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Se os deixássemos submersos na esfera das vivências a obra literária ficaria reduzida a uma multiplicidade de vivências do autor

No documento Roman Ingarden - A Obra de Arte Literária (páginas 80-85)

Primeira Parfe Q UESTÕ ES PRÉVIAS

1 Se os deixássemos submersos na esfera das vivências a obra literária ficaria reduzida a uma multiplicidade de vivências do autor

objectos da imaginação», no fundo, um nada. Examinando o problema superficialmente poder-se-ia afirmar que os objectos apresentados no caso de dramas, romances ou outras obras históricas se identificam com as personagens, coisas e destinos que outrora tiveram existência real. Examinando o problema mais de perto, nem se pode provar esta identidade nem é pos­ sível aplicar esta argumentação a todas as obras literárias. Há muitas obras que apresentam objectividades inteiramente fictícias e não são «históricas» em nenhum sentido. O melhor argumento contra a pretensa identidade fornece-o, porém, o facto de as objectividades apresentadas (p. ex., C. J. César no drama de Shakespeare) serem comparadas justificadamente com as figuras reais que lhes correspondem, sobressaindo as dife­ renças objectivas entre elas. Se, porém, todas as objectividades apresentadas («históricas» ou não) são radicalmente distintas de todas as reais e se o seu ser e a sua maneira de ser dependem apenas das correspondentes multiplicidades vivenciais do autor, não só é impossível, nas condições estabelecidas, encontrar o lugar em que sejam autónomas como necessitam, além disso, de fundamentar a sua identidade e unicidade. Concebidas em vivências subjectivas e, passe a expressão, por estas susten­ tadas, tendo por única via de acesso — segundo as condições estabelecidas — as vivências subjectivas do autor, as objectivi­ dades apresentadas só nessas vivências deveriam basear a sua identidade. As vivências, porém, são unidades individuais distin­ tas umas das outras pelo seu conteúdo objectivo e, portanto, tudo quanto constituir elemento de cada uma delas ou tenha a sua origem unicamente numa vivência deve ser igualmente individual como a própria vivência e distinguir-se de tudo quanto tiver a sua origem noutras vivências ou constituir uma componente destas. Assim, não só é impossível que o leitor possa apreender a «objectividade da imaginação» concebida pelo autor, mas também que o autor possa apresentar várias -vezes a mesma objectividade na sua identidade. Como é que neste caso seria possível, nas condições estabelecidas, falar-se ainda, p. ex., do

mesmo C. J. César enquanto personalidade representada num

drama de Shakespeare?

Falha também esta tentativa de salvar a unidade e a iden­ tidade da obra literária. Resta, portanto, para sair desta situa­ ção difícil a única via, ou seja, reconhecer a existência das unidades ideais de sentido sem as integrar na obra literária, para evitar as dificuldades atrás expostas, e recorrer a elas a fim de assegurar a identidade e unicidade de uma obra literária. O modo de realizar este plano será demonstrado pelas nossas

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ulteriores investigações. Se, porém, esta tentativa também falhasse e se mostrasse simultáneamente que só é lícito aceitar dois reinos de objectos, os reais e os ideais, então não se poderia resolver em sentido positivo o problema do modo de ser nem o da identidade da obra literária, cuja existência deveríamos simplesmènte negar.

As reflexões precedentes não revelaram apenas as dificul­ dades com que tem de lutar uma teoria viável da obra literária, mas mostraram também a pouca clareza e a incerteza do nosso saber acerca da sua essência. Nós não sabemos que elementos se lhe devem atribuir: as unidades de sentido das frases ou os objectos apresentados ou talvez muitos elementos ainda não men­ cionados ou finalmente uma multiplicidade deles. Também não temos por enquanto ideias claras sobre as qualidades caracte- rizadoras dos elementos eventualmente discutíveis. E no caso de uma pluralidade de elementos participar na estruturação da obra literária o modo da sua integração numa única obra tam­ bém nos é momentáneamente vedado. Da estruturação essencial da obra literária depende o seu modo de ser e a raiz da sua identidade. Se os problemas atrás discutidos devem ser resol­ vidos é preciso começar por os pôr de lado e, em primeiro lugar, captar directamente na sua estruturação a obra literária como ela se nos apresenta em numerosos exemplos, analisá-la profundamente e passar daquelas generalidades vagas com que provisoriamente nos tivemos de contentar para situações con­ cretas. Com este fim devemos desobstruir o caminho de tudo o que perturbe a visão. É preciso averiguar em particular o que indubitàvelmente não pertence à obra literária independen­ temente do que ela em si mesma seja. Neste aspecto os resul­ tados da discussão precedente podem prestar-nos imprescindível auxílio.

Capítulo 2

Eliminação das formações não pertencentes à estruturação da obra literária

§ 6. Delimitação do tema

De início limitámos o campo dos objectos da nossa obser­ vação eliminando todas as questões que só podem ser tratadas com êxito depois da captação da essência da obra literária.

Tratamos aqui exclusivamente da obra literária acabada. Consideramos «acabada»^uma obra literária quando todas as frases e palavras isoladas que nela aparecem foram inequivo­ camente determinadas e fixadas segundo o seu sentido, teor e coordenação. Em contrapartida, parece-nos irrelevante para o seu acabamento ser de facto redigida por escrito ou apenas recitada oralmente, uma vez que na eventual recitação repetida não sofra alterações essenciais *. Ficam assim fora das nossas considerações tanto a fase da gênese da obra literária como todas as questões relativas à criação artística. Não procedemos assim por arbitrariedade infundada, mas porque vemos na con­ fusão permanente dos dois campos de trabalho — ontologia da

obra literária e psicologia da produção artística ou literária —

uma das causas de numerosos problemas deslocados e artificial­ mente criados e queremos evitá-los. Só quando a estruturação da obra literária remetesse para múltiplos actos de consciência deveríamos tratar deles na medida em que fossem necessários ao esclarecimento da essência da obra literária. Neste caso a análise dos actos de consciência continuaria distinta da psico­ logia da criação artística e tais actos não deveriam confundir-se com a obra literária.

Ficam ainda fora das nossas considerações todas as questões que dizem respeito ao conhecimento da obra literária, seus modos especiais e limites. Por exemplo, questões como estas: Por que actos de consciência se obtém o conhecimento de uma obra de arte literária? Quais as condições que devem ser cum-

1 Quais as modificações «essenciais» e as não essenciais só muito tarde se poderá demonstrar.

pridas da parte dos sujeitos quando uma obra literária for conhecida por muitos sujeitos cognoscentes como «uma e a mesma»? Quais são os critérios que nos permitem distinguir um conhecimento «objectivo» de uma obra literária de opiniões subjectivas e erradas? Haverá na realidade um conhecimento objectivo das obras literárias?, etc. Outras tantas questões que dizem respeito à possibilidade de uma « ciência da literatura». São problemas que até agora — que saibamos — nem sequer foram postos com plena consciência ou formulados correcta­ mente, mas que também não podem ser abordados enquanto reinar, em relação à essência da obra literária, um tal caos e uma tal divergência de opiniões *. Além disso, não queremos examinar expressamente as diferentes posições possíveis da parte do leitor perante a obra literária. Só quando for indispensável para a compreensão desta, quando se tratar de focar a obra literária como objecto estético, devemos reportar-nos à posição subjectiva em que tais objectos são dados.'

Finalmente, abstraímo-nos por enquanto de todas as questões gerais relacionadas com a essência do valor de uma obra de arte e, particularmente, de uma obra de arte literária. V erifi­ caremos decerto que nesta se podem encontrar valores e não- -valores e que estes levam à constituição d e . um valor total, particularmente qualificado, de toda a obra literária. O que, porém, constitui a essência de tais valores deve ficar fora da nossa consideração porque a solução deste problema pressupõe, por um lado, a solução do problema do v a lo r2 como tal e, por outro, a intuição da estrutura da obra literária. Pela mesma razão, deixamos por agora completamente de lado, no exame da obra literária, a questão do seu valor positivo ou negativo.

§ 7. O que não pertence à obra literária?

As observações precedentes deixam já entrever o que se deve eliminar da estruturação da obra literária como elemento estranho à sua essência, segundo a nossa maneira de ver. Vamos ser explícitos.

No documento Roman Ingarden - A Obra de Arte Literária (páginas 80-85)

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