmar o mesmo a respeito dos objectos ideais.
Com a intemporalidade dos objectos ideais relaciona-se tam bém o facto de eles não poderem ser alterados, embora até agora não se tenha conseguido esclarecer qual a razão da sua inalterabilidade. Em contrapartida, os objectos reais — como foi já observado— podem, sem dúvida, sofrer alterações, e na realidade sofrem-nas, embora se possa de novo perguntar se eles devem sempre alterar-se por essência.
Pressuposto isto, perguntemos se determinada obra literária, p. ex. o Fausto de Goethe, é um objecto real ou ideal. Imedia tamente nos convencemos de que não nos podemos decidir segundo está alternativa. Por cada uma das possibilidades que mutuamente se excluem parecem militar importantes argumen tos. O Fausto foi redigido em determinado período. Podemos indicar com exactidão relativamente grande a época em que foi escrito. Estamos todos de acordo em que ele existe desde o tempo do seu aparecimento, ainda que não entendamos bem o que rigorosamente pode significar falar da sua existência. Talvez já não comungássemos com igual segurança da convicção de que esta obra-prima de Goethe, desde o tempo em que nasceu, está sujeita a estas e àquelas mutações e de que virá uma época em que deixará mesmo de existir. Contudo, ninguém negará
1 A senhora Conrad-Martius também acentua a «autonomia existen