Segunda Parte ESTRUTURAÇÃO
2 H á aliás outro problema especial, o dos meios de que o poeta dispõe para integrar semelhantes qualidades manifestativas na obra e as
transmitir ainda ao leitor. Neste caso a situação é muito mais complicada do que quando se trata da mera fixação de uma multiplicidade de formas significativas determinadas pelo recurso aos sinais gráficos. Seja, porém, qual for a solução desta tarefa (ainda trataremos dela) isso em nada modifica o facto por nós registado.
Determinado assim o âmbito daquilo que de entre as for mações e características fónico-linguísticas, a nosso ver, faz parte ou pode fazer parte da obra literária podemos passar para a fundamentação desta nossa posição assinalando as fun ções que tais elementos desempenham na obra.
§ 13. A função do estrato fónico-Iinguístico na estruturação da obra literária
As formações e as características fónico-linguísticas anali sadas desempenham funções significativas na estruturação da obra literária de dois modos diferentes: em primeiro lugar, graças à multiplicidade das suas qualidades e características constituem um elemento especial estrutural da obra; em segundo lugar, desempenham função própria no desenvolvimento e em parte também na constituição dos seus restantes estratos.
No primeiro caso enriquecem a obra na sua totalidade com material próprio trabalhado e com qualidades próprias de valor estético que, juntas às restantes qualidades de valor provenientes dos outros estratos da obra, constituem aquela polifonia parti cular da obra literária cuja existência atrás anunciámos. O facto de as formações e as características fónico-linguísticas terem «voz própria» nesta polifonia tem a sua melhor prova na modi ficação radical que toda a obra sofre quando é traduzida para uma língua «estranha». Por mais fiel que seja a tradução e por maior que seja a semelhança das qualidades fónicas nunca se conseguirá que a tradução neste aspecto seja inteiramente igual ao original porque a diferença das formas significativas singu lares traz inevitàvelmente consigo outras formas e características de natureza fónico-linguística. Além disso, o aspecto fónico da linguagem não é irrelevante para o artisticamente valioso. Muitas das suas qualidades e das suas formações levam à constituição de características bem particulares que geralmente designamos pelos termos «belo», «feio», «engraçado», «vigoroso», «poderoso» e outros \ Estes termos, porém, não conseguem traduzir toda
1 A necessidade de certa atitude e concepção da parte do sujeito cognoscente para a constituição de tais características, além da funda mentação em determinada multiplicidade de qualidades fónicas, é um problema especial que não será aqui solucionado. Se, porém, estas dife rentes condições subjectivas a salientar se cumprem as características mencionadas são assinaladas nas formações fonéticas como algo a elas aderente.
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a multiplicidade de características estéticamente relevantes e diferentes entre si. Pode ser verdade que em todos aqueles casos em que, p. ex., falamos de «beleza» se encontre um momento comum. Geralmente, porém, não é este momento comum que interessa, mas reportamo-nos nesses casos ao carácter concreto e pleno que adere à obra de arte individual e então o termo pouco se adequa ao objecto dado. Não há só «belezas» diferentes, mas também tipos diferentes de beleza que se diferenciam segundo a espécie das qualidades subjacentes e suas variedades. Uma igreja románica, p. ex., não é apenas «bela» em sentido especificamente diferente do de uma catedral gótica, mas tam bém as «belezas» que uma produção fónica e em especial uma obra musical podem revelar são tipicamente diferentes, pela sua própria natureza, da beleza, p. ex., de qualquer obra de arte arquitectónica. E igualmente as várias «características de beleza» que se constituem sobre o substrato de combinações e seqüências fónicas em duas línguas diferentes (p. ex., na alemã e na fran cesa) são inteiramente heterogéneas, segundo a plenitude do seu conteúdo, em relação àquelas características de beleza que, p. ex., uma situação trágica ou também a imponência de uma figura podem manifestar. E esta heterogeneidade radica preci samente na heterogeneidade daquelas qualidades fundadoras des tas características que a produção fónico-linguística pode ter no primeiro caso e o estado anímico no segundo. Se chamarmos — não de todo adequadamente como muitas vezes acontece — «m atéria» às produções ou qualidades fundadoras das caracte rísticas de beleza podemos dizer que os tipos principais funda mentalmente heterogéneos de características de beleza dependem das particularidades da «m atéria» e diferenciam-se de acordo com ela. O mesmo se diga também de cada uma das caracterís ticas mais heterogéneas e estéticamente relevantes que foram denominadas pelos termos atrás enunciados K
O aparecimento de uma multiplicidade convenientemente seleccionada de tais características numa e a mesma obra leva à constituição de características estéticamente relevantes de ordem superior a certos momentos sintéticos particulares que, em última análise, constituem o específico de uma obra de arte: o seu valor artístico.
1 Acerca do conceito de característica da beleza, ou mais geralmente das qualidades de valor e suas variações específicas, cf. Max Scheler, Der
Formalismus in der Ethik und materiale Wertethik, cap. I, § 1.°, Gueter
A obra de arte literária é, pois, um produto multistratificado; isto significa nesta altura sobretudo que a «matéria», cujas particularidades levam à constituição de características estéti camente relevantes, é composta de vários elementos constitutivos
heterogéneos, de «estratos». A matéria de cada um dos estratos
origina a constituição de características estéticas próprias ade quadas à espécie de matéria. Por conseguinte, obtém-se, ou pelo menos pode obter-se, a constituição de características estéticas sintéticas de ordem superior e não só dentro de cada um daque les grupos de características próprias dos estratos singulares como ainda em sínteses ainda mais elevadas de momentos esté ticos de grupos diversos. Por outras palavras: em obras de arte literária a multistratificação da «m atéria» leva a uma polifonia curiosa de características estéticas de tipos heterogéneos em que as características pertencentes a tipos diversos não se justapõem, por assim dizer, estranhamente mas tecem entre si diferentes relações. Assim, surgem sínteses, harmonias e desarmonias intei
ramente novas nas variações possíveis e mais diversas Cada
uma destas harmonias sintéticas contém os elementos que levam à produção sintética de tal maneira que aqueles não desaparecem nos momentos sintéticos mas tornam-se sob estes, por assim dizer, em si mesmos sensíveis e transparentes. O todo é preci samente uma polifonia.
Participam nesta polifonia, enriquecendo-a, as características estéticas que chegam a constituir-se no estrato fónico lingüístico. Ao mesmo tempo, porém, conduzem à produção de harmonias especiais de características sintéticas de valor estético só possíveis quando existe o estrato fónico-linguístico na totalidade da obra. Este facto oferece-nos um argumento importante para demons trar que o estrato fónico-linguístico não é simples meio de reve lação da obra literária, mas pertence-lhe de tal modo que a sua não-existência na obra acarretaria uma profunda modificação. A polifonia da obra, neste caso, não só ficaria privada de uma
1 Surgem aqui em especial os problemas da relação entre as parti