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Benito Pereira e os filósofos jesuítas

3. A questão sobre o estatuto da matemática nos séculos XVI e XVII

3.2. Os Jesuítas

3.2.2. Benito Pereira e os filósofos jesuítas

O contributo mais importante e influente para a discussão sobre o estatuto da matemática da parte dos filósofos jesuítas foi dado por Benito Pereira, professor de filosofia do Colégio Romano, de origem espanhola311. No seu trabalho sobre física

aristotélica intitulado De communibus omnium rerum naturalium principiis et

affectionibus, publicado em 1576 e depois sucessivas vezes reeditado, dedicou extensas

páginas ao tema312. A sua abordagem impressiona ainda hoje pela abrangência, pela profundidade técnica e pela superior qualidade. O assunto está disperso por diversos capítulos da obra, dos quais destacamos os seguintes:

- Scientiam speculatiuam non dici vniuoce de Mathematicis disciplinis & aliis, quoniam doctrina Mathematica non est proprie scientia. (Liber Primus, Cap. XII p. 26 ss.);

- Quae illarum trium scientiarum sit nobilissima, & certissima (Liber Primus, Cap. XVI, pp. 33 ss);

- Quae illarum trium scientiarum sit prima (Liber primus, Cap. XVII; pp. 34 ss); - An scientiae Matematicae tractent ullum genus caussae (Liber Tertius, Cap. III, pp. 75 ss);

- An praestantissima illa demonstratio, quae ab Aristotele describitur priori libro Poste. vel solum vel maxime reperiatur in disciplinis Mathematicis. (Liber Tertius, Cap. IIII, pp. 77 ss.);

- An demonstrationes Mathematicae maxima ex parte constent ex his quae sunt nota nobis, & secundum naturam (Liber Tertius, Cap. IX, pp. 89 ss.)313.

Os autores mais recentes não deixaram de evidenciar a sua opinião negativa da matemática, expressa de forma clara e taxativa no primeiro dos capítulos enunciados:

Mea opinio est, Mathematicas disciplinas non esse proprie scientias: in quam opinionem adducor tum aliis, tum hoc uno maxime argumento. Scire est rem per caussam cognoscere propter quam res est; et scientia est demonstrationis effectus; demonstratio autem (loquor de perfectissimo demonstrationis genere) constare debet ex his quae sunt per se et propria eius quod demonstratur; quae uero sunt per

311 Sobre ele, veja-se Giacobbe 1977 e Carolino 2006a 22. 312 Não consultei esta edição, mas antes a de 1585 (Pereira 1585). 313 Estes capítulos estão transcritos no âpendice.

accidens, et communia, excluduntur a perfectis demonstrationibus, sed Mathematicus, neque considerat essentiam quantitatis, neque affectiones eius tractat prout manant ex tali essentia, neque declarat eas per proprias caussas, propter quas insunt quantitati, neque conficit demonstrationes suas ex praedica<t>is propriis et per se, sed ex communibus, et per accidens: ergo doctrina Mathematica non est proprie scientia.314

Admitidas as premissas que propõe, a conclusão não deixa de ser óbvia e necessária, conquanto pareça paradoxal. Pereira estabelece como premissa maior que só se deve considerar científico o saber que se organiza de acordo com as condições e requisitos propostos por Aristóteles nos Segundos Analíticos, o que não podia chocar ninguém. Afirmar que as matemáticas não preenchem estes requisitos nem cumprem estas condições não era consensual, mas tinha os seus adeptos, entre os quais Piccolomini. Admitido isto, por inferência lógica e silogística, não se pode concluir senão que as matemáticas não devem ser consideradas ciências, tal como antes fizera, de resto, Catena. No capítulo terceiro elabora a ideia de que a matemática não oferece qualquer género de causa, parafraseando livremente Piccolomini.

Contudo, reduzir o pensamento de Pereira a um radicalismo insensato antimatemático é simplificar excessivamente o seu pensamento. Três pontos precisam de clarificação. O primeiro é este. Pereira nega estatuto científico à matemática tendo em consideração apenas, e enfatizo este “apenas”, uma definição estrita de ciência (“proprie”); isto é, uma definição de ciência que inclui todos os requisitos que o filósofo espanhol julga pertencer ao modelo de ciência aristotélico. Em segundo lugar, Pereira reconhece que há diferentes critérios cuja aplicação resulta em alteração do estatuto da matemática. Genericamente, Pereira considera a teologia a mais nobre ciência de todas315. Esta posição é justificada por se debruçar sobre um objecto superior. Por

aplicação do critério ontológico, a posição seguinte é ocupada pela física, que se debruça sobre substâncias, e a última, pela matemática, que se ocupa de acidentes316. Mas se se considerar o critério da certeza, o cenário muda de figura: a teologia continua a ser superior às restantes se se entender que o conceito de “certeza” traduz a firmeza e

314 Pereira 1585, 26-28.

315 Pereira 1585, 33: “Est concors sententia omnium Metaphysicam dignitate antecellere reliquis

disciplinis propter summam nobilitatem earum rerum, quas tractat; agit enim de Deo & intelligentiis; quapropter vocatur prima Philosophia, Metaphysica, Sapientia, Theologia hoc est scientia Dei; vel quoniam hanc proprie solus Deus habet, vel quia haec sola continet scientiam rerum diuinarum”.

316 Ibid. “Secundum locum dignitatis obtinet Physica; extremum autem doctrina Mathematicae; etenim

Physicus disserit de substantiis & corporibus naturalibus...”; “Mathematicae autem disciplinae in sola cognitione accidentium occupantur; agunt enim de quantitate, & his quae in quantitate insunt affectionibus...”.

imutabilidade do objecto, mas se se considerar a certeza do ponto de vista da força e firmeza das demonstrações, tem de se admitir forçosamente que, pela dificuldade intrínseca do seu objecto, é superada pelas restantes ciências317. Ora, comparando a matemática com a física (as “restantes ciências”), verifica-se que, em relação a este critério, a primeira leva de vencida a segunda318. Não fosse a excessiva análise do

conceito de “certeza” e poder-se-ia dizer que Pereira quase concorda com Clávio. E, último lugar, Pereira enuncia praticamente todos os argumentos dos adversários e refuta-os com grande brilhantismo e de forma extraordinariamente convincente. Nem todos os intervenientes no debate possuem esta envergadura intelectual nem semelhante capacidade argumentativa. É este seu estatuto que impõe as suas ideias como representativas de um corpo social.

A força do texto de Pereira levou a crítica moderna a acentuar uma fractura entre filósofos e matemáticos jesuítas no âmbito da discussão em torno do estatuto científico da matemática. Os primeiros defenderiam a posição antimatemática de Piccolomini, os segundos seriam pró-matemática. Esta posição tende a acentuar a dimensão social do debate. Os adversários seriam duas classes diferentes de agentes sociais que veiculam dois conjuntos de ideias distintas. No entanto, este modelo simplifica uma realidade muitíssimo mais complexa e ignora as diferenças de estatuto entre membros de cada grupo. Os verdadeiros intervenientes, aqueles que podem mudar o curso da questão, são muito poucos e neles se incluem jesuítas de primeira linha, com grande envergadura intelectual e capacidade de liderança, como Clávio ou Pereira. No entanto, é muito difícil afirmar que há uma luta de classes no debate sobre o estatuto da matemática e a opinião de Pereira não se pode considerar unânime entre filósofos, como veremos na segunda parte deste estudo. O que há é dois grupos de intelectuais com competências diferentes e metodologias de ataque do problema substancialmente desiguais.

317 Pereira 1585, 34: “Certitudo autem scientiae duplex est; vna spectatur ex firmitate ac immutabilitate

rerum quae docentur, eaque tantum maior est quanto res quae cadunt sub scientiam, sunt magis immateriales et expertes potentiae; quo fit vt Metaphysica maxime certa hoc nomine censeri debeat; propterea quod agit de rebus diuinis quae a materiae, potentiaeque concretione penitus segregatae omni ex parte immutabiles sempiterno aeuo perseuerant...”; “Altera certitudo scientiae nascitur ex ui firmitateque rationum ac demonstrationum, quibus nititur scientia, quarum maior copia est in aliis scientiis quam in Metaphysica, propter summam difficultatem earum rerum quas tractat...”.

318 Pereira 1585, 34: “Si autem Physicam cum Mathematicis disciplinis conferamus secundum

Sumário

Piccolomini, Catena e Barozzi mostram a revitalização do debate sobre o estatuto da matemática no contexto do renascimento emergente na Itália do século XVI e ilustram a amplitude e a tipologia dos argumentos esgrimidos no âmbito do debate em Pádua. Na sua senda, muitos outros autores, matemáticos e filósofos, ampliaram o contexto geral. Destes salientamos Giuseppe Moleto319, Bernardino Tomitano320, Daniele Barbaro321, Tartaglia e Girolamo Cardano322 e Jacopo Mazzoni323.

Os textos analisados mostram igualmente como o triângulo Aristóteles-Euclides- Proclo fornece a base de uma discussão que há-de ter papel fundamental na construção da cultura científica moderna. Utilizando as palavras de Giacobbe:

Si può anzi affermare che la via attraverso la quale gli scienziati del Cinquecento cominciarono ad allentare i vincoli che li tenevano legati alla concettistica e alla logica della scienza aristotelica, fu quella di una reflessione filosofica sulla matematica all’interno della stessa corrente dell’aristotelismo rinascimentale.324

Acima de tudo, é importante realçar dois aspectos: a) a força dos argumentos propostos por Piccolomini ou Catena e a dificuldade enorme que é refutá-los; b) o paradoxo que é considerar a matemática uma ciência genericamente, mas não se aplicar a doutrina dos Segundos Analíticos.

319 Para a vida, obra e tratamento do tema da certeza da matemática por Moleto, veja-se Carugo 1983.

Nasceu em 1531 em Messina, onde aprendeu matemática com Maurolico e se dedicou ao estudo da medicina e filosofia. Praticou medicina e ensinou matemática a nobre em Veneza até que em 1570 foi chamado para Mântua, para ensinar matemática ao filho do Duque, príncipe Vincenzo Gonzaga. Depois da morte de Catena, em 1577, foi designado pelo senado veneziano professor de matemática na Universidade de Pádua, cadeira que ocupou durante onze anos, até à sua morte em 1588, com 57 anos. A sua saúde débil explica o facto de a maioria dos seus escritos não ter sido acabada ou o facto de nada ter publicado em vida. No entanto, nos seus manuscritos inéditos podem encontrar-se discussões sobre a natureza da matemática, o seu estatuto de ciência demonstrativa, e a sua posição em relação às outras ciências especulativas.

320 Sobre Tomitano: De Pace 1993, 155-157. Filósofo, médico, literato, foi professor de Lógica em Pádua

(de 1539 a 1563) e membro da Academia dos Infiammati, onde deve ter privado com A. Piccolomini e Daniele Barbaro.

321 A ele é dedicado o texto em que Barozzi refuta os argumentos de Piccolomini. Daniele Barbaro anota,

em carta dirigida a Barozzi, datada de 27 de Junho de 1560: “Sempre io sono stato di quella opinione che difendete et haveva caro che venisse uno che rifiutasse quella del Piccolomini come nova et non fondata. Vi havete portato honoratamente” (a carta encontra-se publicada em Rose 1977, a citação é da página 161). Sobre ele veja-se ainda Daniele 1983, 610 e De Pace 1993, 122-127.

322 Sobre Girolamo Cardano e o estatuto da matemática, veja-se Gilbert 1963, 88 n. 33. 323 Professor de Galileo. Sobre ele veja-se De Pace 1993, 261-336.

324 Giacobbe 1973b, 9. O mesmo académico enfatiza o papel da matemática na reflexão quinhentista

É a rede de escolas jesuíta que se encarrega de levar o debate aos quatro cantos da Europa, divulgando as teses de Piccolomini, dos seus apoiantes e adversários. Além disso, os Jesuítas produzem os textos que se tornarão referência na discussão do tópico e em que se incluem aqueles da autoria de Clávio, Biancani e Pereira. A estes devem acrescentar-se os comentários dos professores de Coimbra, de que se falará no próximo capítulo. Ao longo do século XVII serão estes os principais autores citados no âmbito da discussão da Quaestio ou de tópicos associados.

Os Jesuítas também serão a primeira instituição a reflectir sobre o lugar que a reflexão sobre o estatuto da matemática deve ocupar no currículo escolar, assim clarificando o papel pedagógico da discussão.