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Opiniões sobre o estatuto da matemática em Itália (sécs XIV-XVI)

2. A Quaestio no século XIV-XV

2.1. A escola de Paris

2.3.1. Opiniões sobre o estatuto da matemática em Itália (sécs XIV-XVI)

Nos séculos XIV e XVI há já um debate em Itália em torno de dois tópicos fundamentais da questão sobre o estatuto da matemática. Por um lado existem já opiniões divergentes sobre o estatuto das demonstrações matemáticas e se estas cumprem o ideal demonstrativo dos Segundos Analíticos; por outro lado, procede-se a diferentes avaliações do papel da matemática no estudo da física. Farei referência a quatro autores italianos de renome internacional na altura para provar o meu ponto de vista.

Começo por Biagio Pelacani (Blasius de Parma), um dos primeiros professores italianos a defender acerrimamente a matemática. Terá tirado o seu doutoramento em 1374, em Pavia. Sabemos que visitou Paris, mas não se possui detalhes sobre a sua estadia aí. Na década de 70 e 80 exerceu a sua actividade docente em Pavia, Bolonha e em Pádua (nesta cidade, entre 1384 e 1411). Comentou diversas obras de Aristóteles e o seu ensino cobriu diversos tópicos de ciência e matemática. Entre os tratados científicos que deixou, destacam-se as Questões sobre as proporções de Bradwardine (copiado em 1391), o De intensione et remissione formarum (também copiado em 1391) e o Super

tractatu de latitudinibus formarum. Considerado pelos seus contemporâneos homem de

cultura superior e de grande competência também nas matemáticas, a leitura das suas lições e questões revela ideias originais197.

De acordo com as palavras que escreve nas suas Questões Dialécticas, uma ciência pode dizer-se mais nobre ou superior a outra de acordo com quatro critérios fundamentais: 1) em razão do seu objecto, 2) em razão do seu belo modo de proceder, 3) em razão do seu objecto e da certeza que possui, 4) em razão da sua capacidade propedêutica198. A lógica seria nobre por aplicação apenas do último critério, a teologia apenas por aplicação do primeiro. Pelo contrário, Pelacani sustenta a tese de que “ratione certitudinis et pulchri modi procedendi scientiae mathematicae sunt nobiliores aliis scientiis”. A supremacia da matemática em relação à Física e Teologia/Metafísica radica na sua superior certeza e no valor das suas demonstrações e está novamente afirmada nas questões sobre o De Anima, onde se afirma que é mais douto quem possui

197 Para a apresentação da reflexão de Biagio Pelacani baseamo-nos em Vescovini 1983.

198 Pelacani refere-se, obviamente aos critérios do prólogo do De Anima, que amplia para quatro. Cf.

Blasii, qaest. dialecticae, I, qu. 2 ms Venezia, Marc. classe VI, 63 (2550), f. 2 ra): “Noto quod una scientia potest dici alia nobilior multipliciter: uno modo ratione sui subiecti, secundo modo ratione modi pulchri procedendi et certitudinis, tertio modo ratione subiecti et certitudinis simul, quarto modo ratione modi introducenti” (apud Vescovini 1983, 667 n. 21).

conhecimento da geometria do que o que conhece a totalidade da teologia ou da filosofia natural: “et ratio est quia conclusiones mathematicorum deductae sunt ex principiis primis, quibus notis terminis, intellectus non potest deassentire. Sed in Philosophia naturali hoc non reperitur, quia materia rerum naturalium non panditur demonstrationibus, et minus conclusiones theologicorum”.

A Física e a Teologia não são, a seu ver, nem verdadeiras nem certas, pois são as ciências mais difíceis, sobretudo no que diz respeito à evidência da sua verdade. A ciência matemática, pelo contrário, é fácil (“aliqua scientia est facilis quando aliqua ueritas presentatur intellectui cuius euidentia nacta est causari statim ex primo principio, uel aliquibus per se notis, sicut in geometria”) e formula um saber por concatenação inexistente nas outras ciências: “cum igitur principia geometriae sufficiant pro prima conclusione ipsius geometriae, et secunda conclusio geometriae sequatur ex prima, et tertia sequatur ex secunda, sequitur propositum ut quod scitis principiis geometriae, sciatur tota geometria”. Que o discurso matemático, baseado em rigor lógico e formalmente superior, excede o da física, é afirmado ainda em diversos lugares das questões sobre física do mesmo autor: “Mathematicis informatus potest faciliter informare. Patet quia philosophia naturalis indiget pro magna parte mathematicis et argumentationibus logicorum, cum autem mathematicis informatus haec duo habet instrumenta...”, ou este outro: “Philosophia naturalis indiget logica et mathematicorum propositionibus quae sunt ueritates uniuersales... Tertia conclusio: in naturalibus scire quod omnis ignis est calidus siue quod omne simpliciter graue orbem lunae tangens non detentum, mouetur deorsum... est difficilius quam scire totam geometriam Euclidii et Theodosii”.

A inferioridade da física em relação à matemática é explicitada. Ao distinguir os dois níveis de causalidade, um ontológico, a que pertencem as causas in essendo, e outro, lógico, a que pertencem as causas in inferendo, Biagio Pelacani indica, como habitual, que diversos níveis de verdade poderão ser atribuídos às conclusões das demonstrações conforme haja nelas coincidência ou não entre os dois tipos de causalidade. Mas a forma como vê o problema é também original: não chega, para uma demonstração ser superior, que haja nela causalidade in essendo, pois, muitas vezes, conhece-se a causa física de um efeito, mas dessa causa, o intelecto não consegue produzir uma premissa que permita inferir in inferendo a conclusão patente na

conclusão199. Por isso a matemática é superior pelo método: os seus princípios permitem uma causalidade in inferendo. Não interessa se os seus objectos existem. Enquanto processo de inferência é uma ciência e é a mais certa de todas200.

O filósofo italiano adopta um comprometimento prudente com a doutrina dos filósofos. A matemática é superior, mas apenas por aplicação do critério metodológico e não existe forma de tornear a grande dificuldade que é afirmar que a matemática é superior em todos os aspectos. De qualquer forma, sobressai a sua extraordinária apreciação do estatuto da matemática que visa realçar, precisamente, a excelência demonstrativa da matemática contra aqueles que consideram que as demonstrações desta disciplina não cumprem em rigor o aparato dos Analíticos Segundos.

Que a sua atitude não é individual mas pertence a uma escola de indivíduos, mostra-o também o seu sucessor na cátedra de filosofia em Pádua, Paulo Véneto, que se tornou elemento fundamental na divulgação da lógica inglesa e da física parisiense em Itália, depois de as ter estudado em Oxford e Paris201. No seu comentário aos Analíticos

Segundos , exemplifica como é possível considerar os problemas epistemológicos que a

matemática levanta de maneira diferente. Com efeito, o seu texto mostra como as dúvidas e hesitações provocadas pela inadequação da matemática à doutrina dos

Segundos Analíticos tanto podem conduzir à tese de uma menor capacidade científica

daquela disciplina, ou, pelo contrário, à tese de que existe uma incorrecção na própria definição de ciência expressa na obra aristotélica202:

Dubitant contra diffinitionem demonstrationis ostendendo aliquam demonstrationem simpliciter non esse ex aliqua causa quia demonstrationes mathematice sunt demonstrationes simpliciter cum sint in primo gradu certitudinis per commentatorem zº meta. et tamen non procedunt per causas in essendo. nam demonstrant habere tres angulos equales duobus rectis de triangulo per angulum extrinsecum. Constat

199 Vescovini 1983, 675. Este argumento de Pelacani ilustra bem a amplitude das diferentes visões sobre o

tema. Proclo esforça-e, p.e., por oferecer uma causa in essendo para o teorema 17º dos Elementos sem, com isso, oferecer uma prova alternativa, baseada nessa causa (veja-se o que se disse acima, na p. 65); ou seja, não consegue transformar uma causa in essendo numa causa in inferendo. Por seu lado, Pelacani defende que é vão procurar a causa in essendo, visto que a causa in inferendo é condição necessária e suficiente para tornar a matemática superior.

200 Vescovini 1983, 677.

201 Sobre ele, veja-se Lohr 1967-1974, sub nomine.

202 O texto que citamos leva por título “Clarissimi artium et sacre theologie doctoris pauli veneti ordinis

heremitarum diui Augustini expositio in libros posteriorum Aristotelis feliciter incipit” e está referenciado em Lohr 1967-1974 (em especial em 1972, 316). Consultei a edição on-line que se pode encontrar em <http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k58881z/>. Nesta edição, cujas folhas não possuem numeração, os trechos citados ocupam as pp. 15 (coluna b) a 16 (coluna a), se se atribuir o número 1 à página que leva o título que acabei de citar.

autem angulum extrinsecum non esse causam trianguli nec sue passionis. cum quodlibet illorum indifferenter stet esse sine alio”

O texto é muito interessante porque presume que a “certeza” é critério suficiente para tornar as demonstrações matemáticas “simpliciter” (ou seja, as mais perfeitas demonstrações) e por referir os argumentos usuais (ou seja, aqueles, ao fim e ao cabo, que mais dificuldades provocam): a prova pelo ângulo externo é pouco científica porque um meio acidental não pode constituir verdadeira causa in essendo da conclusão. Também Paulo Véneto, à semelhança de Pelacani, procura defender a matemática; mas segue uma estratégia diferente:

Ad primum dicitur comuniter quod demonstrationes mathem. non sunt proprie demonstrationes propter quid nec simpliciter demonstrationes ad intellectum aris. sed solum similitudinarie. quia sicut natura prius cognoscit causam simpliciter quam effectum ita nos prius omnino cognoscimus praemissas quam conclusionem. Sed illud non potest esse de intentione aris. cum semper aut frequenter exemplificet in mathe. deinde si demonstrationes ille non procedunt per causam neque per effectum. ergo dabitur aliud genus demonstrandi nondum ab ari. inuentum ideo dicitur quod ille procedunt per causas tam in essendo quam in cognoscendo. nec est uerum quod demonstrent triangulum tres angulos habere per angulum extrinsecum tanquam per medium. sed solum tanquam per determinatiuum medii cum medium sit solum figura rectilinea tribus lineis contenta que est uera causa in essendo tam trianguli, quam etiam sue passionis[...].

No seu entender, a essência do triângulo, captada na definição “figura rectilínea contida por três linhas”, é a verdadeira causa in essendo tanto do triângulo como da propriedade em questão e o ângulo externo apenas serve para “determinar” aquele meio termo da demonstração. Este contra-argumento será rememorado depois pelos defensores da matemática.

Esta busca de argumentos que possam salvar a matemática no âmbito do modelo oferecido pelos Analíticos Segundos não é, porém, única nem unânime. Opinião menos favorável à matemática e à sua relação com a física apresenta Pietro Pomponazzi, nas suas aulas sobre o De Anima, leccionadas em Pádua na viragem do século XV para o XVI. Nelas propõe duas ordenações das ciências, baseadas em cada um dos critérios. Pelo critério ontológico, a primeira ciência seria a Metafísica, a segunda a Física, a terceira, a Matemática; pelo critério metodológico, a primeira seria a Matemática, a

segunda, a Física, em terceiro, a Metafísica203. Até aqui o seu pensamento não se destaca do de Pelacani. Porém, Pomponazzi compôs em 1514 um tratado intitulado De

intensione et remissione formarum, onde ataca as posições defendidas por Richard

Swineshead (Suiseth) no seu tratado homónimo de 1340. O tratado de Pomponazzi não difere na aceitação da possibilidade do tratamento quantitativo das qualidades, mas propõe teses metafísicas divergentes das do calculador. O filósofo de Pádua critica o calculador pelo seu inadequado tratamento do estatuto ontológico da intensão e remissão. Os próprios termos “intensão”, “remissão”, “distância”, etc., estão impropriamente definidos em Swineshead. Por outro lado, o calculador é acusado de ter desprezado a metafísica e de se ter concentrado exclusivamente em argumentos de carácter matemático204.

Pomponazzi não critica a matemática de Swineshead, mas as suas posições epistemológicas. As calculationes do Calculador não merecem o nome de ciência na opinião do filósofo Paduano, mas constituem um salto ilegítimo entre matemática e física (“sunt enim huiusmodi scientie (si nomen scientie merentur) medie inter physicas et mathematicas, et magis appellantur mathematice quam physice”), por isso, muito é de admirar que homens que se consideram físicos, metafísicos e médicos, não compreendam os erros que saltam à vista (“Quare non est admirandum de isto Calculatore quod erraverit, cum non fuerit cuiuslibet scientie expers. Sed mirum est de suis immitatoribus qui profitentur se physicos, metaphysicos, et medicos, et non viderint tantos errores in homine, nam multo plura sunt errata quam vera...”)205. Tem muita força o aparte “si nomen scientie merentur”, muito depreciativo. A crítica de Pomponazzi não é isolada. Francesco Buonamici, professor de Galileu, ainda criticará aqueles que com facilidade saltam da física para a matemática, ao considerar o problema se as proporções

203 Excellentissimi philosophi magistri Petri Mantuani expositio super I “De anima” Aristotelis et

Commentatoris, quam <fecit> anno 1504, et ego audiui et cursim scripsi (Napoli, Biblioteca Nazionale, ms. VIII. D. 81, ff. 86r-116v, a citação é de f. 92r), edição de Luigi Olivieri (Olivieri 1983, 183-184): “Prima igitur quoad nos cognitio erit mathematica, secunda naturalis, tertia diuina. Ratio: nam in mathematicis procedimus a causa supra effectum, et causa est magis sensata et notior quam effectus; et ideo quoad nos, etiam loquendo de uera cognitione quae habetur per causam, mathematica est notior. Secundo loco naturalis, quia non habet causas ita sensatas, licet habeat effectus sensatos. Tertio loco diuina, quae neque causas neque effectus sensatos habet, et ideo quoad nos certitudinee demonstrationis a priori metaphysica est ultima[...] Loquendo uero de cognitione quoad naturam et in se, dico quod prima est ipsa diuina, quia est de perfectissimis substantiis; secunddo loco uero est ipsa naturalis: est enim naturalis de substantia; et quia mathematica de entibus uilissimis, ut accidentibus est, ideo est infima et ultima”.

204 Wilson 1953, 355 (onde cita Pomponatii...de intensione..., ff. 9va-9vb). A edição que Curtis Wilson

utiliza é: Petri Pomponatii Mantuani tractatus acutissimi, utillimi, et mere peripatetici de intensione et

remissione formarum ac de parvitate et magnitudine, Venetiis, Octavianus Scotus, 1525, ff. 2ra-20ra).

que operam ao nível da matemática se aplicam legitimamente ao caso das coisas com matéria206.

A análise destes autores e a consideração do contexto em que se situam permite tirar as seguintes conclusões:

- a desconfiança em relação à matemática adquire contornos técnicos e matizes muito variadas;

- a ligação da matemática à teoria da ciência aristotélica provoca uma reacção permanente e orgânica ao desenvolvimento da disciplina e ao processo de matematização da física e de outras ciências;

- as posições epistemológicas de filósofos antimatemática, como Pomponazzi, não conseguem interferir no processo de matematização da física e não impedem que filósofos naturais como Johannes Marlianus (físico milanês e professor em Pavia c. 1482) executem experiências para tirar dados numéricos, descrevendo, por exemplo, rolamentos em planos inclinados para medir a velocidade e aceleração dos corpos, em antecipação aos trabalho de Galileu207;

- os argumentos pró-matemática são insuficientes, mas são criativos e obrigam a considerar alternativas originais

- a mobilidade de estudantes e professores nas Universidades do século XIV assegura que o tema do estatuto da matemática seja muito divulgado e debatido em toda a Europa.