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Clávio e a defesa da matemática

3. A questão sobre o estatuto da matemática nos séculos XVI e XVII

3.2. Os Jesuítas

3.2.2. Clávio e a defesa da matemática

Nascido em Bamberga, Alemanha, em 1538, Clávio juntou-se aos Jesuítas em 1555 em Roma. Estudou filosofia em Portugal no final da década de 50 e partiu então para Roma onde se tornou professor do Colégio Romano até à sua morte. Clávio ganhou grande reputação como matemático no interior da Companhia com o seu trabalho na revisão do calendário juliano298. É esta auctoritas que lhe dá imensa eficácia na luta que empreendeu toda a vida a favor da matemática.

Cristóvão Clávio trabalhou incansavelmente para conseguir um estatuto mais elevado para os professores da Academia e um papel autónomo para a matemática em relação à a filosofia e teologia. Para isso, produziu uma defesa da matemática muito ampla e com resultados que moldaram a cultura ocidental299. A sua acção produziu uma reforma estrutural que transformou mentalidades para sempre e assentou em três eixos fundamentais.

O primeiro é a defesa epistemológica da matemática nos prólogos das suas obras matemáticas. Num capítulo intitulado “Nobreza e superioridade das ciências matemáticas”, depois de explicar que a matemática ocupa um lugar intermédio entre a metafísica e a física, acrescenta:

Si vero nobilitas, atque praestantia scientiae ex certitudine demonstrationum, quibus vtitur, sit iudicanda; haud dubie Mathematicae disciplinae inter caeteras omnes principem habebunt locum. Demonstrant enim omnia, de quibus suscipiunt disputationem, firmissimis rationibus, confirmantque, ita vt vere scientiam in auditoris animo gignant, omnemque prorsus dubitationem tollant: Id quod aliis scientiis vix tribuere

296 A indicação desta dissertação pode encontrar-se em Dear 1995, 41 e n. 30-31. Era prática habitual na

altura que o professor escrevesse o texto da dissertação, para depois o aluno o defender (para uma história da dissertação, veja-se Chang 2004; para introdução à problemática das dissertações no contexto português, veja-se Pereira Gomes 1961).

297 Como mostra o panfleto com proposições matemáticas feito para um evento desse género no colégio

jesuíta francês de Pont-à-Mousson em 1622, e onde se dissertava sobre a natureza da matemática afirmando a disciplina como científica (Dear 1995, 41 e n. 32).

298 Os pormenores matemáticos do calendário podem ser encontrados no seu tratado Novi calendarii

Romani apologia, reimpresso diversas vezes e que possuía mais de 800 páginas (Clávio 1611-1612, V).

299 Sobre Clávio, a bibliografia começa a ser tão vasta a ponto de ser difícil conhecê-la toda. Saliento

Wallace 1984 136-141, Baldini 1992 e 1995, Homann 1999 (que reproduz a tese que enunciei acima na p. 64), Smolarski 2002. Em Português, uma pequena síntese pode ser encontrada em Carolino 2006a, 26-30.

possumus, cum in eis saepenumero intellectus multitudine opinionum, ac sententiarum varietate in veritate conclusionum iudicanda suspensus haereat, atque incertus.[...] Quod quam longe a Mathematicis demonstrationibus absit, neminem latere existimo. Theoremata enim Euclidis, caeterorum Mathematicorum, eandem hodie, quam ante tot annos, in scholis retinent veritatis puritatem, rerum certitudinem, demonstrationum robur, ac firmitatem.300

Clávio realça a firmeza, a certeza, a estabilidade e eternidade das verdades matemáticas. A confrontação com a teoria da ciência aristotélica é evitada e Clávio opta pela via do consenso na defesa da disciplina. Dos critérios possíveis para avaliação do estatuto da disciplina (ontológico/metodológico), é escolhido o da certeza do processo demonstrativo, unanimemente aceite por todos: “Se”, e só se, poderá acrescentar-se, “se pensar que a nobreza e superioridade científica deve ser considerada em função da certeza das demonstrações, que se usam, sem dúvida as disciplinas matemáticas ocuparão um lugar cimeiro entre todas as outras”. Por outro lado, a corrente histórica que suporta o elogio de Clávio é aquela fundada em Ptolomeu, como indica a referência à “multidão de opiniões e variedade de asserções” próprias das demais ciências. Outro passo corrobora esta última afirmação e repete as principais linhas de argumentação citadas:

Quod si modum demonstrandi, quo vtitur Astronomia, consideremus, nemo negabit, omnes naturales disciplinas ab hac scientia longe superari. Adhibet enim ad ea confirmanda, de quibus agit, demonstrationes efficacissimas, Geometricas nimirum, & Arithmeticas, quae ex sententia omnium philosophorum primum certitudinis gradum obtinent. Quare non sine [4] ratione vtroque capite, nempe nobilitate subiecti, & certitudine demonstrandi, voluit Ptolomaeus ad initium Almagesti Atronomiam simpliciter inter reliquas scientias esse primam. Ait enim philosophiam naturalem & Metaphysicam, si modum demonstrandi illarum spectemus, appellandas potius esse coniecturas, quam scientias, propter multitudinem, & discrepantiam opinionum301.

Ptolomeu é, desta vez, explicitamente referido, bem como a sua tese de que a certeza da demonstração matemática supera a instabilidade das teorias físicas e metafísicas.

Sobressai o facto de que Clávio evita a questão da causalidade e a discussão sobre a não adequação da matemática ao modelo dos Segundos Analíticos. Este facto foi notado por outros estudiosos, sendo avançada a hipótese de que Clávio considerava o

300 Clávio 1611-1612, I, 5. Veja-se o comentário a este texto em Homann 1983, 240. 301 Clávio 1611-12, I, 3.

tópico de menor importância no âmbito da sua visão reformista do ensino da matemática no interior da Companhia de Jesus302. Contudo, não é provável que Clávio considerasse a discussão supérflua. Pelo contrário, sabemos que se empenhou em delegá-la noutros303. A sua opção de não referir o tópico deve ter sido tomada tendo em vista a) a evidente dificuldade de defesa da disciplina na sua confrontação com a epistemologia aristotélica e b) a evidente necessidade de consenso para a criação de um documento que satisfizesse uma visão pedagógica comum a todos os membros da Companhia. A sua acção, que se pode caracterizar como “política”, impede abordagens epistemológicas polémicas e uma acção demasiado pró-activa poderia gerar, e acabou por gerar, como veremos, reacção intensa e indesejável.

Os textos de Clávio terão grande divulgação e influência em outros Jesuítas, como António Possevino que, na sua monumental enciclopédia Bibliotheca Selecta (Roma, 1593), defende a matemática nos mesmos termos304.

O segundo eixo de actuação corresponde à tentativa de influenciar a versão final da Ratio Studiorum, através da produção de diversos documentos sobre o modo como se pode (e deve) promover o estudo da matemática no interior da Companhia. Quatro documentos são relevantes: “Ordo seruandus in addiscendis disciplinis mathematicis”, “Modus quo disciplinae mathematicae in scholis Societatis possent promoueri”, “De re mathematica instructio”, “Oratio de modo promouendi in Societate studia linguarum politioresque litteras ac mathematicas” 305. Pelo menos o segundo poderá ter sido lido

pela comissão encarregada de compor a Ratio306.

Neste documento, Clávio trata o perfil adequado para o professor de matemática. Deve sobressair entre os demais pela sua erudição e auctoritas; dedicar-se à disciplina em exclusividade e com espírito de missão; deve participar em acontecimentos com

302 O facto é notado por Peter Dear (1995, 38-40) e por Luís M. Carolino, que afirma: “Em suma, o mais

eminente dos matemáticos jesuítas da segunda metade do século XVI não procurou promover a matemática no contexto da epistemologia aristotélica” (Carolino 2006a, 29). É este último, quem justifica a atitude de Clávio: “Cristoph Clavius não abordou directamente a «Quaestio de Certitudine Mathematicarum» em nenhuma das suas obras. É provável que, face às razões com que fundamentou o seu entendimento sobre a superioridade da matemática em relação à ciência natural, não tenha sequer considerado essa discussão pertinente para os seus objectivos de promover institucionalmente a matemática” (Carolino 2006a, 29).

303 Onde se incluem alguns dos seus alunos, como se verá.

304 Clávio terá, aliás, auxiliado Possevino a escrever o capítulo dedicado à matemática (veja-se, sobre

Possevino e a sua ligação a Clávio, Crombie 1996b, 124-132; Carolino 2006a, 29; para uma sua biografia, veja-se Baldini-Napolitani 1992, I.2., 80-81).

305 Todos os documentos podem ser encontrados em MPSI 7, 119-122.

306 Homann 1999, 61 e 64. Smolarski 2002, 450 (neste último estudo, a tradução mais moderna deste e

outros documentos). Um importante estudo dedicado à interpretação do “Ordo seruandus...” está em Gatto 2006.

relevância académica, tornando-se metáfora do estatuto da própria disciplina. A relevância da disciplina é realçada, por ser necessária para aprender física e para compreender exemplos em Aristóteles e Platão. O perfil do professor de filosofia também é redesenhado: não deve incluir nas suas aulas tópicos antimatemática (como referir que não é científica, não possui demonstrações, não é útil) e deviam eles próprios aprender mais matemática; assim veriam o seu estatuto melhorado, seja por cometerem menos erros seja por ganharem influência junto dos seus alunos. Propõe-se que os alunos que quisessem alcançar o grau de mestre fossem igualmente avaliados em tópicos de matemática. Clávio surpreende quando expressa o seu sentimento premonitório de que a ausência de Jesuítas a estudar matemática poderia prejudicar a Companhia307. Contudo, não é este o ponto essencial a reter destes documentos. Antes deve salientar-se a tónica na autoridade e superioridade do professor de matemática.

A influência de Clávio na Ratio não se esgota na produção destes documentos. A longa defesa da matemática e a sua ligação a ciências tão diversas como a poesia, história, política, metafísica, teologia, direito, medicina ou agricultura, que se pode encontrar na primeira versão do documento, lembram o fraseado dos textos de Clávio. Além disso, o programa de estudos de 1586 refere ainda que o Colégio Romano devia dispor de dois professores de matemática. O primeiro daria as lições de matemática no âmbito do curso de filosofia e podia muito bem ser o próprio professor de filosofia. O segundo professor, “que pode ser o Padre Clávio”, afirma-se no documento, asseguraria o ensino da disciplina na já referida Academia de Matemática.

Esta academia existia desde 1553 e já era dirigida por Clávio desde 1561. Por volta de 1580, Clávio tentara já um primeiro pedido para que se aceite oficialmente a Academia como um curso de dois-três anos para jovens jesuítas promissores. O seu pedido foi negado, mas a disciplina e os seus docentes viram o seu estatuto emancipado, deixando de ser subsidiários da área de estudos da Filosofia e Teologia. A proposta contida na primeira versão da Ratio Studiorum (1586) é, portanto, um segundo pedido, que foi novamente recusado. Finalmente, em 1594, o reitor do Colégio Romano, futuro Cardeal Bellarmino aprovou a proposta de Clávio308.

A partir desta data os jesuítas formados na academia passam a ostentar o título de mathematici, o que mostra o esforço posto na construção de uma identidade social. A Academia funcionou em ambiente selecto e qualitativamente superior, cumprindo o

307 Homann 1999, 61–64; Smolarski 2002, 450.

ideal da auctoritas de alunos e professores, prescrito por Clávio. O número de alunos é reduzido e para admissão requeria-se nomeação por um professor de matemática da Companhia e pelos superiores da província onde vivia o candidato309. Para se fomentar o estudo da disciplina, a quantidade nunca foi uma opção, mas sim a qualidade, em estratégia que a história provou vencedora.

Este foi o mais valioso dos contributos de Clávio para a defesa da matemática. A criação de uma comunidade de forte impacte intelectual que, uma vez dispersada pela Europa e pelo mundo, pudesse lançar as bases da moderna cultura científica.

Aos alunos de Clávio coube a continuação, mesmo após a sua morte, da defesa da disciplina. Em Portugal, salienta-se o papel de João Delgado na defesa da matemática. Internacionalmente, os dois textos que substituíram os de Clávio como referência para uma apologia da disciplina são os de Giuseppe Biancani e Hugo Sempílio310. Estas obras, ao contrário de Clávio, não buscam soluções em tradições e argumentos alternativos (como em Ptolomeu, ou no duplo critério do prólogo do De

Anima), mas entram abertamente no campo da teoria da ciência aristotélica,

dramatizando posições. Estas obras não introduzem conceitos nem argumentos novos, mas procedem a uma sistematização e dissecação dos argumentos esgrimidos pelos detractores da matemática. A sua divulgação será enorme e entrarão em diálogo com importantes textos de autores portugueses.

309 De 1594 a 1612 apenas são conhecidos 25 mathematici; consegue identificar-se mais 15 estudantes

durante o período de 1463 a 1594, o que mostra o reduzido número de estudantes (Baldini 2003, 52). Eis o elenco dos alunos: 1. Alunos do curso formal até 1612 (ou seja, os que, a partir de 1594, ficam habilitados, com a conclusão do curso, ao título de mathematici) Giovanni Giacomo Staserio (1594- 1595); Giovanni Maria Camogli (1597-1598); Giuseppe Biancani (1598?-1600); Odon van Maelcote (1601-1603); Giacomo Fuligatti (1602-1603); Ippolito Giannotti (1602?-1604); Giovanni Francesco Marzi (1603-1606); Orazio Grassi (1604-1606); 2. Alunos do curso informal (todos os alunos até 1594 e apenas os que não seguem o curso formal a partir dessa data; excluímos os alunos que depois de informalmente seguirem o curso, acabaram por concluir o formal): John Hay (1566-1568): James Bosgrave (1567-1570); Bartolomeo Ricci (1570-1574); Luca Valerio (1575-1577); Matteo Ricci (1575- 1577); Ferdinando Capece (1575-1576); Richard Gibbons (1575-1576); Vincenzo Regio? (1574-1578); Paul Pistorius (1577-1578); Muzio De Angelis (1580-1585); João Delgado (1580-1585); Jean Deckers (1584-1585); Alessandro De Angelis (1585-1590); Carlo Spinola (1586-1587); Gaspario Alperio (1590- 1597); Angelo Giustiniani e Giovanni Battista Luca (1594-1595); Giovanni Giacomo D’Alessandro, Janos Nagy, Muzio Rocchi, Mario Gibelli, Benedetto Cerroni, Raphael Kobnzl (1595-1596); Sabatino de Ursis (1600-1601); Bernardino Gennaro (1600-1605); Vincenzo Figliucci, Paolo Bombino, Alessandro Pernato (1602-1603); G. de St. Vincent (1606?-1612?); Giulio Aleni (1607-1608); Ian Wremann (1607- 1609); Giovanni Paolo Lembo (1607-1612); Paul Guldin (1609-1612).

310 Veja-se os capítulos que lhes são dedicados, mais à frente nesta tese (parte 2, pontos 2.3.3.2. e