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2. A Quaestio no século XIV-XV

2.1. A escola de Paris

2.3.3. O renascimento matemático

Embora a partir do século XIV haja interesse nas artes do quadrívio, na geometria e na estática, estes saberes estão integrados nos restantes (lógica, física, metafísica, teologia), como mostra o caso dos calculadores ou de Nicolau de Oresme. Como vimos acima, o retrato muda a partir do final do século XV, altura em que a matemática começa a possuir um papel autónomo e a tornar-se um campo de investigação independente, estudado por si mesmo. Neste domínio, a Itália está avançada em relação ao resto da Europa220. Este avanço parece estar ligado ao

desenvolvimento do processo histórico conhecido como Renascimento. Com efeito, tem sido enfaticamente realçado que a dinâmica de crescimento da matemática em Itália, seja em número de praticantes, seja no espaço do currículo que passa a ocupar nas universidades, seja no número dos seus teoremas fundamentais e na sua aplicação a outras áreas, é concomitante com um processo de renascimento matemático indissociável daquele movimento mais geral de redescoberta da antiguidade clássica221.

Várias características estão associadas a este renascimento matemático: a) o seu fundamento é classicista;

b) passa por uma fase de procura e colecção de manuscritos de matemática antiga e de edição deste legado clássico (vertente filológica);

c) realiza uma reinterpretação dos textos (vertente hermenêutica). O imenso trabalho de recolha de manuscritos é levado a cabo logo no século XV e permitiu aos humanistas do século seguinte ter acesso a um conjunto de obras sobre matemática antiga que passou desconhecido pela Idade Média e se podem dividir em três grupos distintos. Um primeiro grupo inclui os tratados matemáticos dos grandes autores, reportório de grandes resultados, diversidade de prática matemática, que fornece o núcleo duro dos teoremas matemáticos descobertos na antiguidade, mas falhos de informações biográficas, sociais, pedagógicas, conceptuais e de qualquer outro género que não os próprios resultados de matemática pura, com especial ênfase na geometria. Aqui estão incluídos Euclides, Arquimedes, Apolónio e Diofanto. Um segundo grupo inclui os tratados de matemática aplicada, como os de Ptolomeu (Astronomia) ou

220 Gilbert 1963, 81 e 83.

221 Sobre o renascimento matemático italiano e a ligação entre humanistas e matemáticos remetemos para

Hierão (mecânica). Um terceiro grupo, cuja descoberta virá a ter incomensurável importância, não releva pela importância dos seus achados, mas pela focagem em reflexões metodológicas, epistemológicas e didácticas sobre a matemática. Aqui incluem-se Proclo e Papo;

d) é auto-consciente do seu empenho e papel rejuvenescedor e da sua associação a um movimento de renovação mais vasto do mundo antigo;

e) é empreendido por diferentes agentes sociais, sejam eles matemáticos profissionais, humanistas em geral ou políticos e patronos diversos, que se unem em torno de um objectivo comum e são responsáveis por colocar em prática um programa de renovação (restauração, instauração, restituição...) da matemática, como invariavelmente lhe chamam.

O papel dos matemáticos na defesa da sua disciplina ficou patente no capítulo anterior. Entre os humanistas promotores da cultura matemática clássica destacam-se os nomes de humanistas como Bessarion, Nicolau V, Giorgio Valla ou Federico de Urbino. A ligação entre humanistas e matemáticos fica esclarecida com a referência a Bessarion e a Nicolau V222. O Cardeal Johannes Bessarion, conhecido por ser um extraordinário estudioso do mundo antigo e um importante patrono do ensino da língua grega em Itália, possuía uma enorme colecção de manuscritos gregos, talvez a maior colecção em Itália na altura. Bessarion estudou matemática nos anos 1430 com Gemistus Pletho. No ano de 1450 pôs em prática o plano de Nicolau V para a reorganização da Universidade, promovendo quatro cátedras de matemática em Bolonha. Grande admirador de Arquimedes, cita-o na defesa de Platão no escrito In calumniatorem Platonis. Antes de escrever a obra, pediu emprestados da biblioteca Vaticana uma tradução de Arquimedes e o texto grego de Apolónio. Enviado pelo Papa Pio II como legado papal à Áustria e Alemanha para conseguir ajuda na Campanha contra os Turcos com vista à recaptura de Constantinopla, conheceu durante a viagem Regiomontano, bem como o professor, Georg Puerbach, ambos docentes na Universidade de Viena. Um dos projectos que Bessarion pretendia encorajar era uma nova tradução do Almagesto, por considerar pouco satisfatória a versão de Jorge de Trebizonda, e a produção de uma versão resumida ou um texto para uso escolar com base naquele. Puerbach, amplamente famoso pelo seu conhecimento profundo do texto de Ptolomeu, que, no entanto,

conhecia apenas em tradução latina, pois não sabia Grego, ficou encarregue do dito resumo e devia acompanhar Bessarion na sua viagem de regresso a Itália, juntamente com Regiomontano. Depois de completar seis livros do resumo, e durante os preparativos para a viagem, Puerbach morre e, em 1461, apenas Regiomontano acompanha Bessarion para Roma. Aí terá acabado a obra que o mestre deixara inacabada e é nessa cidade que estabelece laços com humanistas de altíssimo gabarito e grande competência científica como Nicolau de Cusa, Leão Baptista Alberti, Paolo Toscanelli, Giovanni Bianchini, entre outros. Aprende Grego com Bessarion e começa o estudo dos textos matemáticos existentes na biblioteca deste humanista, onde se podia encontrar, entre outros tesouros da antiguidade, obras de Arquimedes e Apolónio. Quando o Cardeal é enviado, em 1463, como legado papal a Veneza, Regiomontano acompanha-o e aí descobre um manuscrito de Diofanto. Mais tarde, em 1464 é o próprio Bessarion quem providencia para que Regiomontano leccione em Pádua, razão por que na já referida oração de Regiomontano merece tantos e rasgados elogios.

Quanto a Nicolau V, é ele o principal promotor das traduções que Iacobus Cremonensis fez de textos de Arquimedes, tradução que provavelmente foi a que Bessarion tomou emprestada da biblioteca Vaticana, para escrever o seu in

calumniatorem Platonis.

Casos de humanistas que acumulam conhecimentos matemáticos de alto nível e promovem o estatuto da matemática são frequentes, como mostram Giorgio Valla, Bartolomeo Zamberto ou Leon Battista Alberti. Este último (1404-1472) não esconde que a matemática é uma forma nobre de um nobre preencher o seu tempo de descanso, e possui utilidade cívica, motivo pelo qual preenche o seu otium cum dignitate com a escrita dos seus Ludi rerum mathematicarum223. Zamberto ocupou grande parte da sua

actividade a traduzir as obras de Euclides. Os prefácios a estas obras contêm um forte elogio da matemática que chegou a muita gente, dada a divulgação dos seus trabalhos. Valla é o primeiro a traduzir trechos de textos inéditos de Proclo e Arquimedes, por exemplo.

Para verificar como as elites políticas e intelectuais italianas estão unidas no desenvolvimento da matemática, basta lembrar que, entre 1447 e 1484, a corte papal foi visitada por Cusano, Bessarion, Jacobus Cremonensis, Toscanelli, Alberti, Pacioli e Regiomontano224.

223 Hoyrup 1992, 86. 224 Rose 1975, 39.

Sumário

Este capítulo pretendeu mostrar que:

- há um debate sobre o estatuto da matemática bem vincado no século XIV; - este debate considera a confrontação da matemática euclidiana com o modelo de ciência aristotélico de ciência, tal como já se encontrava parcialmente descrito por Proclo;

- o debate faz parte do currículo da universidade e é referido aquando da exposição do organon aristotélico e nas aulas de matemática;

- o debate ganha autonomia e já conhece todos os argumentos pró e contra, entretanto cristalizados;

- o debate não conhece ainda uma solução unânime e que satisfaça a comunidade académica;

- há desenvolvimentos históricos (humanismo, renascimento matemático, descoberta dos textos antigos e de Proclo, desenvolvimento da física-matemática) que alteram o curso do debate.

3. A questão sobre o estatuto da matemática nos séculos XVI e