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3. A questão sobre o estatuto da matemática nos séculos XVI e XVII

3.1. A escola de Pádua

3.1.1. Alessandro Piccolomini

O autor que, na Itália de seiscentos, deu novo vigor ao debate foi Alessandro Piccolomini (1508 -1579)227. Em 1547 publicou em Roma um comentário às Questões

225 É necessário hoje em dia um esforço hiperbólico para acompanhar a produção de estudos sobre a

Universidade de Pádua, que chama a atenção dos estudiosos sobretudo devido à presença de Galileu entre os membros do seu corpo docente (1590-1610). Para o assunto que tratamos é, porém, especialmente relevante um estudo clássico que, embora pouco recente, não pode deixar de ser referido; além de tratar o tema do ensino da filosofia natural e da matemática nesse centro de saber, a verdade é que me fez seguir caminhos antes impensáveis: Randall 1961. Visões sintéticas sobre a discussão do estatuto da matemática na escola de Pádua encontram-se em Rose 1969, Giacobbe 1973b, 1974 e Galluzzi 1973. Sobre autores em particular, a bibliografia vai sendo indicada ao longo dos próximos sub-capítulos.

226 Giacobbe, um dos primeiros autores modernos a abordar o tema é cauteloso, mas situa claramente o

debate no período do Renascimento: “Ci restano di fatto i documenti che tale indagine [sobre a epistemologia da matemática] fu portata avanti, in Italia, da alcuni autori appartenenti all’ambiente culturale dell’Università di Padova. Allo stato attuale delle conoscenze non si può certamente affermare che essi furono i soli ad inoltrarsi in codesta direzione, non solo entro l’ambito vastissimo ed ancora inesplorato della cultura rinascimentale europea, ma neppure entro quello sia pure più limitato ma non ancora completamente consciuto della cultura veneta” (1974, 203). Noutro passo, afirma (1972a, 192): “Resta tuttavia l’importanza storica del suo [de Piccolomini] tratato: esso costituisce uno dei primi studi metateorici dell’età moderna sulla matematica [...]. Dell’importanza metodologica e gnoseologica del suo trattato, lo stesso Piccolomini è consapevole”. Os estudiosos que se lhe seguiram foram, porém, mais taxativos. Veja-se Maria Daniele (1983, 607): “Tale disputa [a autora refere-se à Quaestio...], alla quale diede il via il Commentarium de certitudine mathematicarum di Alessandro Piccolomini...”; Paolo Mancosu refere-se-lhe nestes termos: “The Quaestio de certitudine mathematicarum originated with the publication in 1547 of a treatise by Alessandro Piccolomini (1508-1578) entitled Commentarium de certitudine mathematicarum disciplinarum which can be rightly considered one of the most important Renaissance contributions to the study of the nature of mathematics” (Mancosu 1992, 243); Antonella Romano afirma (1999, 155): “Le débat [a autora refere-se à questão do estatuto das matemáticas] trouve ses origines dans un traité d’Alessandro Piccolomini...”; Luís Carolino afirma, por sua vez: “This question, known as the quaestio de certitudine mathematicarum, was first contemplated in sixteenth- century Italy” (2000, 77).

227 Para notícias biográficas sobre o autor veja-se a vita escrita por Bernardino Baldi (in Nenci 1998, 520-

Mecânicas de Aristóteles, junto ao qual anexou um pequeno tratado de cerca de 100

páginas que intitulou Commentarium de Certitudine Mathematicarum228. Neste anexo o filósofo italiano propõe-se atingir dois objectivos. Em primeiro lugar, deseja contestar, afirma, a tese averroística, depois adoptada cegamente pelos demais comentadores latinos, segundo a qual as demonstrações matemáticas possuiriam o mais alto grau de certeza porque nelas se faria uso da demonstração científica que se chamava potissima, considerada a mais perfeita forma de demonstração229. A tradição é concordante neste

1969. Nascido em Siena no seio da ilustre família aristocrata dos Piccolomini, ensinou filosofia moral em Pádua a partir de 1540 e, anos mais tarde, em Roma. Da sua biografia destacamos a ligação a universidades (Pádua, Bolonha, Roma) e Academias (Intronati, em Siena, Infiammati, em Pádua), e uma formação amplíssima e de altíssima qualidade. Além do estudo do Latim e Grego, da gramática, lógica, poética e retórica, adquiriu competências na área das ciências. Em Pádua, estudou filosofia natural, com o famoso Marcantonio Genova, matemática e astronomia, com o não menos famoso Federico Delfino. A sua vida é pautada por grande produtividade, em campos do saber diversíssimos, incluindo produção literária original, estudos ligados à prática da linguagem (literatura, retórica), filosofia (moral, lógica) e ciências exactas (esfera e teóricas dos planetas, tópicos de filosofia natural). Esta tão vasta produção foi caracterizada por algumas originalidades. Empreendeu investigação científica independente na área da geografia e é lugar comum salientar o papel fundamental que teve como divulgador de ciência, preferindo escrever em Italiano para ampliar o público-alvo. A sua escolha pelo vernáculo é percursora, tendo sido o primeiro a publicar, por exemplo, um tratado de filosofia natural em língua italiana. Humanista dinâmico, passou temporadas em Siena, Pádua, Bolonha e Roma, o que muito contribuiu para a divulgação da sua figura e obra.

228 A ligação entre o anexo e o comentário à mecânica não é fortuita (veja-se, mais acima, a nota 68, na p.

39 deste estudo). Segundo Bernardino Baldi, o pequeno comentário teria sido escrito em Roma no ano imediatamente anterior ao da sua publicação, ou seja, em 1546, mas a concepção deve ter tido lugar aquando da sua estada em Pádua, entre 1538 e 1542, pois assim o parece indicar um passo da sua obra

Institutione di tutta la vita dell’huomo nato nobile et in città libera (Daniele 1983, 609), razão que me

leva a considerar a sua análise no âmbito da escola de Pádua. A obra apresenta a seguinte estrutura: ff. 71v-72v: Praefatio; ff. 72v-75v: De scopo, siue fine logicae facultatis. Cap. Primum; ff. 76r-77v: De materia eiusdem Logicae facultatis. Cap. Secundum; ff. 78r-81v: De diuisione, & resolutione logica, ac de partibus eiusdem Logicae tum inueniendi, tum iudicandi. Cap. Tertium; ff. 81v-83v: De Demonstratione, & eius partibus, siue speciebus. Cap. Quartum; ff. 83v-91r: De quibusdam assumptis, ad declarandum medium Demonstrationis potissimae. Cap Quintum; ff. 91r-96v: De medio Demonstrationis potissimae. Cap. Sextum; ff. 96v-98r: Quae praelibenda sunt, ad mathematicas disciplinas pertinentia. & primum de materia ipsarum. Cap. Septimum; ff. 98r-99r: An sit finis in mathematicis disciplinis: & de earum vtilitate. Cap. octauum; ff. 99r-100r: De Problematis, & Theorematibus mathematicis, & eorum partibus. Cap. Nonum; ff. 100r-102r: De resolutione et compositione mathematica. Cap. decimum; ff. 102r-107v: an certitudo mathematica, ex vi demonstrationum potissimarum, oriri dicenda sit. Cap. Vndecimum; ff. 107v-109v: Quae tandem sit vera causa, cur mathematicae disciplinae, in primo gradu certitudinis, ab Auer. positae fuerint. Cap. XII; ff. 109v-110r: Peroratio. O tratado sobre a certeza das matemáticas era conhecido em Portugal e dois exemplares podem ser encontrados na Biblioteca Nacional de Lisboa. Um deles corresponde à primeira edição, de 1547, e possui a dedicatória a Ferdinando de Mendozza de 1546 (BNP SA 3436 P. ff. 71r-110r), o segundo corresponde à 2ª edição, de 1565, sem dedicatória e encadernada com outras obras (BNP SA 1454 V ff. 69-108). Sobre ambos, veja-se Leitão 2004, entradas 574 e 578. As citações feitas no seguimento baseiam-se na primeira edição. Na numeração das folhas, no entanto, substituiu-se a notação romana pela árabe, para simplificar a leitura. Sobre o tratado de Piccolomini a bibliografia é imensa, mas muito repetitiva. Por esta razão, remete-se o leitor apenas para o estudo seminal de Giacobbe 1972a, para o capítulo que lhe é dedicado em De Pace 1993, 21-75 (com ampla bibliografia) e para a ánalise dos seus argumentos em Português em Carolino 2000, 2006a e 2006b. Os trechos relevantes deste tratado encontram-se no apêndice a este tese, em conjunto com a tradução para Português.

229 Piccolomini 1547, 72r: “Primum & rationibus & authoritatibus, demonstrare intendimus mathematicas

ponto porque, acrescenta A. Piccolomini, os princípios que constituíam o ponto de partida das demonstrações matemáticas, de que são exemplos as definições, os postulados e as noções comuns com que Euclides inicia os seus Elementos, seriam, ao mesmo tempo mais conhecidos de nós e da natureza; ora, visto que o que é mais conhecido da natureza representa a causa, tais demonstrações seriam causais, assim satisfazendo os requisitos aristotélicos de uma demonstração perfeita230. Por outras palavras, o discurso dos Elementos euclidianos ofereceria um encadeado lógico (ordo

cognoscendi) representativo de uma ordo essendi, o que implicaria um procedimento

das causas para os efeitos. Esta adequação do discurso matemático a algo que lhe é exterior faria com que as demonstrações que o constituem necessariamente fossem as mais perfeitas. O seu segundo objectivo é apresentar a razão correcta por que se devem considerar as ciências matemáticas como as mais certas de todas, ou seja, Piccolomini não pretende negar às ciências matemáticas a sua superioridade no que toca à certeza, mas substituir o fundamento em que assenta esta sua certeza231.

A sua argumentação estende-se pelo capítulo décimo primeiro do

Commentarium, e assenta numa trave mestra: provar que nas demonstrações

matemáticas as premissas não apresentam a causa do resultado apresentado na conclusão. Numa primeira fase, A. Piccolomini descarta de imediato as causas extrínsecas, final e eficiente, visto que as matemáticas se ocupam da quantidade e esta não é um princípio activo, não possuíndo, por isso, capacidade para originar movimento nem para operar com vista a um fim232. Embora o matemático provoque movimento enquanto desenha figuras, acrescenta linhas, as divide, entre outras coisas, este

230 Piccolomini 1547, 71v: “Mathematicas demonstrationes, in primo esse ordine certitudinis (Ferdinande

Illustrissime) testatur Auer. 2. Metaph. Com.16. super illis verbis Arist. videlicet. Certitudo mathematica non in omnibus expetenda. Quam quidem Auer. authoritatem, omnes fere latini, quos ego viderim, veluti ex antiquioribus, Diuus Albertus, Diuus Tho. Marsilius, et Egidius; ex recentioribus vero, Zimarra, Suessanus, Acciaiolus, et plerique alii; si quando in eam inciderunt, vno ore, quasi alius alium sequens, ita interpretati sunt, vt propterea Auer. illud asserat, quia Mathematicus ex notioribus et nobis et naturae demonstrat: quippe qui vel solus, vel maxime, demonstratione illa, quam potissimam appelant, vtatur: qua scilicet simul, et quod effectus sit, et cur sit liquido innotescit”. Estas palavras são retomadas no início do capítulo 11 (102r-102v): “Ad illam redimus Auer. authoritatem .2. Metaph. quam a principio huius commentarioli, primis quidem verbis proposuimus inquirendam. haec autem est. Mathematicas videlicet demonstrationes in primo esse ordine certitudinis. Omnes fere ex Latinis, ut Albertus, Egidius, Marsilius, Linconiensis etiam referente Zimarra, & tandem fere Latini omnes, si quando in hanc authoritatem inciderunt, ex hoc dixerunt esse veram, quia demonstrationes mathematicae sunt dantes causam & esse, & sic potissimae quod idem est. quod enim est naturae notius, illud est causa non effectus.”

231 Piccolomini 1547, 72r: “Secundo vero loco, ne propter hoc labefactare videamur Auer. Sententiam in

.2. Metaph. Iam allegatam causam assignare est animus, qua Mathematicae disciplinae, in primo esse gradu ceritudinis dici possint”.

232 Piccolomini 1547, 106v: “Quantitas ergo, cum sit imperfectissimum accidens, nullamque sibi actuatam

ascribat materiam, sed informem illam sequatur, inter potentias actiuuas, siue inter rationes agendi, non connumerabitur”. Veja-se também De Pace 1993, p.24.

movimento é considerado metafórico. Ora, no âmbito do aristotelismo, demonstração e metáfora são incompatíveis, o que exclui a causa eficiente das demonstrações matemáticas233. Quanto à causa final, lembra A. Piccolomini o velho argumento de que a matemática opera com vista ao Bem e, portanto, com vista a um fim, visto que, por exemplo, dela nascem inúmeras disciplinas que contribuem para a felicidade dos homens, como a música, a óptica ou a mecânica, de que dependem, por sua vez, muitas outras disciplinas, como a arquitectura a náutica, entre outras234. A seu ver, porém, uma coisa é dizer que contribuem para o bem, outra dizer que demonstram por meio de causa final pois, como já havia referido, as matemáticas não possuem capacidade para operar com vista a um fim. Esta é a principal razão porque, acrescenta A. Piccolomini, nunca poderemos perceber em vista de qual fim, por exemplo, os ângulos alternos internos em rectas paralelas são iguais.

Das chamadas causas intrínsecas, a material também é rapidamente descartada. O matemático considera apenas a matéria inteligível e não a sensível; ora, a matéria inteligível, constituída pela quantidade, apenas existe na imaginação (fantasia) e é uma realidade mental sem qualquer substrato material concreto235.

Resta refutar a ideia de que as demonstrações matemáticas dão a conhecer a causa formal, ideia defendida por alguns comentadores, na esteira do próprio Aristóteles e de Averróis236. Piccolomini apresenta cinco argumentos fundamentais que rejeitam a

existência de provas causais na matemática, o que implicaria negar igualmente a existência de causa formal237.

O primeiro argumento defende que o meio das demonstrações matemáticas não é uma definição, nem de uma propriedade, nem de um sujeito, como acontece nas

233 Piccolomini 1547, 102v: “Primum igitur tenendum est, ex quatuor generibus causarum, per causam

efficientem, & finalem Mathematicum demonstrare non posse. de efficiente nullus dubitat, cum Mathematicus non consyderet motum nisi metaphoricum. demonstrare autem per metaphoras non debemus, teste Arist. & Auer. in Post., & in lib. de Coelo, & de Anima”.

234 Piccolomini 1547, 102v-103r.

235 Piccolomini 1547, 103r: “De materia autem videtur Arist.2.Post. ponere exemplum mathematicum in

hoc genere causae: & alii etiam, ut Egidius, & Linconiensis, referente Zimarra, alia exempla ponunt, ubi ex materia, intelligibili tamen non sensibili, assignatae sunt demonstrationes. materia autem intelligibilis, quantitas ipsa est, in phantasia collocata ut declarauimus superius, de materia mathematica pertractantes”. Veja-se também De Pace 1993, 25.

236 Piccolomini 1547, 103v: “Non defuerunt etiam, qui sequentes Aur. Sententiam primo Phy. com.I.

dicentis Mathematicum, tantum causam formalem consyderare, tenuerunt, Mathematicum non demnonstrare per materiam, siue per aliud genus causae, nisi tantum per causam formalem”.

237 O procedimento de Piccolomini será muito criticado por cometer uma flagrante petitio principii: por

um lado, pretende refutar a ideia de que a matemática é causal apresentando argumentos que negam a existência de cada uma das quatro causas aristotélicas nas suas demonstrações; porém, quando se trata de provar que não há causa formal na matemática, o filósofo procura demonstrar que a matemática não é causal.

demonstrações potissimae. A. Piccolomini exemplifica citando o teorema trigésimo segundo do primeiro livro dos elementos. Na sua opinião, o ângulo externo, que constitui o meio da demonstração para provar uma propriedade do triângulo, que é a de ter os três ângulos iguais a dois ângulos rectos, não constitui uma definição, nem de uma propriedade nem do triângulo. Com efeito, tanto o triângulo, como aquela propriedade (ter os três ângulos iguais a dois ângulos rectos) não precisam, para a sua definição, do ângulo externo, pois mesmo que este não existisse, o triângulo seria um triângulo e continuaria a possuir três ângulos iguais a dois ângulos rectos. O mesmo aconteceria com todos os outros teoremas de Euclides, Arquimedes, Teodósio e restantes matemáticos238.

O segundo argumento defende que, embora todas as demonstrações potissimae possuam um meio que é a causa imediata do efeito (A. Piccolomini acrescenta “ou da propriedade”) que apresentam na conclusão, em nenhuma demonstração matemática se encontra um meio tal, visto que, como já foi referido acima, na quantidade não há acção nem capacidade para a provocar. Desta vez o exemplo é tirado do teorema décimo sétimo do primeiro livro dos Elementos, onde Euclides prova que, prolongando um dos lados do triângulo, o ângulo externo que se obtém é maior que qualquer um dos ângulos internos opostos239. Também aqui não se pode pensar que existe uma ligação causal entre o conceito de triângulo e o ângulo externo240.

O teorema trigésimo segundo serve ainda de matéria para um terceiro argumento, onde Piccolomini defende que uma demonstração potissima se constrói recorrendo a um único meio imediato e verdadeiro, pois apenas uma poderá ser a causa imediata e verdadeira de um efeito, mas que tal não acontece nas demonstrações

238 Piccolomini 1547, 104r: “inducendo per omnia Theoremata Euclidis, Theodosii, Archimedis, &

aliorum. exempli gratia, si Theorema millies allegatum.32.primi Elem. perpendatur, cognoscetur quod angulus extrinsecus, qui ponitur ibi medium, ad declarandam passionem, quae est habere tres, de triangulo, non est diffinitio, neque trianguli (ut patet) nec passionis, tam enim triangulus quam habere tres, non indiget in sui diffinitione angulo extrinseco. quo non existente, etiam est triangulus, & habet tres. Idem patebit in omnibus fere aliis Eucl. Theorematibus & Problematibus. & sic patet minor, & ex consequenti conclusio nostra”.

239 A. Piccolomini engana-se: o teorema em que Euclides prova esta propriedade do triângulo é o décimo

sexto e não o décimo sétimo. Esta confusão é importante porque mostra que a sua fonte é Proclo, que introduz a mesma objecção em relação ao teorema décimo sexto, mas apenas no final do teorema décimo séptimo (veja-se De Pace 1993, 34-35).

240 Piccolomini 1547, 104v: “Et ideo nullus est, qui dicere possit quomodo in ratione & forma trianguli,

sit hoc quod angulus extrinsecus, sit maior quolibet opposito interiore, quod quidem tanquam passio probatur ab Eucl. prop. 17. primi libri”. Estes dois primeiros argumentos parecem, mas não são, redundantes. O ponto essencial é o mesmo: a prova com recurso ao ângulo externo. No entanto, o primeiro refuta a existência de causa formal (ou pela definição) e o segundo a existência de causa eficiente. Além disso, o primeiro argumento tem por trás a objecção à construção (“mesmo que este não existisse...”) e o segundo, provavelmente, a objecção à demonstração, depois de admitida a construção.

matemáticas. Com efeito, nestas pode demonstrar-se, recorrendo a diferentes meios, uma mesma propriedade de um mesmo sujeito, coisa que não poderia suceder se o meio fosse a causa única e imediata. Ora, a já referida propriedade do triângulo (ter três ângulos iguais a dois ângulos rectos) é demonstrada de forma diferente por Teão e Euclides, Campano e Proclo241. Como vimos acima, a demonstração de Proclo assume

superior interesse porque visa obviar à objecção de que a construção auxiliar não é possível no exterior, o que o leva a traçá-la no interior da figura. Piccolomini não pode ignorar esta proposta de Proclo e admite que ela procede a partir de um meio

intimiori242.

O quarto argumento apresentado pretende que, embora em qualquer demonstração potissima, se possa trocar a extremidade maior com a menor, assim não

241 Piccolomini 1547, 104v: “Tertio ratiocinari possumus. passionis in subiecto, vnum tantum

immediatum & verum debet esse medium: ex quo conficiatur demonstratio potissima: sed passiones mathematicae non habent talia vnica immediata media. ergo & c. maior patet, quia medium est causa, ergo vnicum verum medium, quia vnica est propria uniuscuiusque causa teste Arist.2. de generatione, & .2.Phys. Minor ex hoc probatur, quod passiones mathematicae nullo prioritatis ordine, in subiectis reperiuntur. verus enim illarum ordo, ex hoc procedit, quod fluunt ex subiecto, & eius forma. quia cum primum datur huiusmodi fluxus, datur etiam ordo prioritatis naturae, quia unum inquantum unum, non potest immediate producere nisi unum, vt passim habetur apud Arist. Sed passiones mathematicae non possunt habere talem ordinem vel processum, siue fluxum a subiecto, quia quantitas non est de principiis actiuis, teste Auer.4.Phy.com.84. Et quod hoc sit verum, videmus quod Mathematici easdem passiones de eisdem subiectis, variis assumptis mediis, demonstrant. aliter enim triangulum habere tres ostendit Theon vel Eucl. aliter Campanus, & aliter etiam Proclus, qui hoc ipsum quod ego dico animaduertit”. Sobre a expressão “Theon uel Euclides” é de lembrar que no século XVI a obra de Euclides era conhecida na edição de Téon de Alexandria, sem que se soubesse distinguir perfeitamente o que era da autoria de um e de outro (veja-se Heath 1956, I, 54-57 e De Pace 1993, 30 n. 26).

242 Piccolomini 1547, 104v-105r: “demonstratio quam facit Proclus de habere tres, videtur esse ex

intimiori medio quam demonstratio Theonis, non enim accipit quiddam extrinsecum, sed ex perpendiculari intrinseca ostendit propositum”. Os defensores da matemática, habituados a este argumento (que de um princípio se tiram diversas conclusões), costumavam assinalar que, havendo diversas provas de um mesmo resultado, apenas uma era pela causa. Isto força A. Piccolomini a defender também que todas as provas matemáticas possuem igual valor epistemológico ou a mesma dignidade, porque só assim tem validade o seu argumento principal. Esta ideia é defendida por Proclo, como vimos (In Euclidem 69), e pela anedota que Filópono conta no seu comentário ao primeiro livro dos Segundos

Analíticos, na qual se afirma que Platão propunha aos seus ouvintes um problema matemático para

resolverem e que os louvava da mesma forma, quer utilizassem uma ou outra prova (Piccolomini 1547, 105r: “Siquis autem diceret, quod quamuis plures eiusdem passionis demonstrationes esse possint, una tamen erit sola potissima, per medium immediatum. responderi potest, quod hoc est falsum, quia Proclus aperte asserit diuersas aequo modo perfectas, posse fieri in Mathematicis, passionum demonstrationes. Dein habemus Platonem, qui referente Philopono primo Post. auditoribus suis, aliquod semper demonstrandum Problema proponebat. Eos autem quamuis diuersimodi id demonstrarent, quia tamen demonstrabant, aeque laudabat, sicut fecit de inuentione duarum mediarum proportionalium, pro dupl<ic>atione Cubi. Sciebat igitur Plato, quod natura mathematicarum facultatum, eiusmodi erat, ut varie possent illarum passiones demonstrari”). O mesmo argumento é repetido mais à frente, na página 107r: “Addit etiam non omnia Eucl. Theoremata, quasi per catenam, sibi ipsis semper ordine quodam