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1. Correntes de pensamento da Antiguidade Clássica

1.4. Ptolomeu

A defesa da matemática teve sempre uma alternativa fundamental à da sua confrontação com o modelo de ciência aristotélico, tal como empreendida por Proclo. Esta alternativa foi Ptolomeu e esteve presente ao longo da Idade Média128.

De imediato se nota a discrepância entre o espaço que Ptolomeu concedeu à discussão de temas de filosofia da matemática (o equivalente a cerca de 3 páginas A4 escritas a espaço simples) e o impacte desmesurado que estas tiveram ao longo da história. Ao contrário da obra de Proclo, a Syntaxis Mathematica de Ptolomeu foi muito bem conhecida e debatida ao longo da idade média e renascimento, sendo objecto de resumos e simplificações, sob a forma de compêndios ou manuais de iniciação à astronomia.

A Syntaxis é uma obra eminentemente matemática e, como tal, abstém-se de apresentar uma teoria física em conformidade com as suas conclusões. No entanto, Ptolomeu deixou claro que os seus modelos matemáticos pretendiam representar uma correspondente realidade física, na obra complementar da Syntaxis, a que chamou

Hipóteses Planetárias. Aqui, não só discutiu questões físicas concretas, como a das

distâncias entre os planetas, como também procurou apresentar as causas dos movimentos planetares129. O discurso matemático expressa um significado que encontra na realidade sensível o seu referente.

Este papel atribuído à matemática, que observamos na prática científica de Ptolomeu, tem, no entanto, uma formulação explícita no prefácio filosófico da

Syntaxis130. Nele se discute a organização do conhecimento e, em especial, a relação

entre as três ciências especulativas enunciadas por Aristóteles: a física, a matemática e a teologia. Contudo, embora o nome de Aristóteles seja expressamente citado, Ptolomeu

128 A defesa da matemática, acentuando muitas vezes a sua importância propedêutica para o estudo da

filosofia em geral, e não apenas para o estudo da física, é também comum a muitos autores neo- platónicos, como Nicómaco de Gérasa ou Teão de Esmirna, bem como nos seus adaptadores latinos, como Boécio, mas nunca estes atingiram o estatuto de Ptolomeu.

129 Taub 1993, 4. A edição das Hipóteses Planetárias está em Goldstein 1969.

130 Sobre o significado deste prefácio, veja-se Taub 1993. O texto grego citado encontra-se em Halma

1815-1816, 1-6 (infelizmente, não tive acesso satisfatório à conhecida edição de J. L. Heiberg, Syntaxis

Mathematica, 2 vols., Leipzig, Teubner, 1898-1903). Utilizei também as interessantes notas presentes em

oferece uma posição original, contrastante e alternativa à do Estagirita. A teologia, defende, estuda o que é imóvel e não sensível; a física, o que é sensível e móvel; o objecto da matemática, finalmente, está situado entre o da física e o da teologia e é um atributo de todas as coisas que existem sem excepção, tanto as mortais, como as imortais. Nos objectos que mudam, muda com eles, nos que não mudam, mantém-se imutável. Por esta razão, a matemática é um princípio de inteligibilidade de todas as coisas e, por isso, deve ser considerada a mais elevada forma de filosofia. A tese, radicalmente não-aristotélica, tem desenvolvimentos expressivos: o saber obtido por meio da teologia e da física é caracterizado como “conjectura” (eijkasiva) e não como “conhecimento” (katavlhyi" ejpisthminikhv); a teologia não deve ser considerada conhecimento, devido à obscuridade e incompreensão do seu objecto (dia; to; pantelw'" ajfane;" aujtou' kai; ajnepivlhpton); a física, devido ao carácter instável e à falta de clareza do seu (dia; to; th'" u{lh" a[staton kai; a[dhlon). Isto faz que os filósofos nunca possam vir a concordar no âmbito destes saberes. Pelo contrário, a matemática é a única ciência que pode oferecer conhecimento certo e inabalável, porque o seu tipo de prova procede por meio de métodos irrefutáveis, que são a geometria e a aritmética.

Neste ponto da argumentação, Ptolomeu já confundiu (e fundiu) os dois critérios aristotélicos para estabelecimento da nobreza de uma ciência: a matemática é superior porque possui métodos mais rigorosos e por causa da sua “abrangência ontológica”. De seguida insiste, porém, no argumento ontológico: a matemática leva-nos ao estudo do que é celeste e divino porque, ao participar do carácter eterno e imutável destes objectos, se torna, também ela, eterna e imutável. Ptolomeu relembra que o conhecimento apenas versa sobre coisas que possuem estes atributos. A conclusão já foi expressa antes: apenas a matemática é conhecimento (katavlhyi" ejpisthminikhv). Existe, pois, uma necessária coincidência entre os atributos do objecto sobre que versa uma ciência e o método que emprega. Além de imutável e eterno, o objecto da matemática é caracterizado como claro, ordenado e constante. Como a matemática fornece a melhor pista para o entendimento do que é imóvel e separado, Ptolomeu afirma a óbvia conclusão de que sem ela não se pode empreender o estudo da teologia. Quanto à física, como o seu estudo é, em larga medida, o estudo do movimento e como a matemática é um atributo deste, já se vê como é impossível alguém tornar-se um filósofo natural sem antes ter estudado esta disciplina.

Ptolomeu resolve as hesitações aristotélicas em torno da relação entre movimento e matemática; ignora o dilema causado pela dualidade de critérios para avaliar a superioridade de uma ciência; explica a relação entre os objectos matemáticos e os divinos, por um lado, e os sensíveis, por outro; fundamenta a importância da matemática em relação aos demais saberes; explicita como os avanços das outras ciências só são possíveis com o desenvolvimento da matemática; clarifica o seu papel propedêutico.

Afirma Liba Chaia Taub que “Ptolemy’s position with regard to the value of mathematics for physics would hardly seem to be based on any statement of Aristotle”131; contudo, já se viu acima que a física aristotélica associa estruturalmente a

matemática ao estudo do movimento, o que mostra a ambiguidade do texto do Estagirita. Ptolomeu constitui-se, portanto, como uma alternativa a Aristóteles. O seu prefácio em tom didáctico consegue um efeito extraordinário de forma económica e em obra compreensiva e matematicamente complexa. Veremos que o seu efeito futuro há- de ser poderoso.

Sumário

O capítulo procurou resumir o pensamento metamatemático de Aristóteles e de Proclo e verificar como se adaptava à prática euclidiana dos Elementos. O objectivo foi mostrar que:

- ler Aristóteles em Euclides ou Euclides através de Aristóteles significa mergulhar numa formulação epistemológica única, na qual uma única teoria da ciência é produzida de forma complementar e subsidiária, ou que, pelo menos, ao longo da história a relação entre ambos foi assim entendida;

- imediatamente a seguir à formulação da teoria aristotélica e à ordenação dos

Elementos de Euclides, esta obra foi tomada como laboratório de experimentação onde

se punham à prova as prescrições daquela;

- a prática da matemática e a teoria da ciência aristotélica se moldaram reciprocamente até estabilizarem numa relação de equilíbrio, descobrindo uma norma e assumindo naturalmente as devidas excepções à norma, conforme prescrito por Kuhn

(mesmo os defensores da matemática no âmbito do modelo aristotélico, como Proclo, admitem que há provas não causais nos Elementos);

- os argumentos pró-matemática ensaiados no âmbito da teoria da ciência aristotélica são insuficientes desde o início e nunca geraram unanimidade; ou seja, que as excepções à norma desequilibraram o fiel da balança desde muito cedo e que o suporte epistemológico mais firme da matemática é externo ao modelo fixado nos

Segundos Analíticos e provém de prefácios a obras matemáticas, como a de Ptolomeu.

- na antiguidade, diversas correntes filosóficas duvidaram do valor da matemática enquanto ciência, mas tornam-se marginais e foram absorvidas pela reflexão que privilegia a confrontação entre Euclides e Aristóteles.