Primeira Parfe Q UESTÕ ES PRÉVIAS
1 Se os deixássemos submersos na esfera das vivências a obra literária ficaria reduzida a uma multiplicidade de vivências do autor
objectos da imaginação», no fundo, um nada. Examinando o problema superficialmente poder-se-ia afirmar que os objectos apresentados no caso de dramas, romances ou outras obras históricas se identificam com as personagens, coisas e destinos que outrora tiveram existência real. Examinando o problema mais de perto, nem se pode provar esta identidade nem é pos sível aplicar esta argumentação a todas as obras literárias. Há muitas obras que apresentam objectividades inteiramente fictícias e não são «históricas» em nenhum sentido. O melhor argumento contra a pretensa identidade fornece-o, porém, o facto de as objectividades apresentadas (p. ex., C. J. César no drama de Shakespeare) serem comparadas justificadamente com as figuras reais que lhes correspondem, sobressaindo as dife renças objectivas entre elas. Se, porém, todas as objectividades apresentadas («históricas» ou não) são radicalmente distintas de todas as reais e se o seu ser e a sua maneira de ser dependem apenas das correspondentes multiplicidades vivenciais do autor, não só é impossível, nas condições estabelecidas, encontrar o lugar em que sejam autónomas como necessitam, além disso, de fundamentar a sua identidade e unicidade. Concebidas em vivências subjectivas e, passe a expressão, por estas susten tadas, tendo por única via de acesso — segundo as condições estabelecidas — as vivências subjectivas do autor, as objectivi dades apresentadas só nessas vivências deveriam basear a sua identidade. As vivências, porém, são unidades individuais distin tas umas das outras pelo seu conteúdo objectivo e, portanto, tudo quanto constituir elemento de cada uma delas ou tenha a sua origem unicamente numa vivência deve ser igualmente individual como a própria vivência e distinguir-se de tudo quanto tiver a sua origem noutras vivências ou constituir uma componente destas. Assim, não só é impossível que o leitor possa apreender a «objectividade da imaginação» concebida pelo autor, mas também que o autor possa apresentar várias -vezes a mesma objectividade na sua identidade. Como é que neste caso seria possível, nas condições estabelecidas, falar-se ainda, p. ex., do
mesmo C. J. César enquanto personalidade representada num
drama de Shakespeare?
Falha também esta tentativa de salvar a unidade e a iden tidade da obra literária. Resta, portanto, para sair desta situa ção difícil a única via, ou seja, reconhecer a existência das unidades ideais de sentido sem as integrar na obra literária, para evitar as dificuldades atrás expostas, e recorrer a elas a fim de assegurar a identidade e unicidade de uma obra literária. O modo de realizar este plano será demonstrado pelas nossas
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ulteriores investigações. Se, porém, esta tentativa também falhasse e se mostrasse simultáneamente que só é lícito aceitar dois reinos de objectos, os reais e os ideais, então não se poderia resolver em sentido positivo o problema do modo de ser nem o da identidade da obra literária, cuja existência deveríamos simplesmènte negar.
As reflexões precedentes não revelaram apenas as dificul dades com que tem de lutar uma teoria viável da obra literária, mas mostraram também a pouca clareza e a incerteza do nosso saber acerca da sua essência. Nós não sabemos que elementos se lhe devem atribuir: as unidades de sentido das frases ou os objectos apresentados ou talvez muitos elementos ainda não men cionados ou finalmente uma multiplicidade deles. Também não temos por enquanto ideias claras sobre as qualidades caracte- rizadoras dos elementos eventualmente discutíveis. E no caso de uma pluralidade de elementos participar na estruturação da obra literária o modo da sua integração numa única obra tam bém nos é momentáneamente vedado. Da estruturação essencial da obra literária depende o seu modo de ser e a raiz da sua identidade. Se os problemas atrás discutidos devem ser resol vidos é preciso começar por os pôr de lado e, em primeiro lugar, captar directamente na sua estruturação a obra literária como ela se nos apresenta em numerosos exemplos, analisá-la profundamente e passar daquelas generalidades vagas com que provisoriamente nos tivemos de contentar para situações con cretas. Com este fim devemos desobstruir o caminho de tudo o que perturbe a visão. É preciso averiguar em particular o que indubitàvelmente não pertence à obra literária independen temente do que ela em si mesma seja. Neste aspecto os resul tados da discussão precedente podem prestar-nos imprescindível auxílio.
Capítulo 2
Eliminação das formações não pertencentes à estruturação da obra literária
§ 6. Delimitação do tema
De início limitámos o campo dos objectos da nossa obser vação eliminando todas as questões que só podem ser tratadas com êxito depois da captação da essência da obra literária.
Tratamos aqui exclusivamente da obra literária acabada. Consideramos «acabada»^uma obra literária quando todas as frases e palavras isoladas que nela aparecem foram inequivo camente determinadas e fixadas segundo o seu sentido, teor e coordenação. Em contrapartida, parece-nos irrelevante para o seu acabamento ser de facto redigida por escrito ou apenas recitada oralmente, uma vez que na eventual recitação repetida não sofra alterações essenciais *. Ficam assim fora das nossas considerações tanto a fase da gênese da obra literária como todas as questões relativas à criação artística. Não procedemos assim por arbitrariedade infundada, mas porque vemos na con fusão permanente dos dois campos de trabalho — ontologia da
obra literária e psicologia da produção artística ou literária —
uma das causas de numerosos problemas deslocados e artificial mente criados e queremos evitá-los. Só quando a estruturação da obra literária remetesse para múltiplos actos de consciência deveríamos tratar deles na medida em que fossem necessários ao esclarecimento da essência da obra literária. Neste caso a análise dos actos de consciência continuaria distinta da psico logia da criação artística e tais actos não deveriam confundir-se com a obra literária.
Ficam ainda fora das nossas considerações todas as questões que dizem respeito ao conhecimento da obra literária, seus modos especiais e limites. Por exemplo, questões como estas: Por que actos de consciência se obtém o conhecimento de uma obra de arte literária? Quais as condições que devem ser cum-
1 Quais as modificações «essenciais» e as não essenciais só muito tarde se poderá demonstrar.
pridas da parte dos sujeitos quando uma obra literária for conhecida por muitos sujeitos cognoscentes como «uma e a mesma»? Quais são os critérios que nos permitem distinguir um conhecimento «objectivo» de uma obra literária de opiniões subjectivas e erradas? Haverá na realidade um conhecimento objectivo das obras literárias?, etc. Outras tantas questões que dizem respeito à possibilidade de uma « ciência da literatura». São problemas que até agora — que saibamos — nem sequer foram postos com plena consciência ou formulados correcta mente, mas que também não podem ser abordados enquanto reinar, em relação à essência da obra literária, um tal caos e uma tal divergência de opiniões *. Além disso, não queremos examinar expressamente as diferentes posições possíveis da parte do leitor perante a obra literária. Só quando for indispensável para a compreensão desta, quando se tratar de focar a obra literária como objecto estético, devemos reportar-nos à posição subjectiva em que tais objectos são dados.'
Finalmente, abstraímo-nos por enquanto de todas as questões gerais relacionadas com a essência do valor de uma obra de arte e, particularmente, de uma obra de arte literária. V erifi caremos decerto que nesta se podem encontrar valores e não- -valores e que estes levam à constituição d e . um valor total, particularmente qualificado, de toda a obra literária. O que, porém, constitui a essência de tais valores deve ficar fora da nossa consideração porque a solução deste problema pressupõe, por um lado, a solução do problema do v a lo r2 como tal e, por outro, a intuição da estrutura da obra literária. Pela mesma razão, deixamos por agora completamente de lado, no exame da obra literária, a questão do seu valor positivo ou negativo.
§ 7. O que não pertence à obra literária?
As observações precedentes deixam já entrever o que se deve eliminar da estruturação da obra literária como elemento estranho à sua essência, segundo a nossa maneira de ver. Vamos ser explícitos.