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H á aliás outro problema especial, o dos meios de que o poeta dispõe para integrar semelhantes qualidades manifestativas na obra e as

No documento Roman Ingarden - A Obra de Arte Literária (páginas 120-123)

Segunda Parte ESTRUTURAÇÃO

2 H á aliás outro problema especial, o dos meios de que o poeta dispõe para integrar semelhantes qualidades manifestativas na obra e as

transmitir ainda ao leitor. Neste caso a situação é muito mais complicada do que quando se trata da mera fixação de uma multiplicidade de formas significativas determinadas pelo recurso aos sinais gráficos. Seja, porém, qual for a solução desta tarefa (ainda trataremos dela) isso em nada modifica o facto por nós registado.

Determinado assim o âmbito daquilo que de entre as for­ mações e características fónico-linguísticas, a nosso ver, faz parte ou pode fazer parte da obra literária podemos passar para a fundamentação desta nossa posição assinalando as fun­ ções que tais elementos desempenham na obra.

§ 13. A função do estrato fónico-Iinguístico na estruturação da obra literária

As formações e as características fónico-linguísticas anali­ sadas desempenham funções significativas na estruturação da obra literária de dois modos diferentes: em primeiro lugar, graças à multiplicidade das suas qualidades e características constituem um elemento especial estrutural da obra; em segundo lugar, desempenham função própria no desenvolvimento e em parte também na constituição dos seus restantes estratos.

No primeiro caso enriquecem a obra na sua totalidade com material próprio trabalhado e com qualidades próprias de valor estético que, juntas às restantes qualidades de valor provenientes dos outros estratos da obra, constituem aquela polifonia parti­ cular da obra literária cuja existência atrás anunciámos. O facto de as formações e as características fónico-linguísticas terem «voz própria» nesta polifonia tem a sua melhor prova na modi­ ficação radical que toda a obra sofre quando é traduzida para uma língua «estranha». Por mais fiel que seja a tradução e por maior que seja a semelhança das qualidades fónicas nunca se conseguirá que a tradução neste aspecto seja inteiramente igual ao original porque a diferença das formas significativas singu­ lares traz inevitàvelmente consigo outras formas e características de natureza fónico-linguística. Além disso, o aspecto fónico da linguagem não é irrelevante para o artisticamente valioso. Muitas das suas qualidades e das suas formações levam à constituição de características bem particulares que geralmente designamos pelos termos «belo», «feio», «engraçado», «vigoroso», «poderoso» e outros \ Estes termos, porém, não conseguem traduzir toda

1 A necessidade de certa atitude e concepção da parte do sujeito cognoscente para a constituição de tais características, além da funda­ mentação em determinada multiplicidade de qualidades fónicas, é um problema especial que não será aqui solucionado. Se, porém, estas dife­ rentes condições subjectivas a salientar se cumprem as características mencionadas são assinaladas nas formações fonéticas como algo a elas aderente.

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a multiplicidade de características estéticamente relevantes e diferentes entre si. Pode ser verdade que em todos aqueles casos em que, p. ex., falamos de «beleza» se encontre um momento comum. Geralmente, porém, não é este momento comum que interessa, mas reportamo-nos nesses casos ao carácter concreto e pleno que adere à obra de arte individual e então o termo pouco se adequa ao objecto dado. Não há só «belezas» diferentes, mas também tipos diferentes de beleza que se diferenciam segundo a espécie das qualidades subjacentes e suas variedades. Uma igreja románica, p. ex., não é apenas «bela» em sentido especificamente diferente do de uma catedral gótica, mas tam­ bém as «belezas» que uma produção fónica e em especial uma obra musical podem revelar são tipicamente diferentes, pela sua própria natureza, da beleza, p. ex., de qualquer obra de arte arquitectónica. E igualmente as várias «características de beleza» que se constituem sobre o substrato de combinações e seqüências fónicas em duas línguas diferentes (p. ex., na alemã e na fran­ cesa) são inteiramente heterogéneas, segundo a plenitude do seu conteúdo, em relação àquelas características de beleza que, p. ex., uma situação trágica ou também a imponência de uma figura podem manifestar. E esta heterogeneidade radica preci­ samente na heterogeneidade daquelas qualidades fundadoras des­ tas características que a produção fónico-linguística pode ter no primeiro caso e o estado anímico no segundo. Se chamarmos — não de todo adequadamente como muitas vezes acontece — «m atéria» às produções ou qualidades fundadoras das caracte­ rísticas de beleza podemos dizer que os tipos principais funda­ mentalmente heterogéneos de características de beleza dependem das particularidades da «m atéria» e diferenciam-se de acordo com ela. O mesmo se diga também de cada uma das caracterís­ ticas mais heterogéneas e estéticamente relevantes que foram denominadas pelos termos atrás enunciados K

O aparecimento de uma multiplicidade convenientemente seleccionada de tais características numa e a mesma obra leva à constituição de características estéticamente relevantes de ordem superior a certos momentos sintéticos particulares que, em última análise, constituem o específico de uma obra de arte: o seu valor artístico.

1 Acerca do conceito de característica da beleza, ou mais geralmente das qualidades de valor e suas variações específicas, cf. Max Scheler, Der

Formalismus in der Ethik und materiale Wertethik, cap. I, § 1.°, Gueter

A obra de arte literária é, pois, um produto multistratificado; isto significa nesta altura sobretudo que a «matéria», cujas particularidades levam à constituição de características estéti­ camente relevantes, é composta de vários elementos constitutivos

heterogéneos, de «estratos». A matéria de cada um dos estratos

origina a constituição de características estéticas próprias ade­ quadas à espécie de matéria. Por conseguinte, obtém-se, ou pelo menos pode obter-se, a constituição de características estéticas sintéticas de ordem superior e não só dentro de cada um daque­ les grupos de características próprias dos estratos singulares como ainda em sínteses ainda mais elevadas de momentos esté­ ticos de grupos diversos. Por outras palavras: em obras de arte literária a multistratificação da «m atéria» leva a uma polifonia curiosa de características estéticas de tipos heterogéneos em que as características pertencentes a tipos diversos não se justapõem, por assim dizer, estranhamente mas tecem entre si diferentes relações. Assim, surgem sínteses, harmonias e desarmonias intei­

ramente novas nas variações possíveis e mais diversas Cada

uma destas harmonias sintéticas contém os elementos que levam à produção sintética de tal maneira que aqueles não desaparecem nos momentos sintéticos mas tornam-se sob estes, por assim dizer, em si mesmos sensíveis e transparentes. O todo é preci­ samente uma polifonia.

Participam nesta polifonia, enriquecendo-a, as características estéticas que chegam a constituir-se no estrato fónico lingüístico. Ao mesmo tempo, porém, conduzem à produção de harmonias especiais de características sintéticas de valor estético só possíveis quando existe o estrato fónico-linguístico na totalidade da obra. Este facto oferece-nos um argumento importante para demons­ trar que o estrato fónico-linguístico não é simples meio de reve­ lação da obra literária, mas pertence-lhe de tal modo que a sua não-existência na obra acarretaria uma profunda modificação. A polifonia da obra, neste caso, não só ficaria privada de uma

1 Surgem aqui em especial os problemas da relação entre as parti­

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