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Demonstração matemática e explicação em Proclo

1. Correntes de pensamento da Antiguidade Clássica

1.3. Proclo

1.3.2. Demonstração matemática e explicação em Proclo

Extraordinário é o facto de o debate não apenas ser referido por Proclo, mas de este autor lhe dedicar tantas páginas e se lhe referir como um debate com grande vigor ainda na sua época. Com efeito, surpreende a enorme quantidade de recursos que Proclo despende na refutação de argumentos de autores que, como Anfínomo, atacam a matemática, sob pretexto de não cumprir o importante postulado da causa. Proclo começa por enunciar as dificuldades óbvias de quem, como ele, considera que a matemática é causal, mas possui demonstrações não causais:

o{tan me;n ou\n sullogismo;" h\/ di!ajdunavtou toi'" gewmevtrai", ajgapw'si to; suvmptwma movnon euJrei'n, o{tan de; dia; prohgoumevnh" ajpodeivxew", tovte pavlin, eijme;n ejpi; mevrou" aiJ apodeivxei" givgnointo, ouj[tw dh'lon to; ai[tion, eij de; kaq!o{lon kai; ejpi; pavntwn tw'n oJmoivwn eujqu;" kai; to; dia; tiv givgnetai katafanev". (In Euclidem 202)

Proclo reconhece que nem todas as demonstrações matemáticas são explicativas, pois algumas não apresentam qualquer causa. Dois exemplos ilustram a tese. Por um lado, é reconhecido que as demonstrações por redução ao absurdo se limitam a descobrir (euJrei'n) uma mera indicação (suvmptwma), sem conseguir apresentar uma causa.

Por outro lado, há demonstrações em que a causa não é evidente, porque ela ficou determinada antes, em demonstrações prévias. O mesmo ponto é reafirmado um pouco mais à frente, ainda no comentário ao primeiro problema:

Th;n de; legomevnhn ajpovdeixin o{te me;n kai; ta; i[dia th'" ajpodeivxew" e[cousan euJrhvsomen ajpo; tw'n ojrismw'n mevswn to; zhtouvmenon deiknuvousan - au{th ga;r ajpodeivxew" teleiovth" - o{te de; ejk tekmh- rivwn ejpiceirou'san. kai; dei' mh; lanqavnein. pantacou' me;n ga;r to; ajnankai'on e[cousin oiJ gewmetri koi; lovgoi dia; th;n uJpokeimevnhn u{lhn, ouj pantacou' de; peraivnontai dia; tw'n ajpodeiktikw'n meqov- dwn. o{tan ga;r dia; tou' th;n ejkto;" tou' trigwvnou gwnivan i[shn ei\nai duvo tai'" ejnto;" kai; ajpenan- tiva" deiknuvhtai to; trivgwnon i[sa" e[con ta;" ejnto;" trei'" gwniva" dusi;n ojrqai'", pw'" ajp jaijtiva" hJ ajpovdeixi" auJvth, pw'" de; oujci; tekmhvriovn ejsti to; mevson_ kai; ga;r mhvpw th'" ejkto;" ou[sh" gwniva" aiJ ejnto;" ou\sai dusi;n ojrqai'" ijvsai eijsivn. (In Euclidem 206)

Neste passo, Proclo não refere reduções ao absurdo ou provas cuja causa deriva, por transitividade, de provas anteriores, mas menciona, aparentemente, um terceiro caso de demonstrações não causais: provas por métodos directos que, embora apresentem conclusões necessárias, não são causais, antes oferecendo um mero sinal (tekmhvrion) de

teorema trigésimo segundo, aquele, precisamente, que é mais citado por Aristóteles como exemplo acabado de uma demonstração científica. O argumento avançado é este: a conclusão prova-se recorrendo à construção de um ângulo externo, mas mesmo que este ângulo não existisse, a conclusão manter-se-ia válida (kai; ga;r mhvpw th'" ejkto;" ou[sh" gwniva" aiJ ejnto;" ou\sai dusi;n ojrqai'" i[sai eijsivn), razão por que não pode constituir a causa da propriedade.

Se avançarmos no comentário até ao teorema trigésimo segundo, vemos que aí o problema não é mencionado. Antes Proclo diz que o teorema acrescenta o que faltava e tudo o que é possível acrescentar aos teoremas décimo sexto e décimo sétimo. Em todo o caso, não pode passar despercebida a sua apresentação de uma prova alternativa que evita construções fora do triângulo, preferindo traçá-las dentro do triângulo. Se percorrermos o resto do comentário, veremos que provas alternativas deste género são frequentes. Se verificarmos as notícias que restam de outros comentadores, veremos que eram, de facto, comuns, sendo normalmente introduzidas para refutar um particular tipo de objecção (evjntasi"): a de que não se tem o direito de admitir que existe qualquer espaço disponível para descrever a construção auxiliar. Com este propósito, e só entre Proclo e Hierão, são sugeridas provas alternativas para pelo menos dez proposições do primeiro livro dos Elementos de Euclides (I 2, 5, 9, 11, 12, 16, 17, 20, 32 e 48). A objecção contra o uso de construções auxiliares está, portanto, presente em antiquíssimas críticas contra a matemática, e tiveram desde muito cedo influência na prática da matemática, levando os comentadores de Euclides a reagir, propondo inúmeras provas alternativas àquelas utilizadas nos Elementos e evitando o uso de construções auxiliares, pelo menos daquelas desenhadas no exterior das figuras que constituíam objecto de demonstração111.

Estas objecções matemáticas têm também uma correspondente formulação epistemológica: a construção auxiliar não pode ser causa das propriedades demonstradas, visto que é forçoso admitir-se que o resultado se mantém, mesmo que elas não sejam desenhadas ou não possam ser desenhadas. Se seguirmos a pista fornecida no comentário ao teorema trigésimo segundo e retrocedermos até aos teoremas décimo sexto e décimo sétimo, verificaremos que a questão em torno da construção do ângulo externo é um problema muito antigo. Ao comentar a proposição XVI do primeiro livro dos Elementos, que também se socorre da construção de um

ângulo externo112, Proclo clarifica a questão ao afirmar que algumas pessoas enunciavam o teorema de forma elíptica, sem referir expressamente a expressão “se um dos lados é prolongado”. Isto fez, acrescenta, que muitos criticassem o teorema, porque um triângulo nunca tem, enquanto triângulo, um ângulo externo. E, citando Hierão, afirma que um certo Filipe fez precisamente esta crítica. Se aceitarmos a identificação que Morrow faz entre este Filipe com Filipe de Mende, então colocamos a discussão sobre o ângulo externo na Academia do século IV. Filipe de Mende foi um discípulo de Platão que, instigado e orientado pelo próprio mestre, estudou matemática, aplicando-se nos problemas que poderiam contribuir para a filosofia da academia113. E o que Filipe

afirma é que o ângulo externo não é propriedade essencial do triângulo mas um seu acidente, não sendo, por isso, usando a terminologia aristotélica, necessário. Ora a demonstração deve proceder de factos necessários, ou seja, para que uma conclusão seja necessária, deve proceder de premissas necessárias. E o que Proclo afirma, fazendo eco de antigas críticas, é que este ângulo externo, enquanto acidente, não pode ser uma causa.

Deve ser esta controvérsia que ecoa na tese aristotélica de que ter ângulos internos iguais a dois rectos é uma propriedade per se acidental do triângulo (Met. D 30 1025a30-32). Ou seja, é uma propriedade per se do triângulo necessária e eterna, mas a forma como é conhecida é acidental, porque a conclusão depende de uma construção auxiliar de um objecto (ângulo externo) que é acidental em relação ao triângulo e não pertence à sua essência. A ser verdadeira esta tese, ela mostra como a matemática moldou o sistema aristotélico114. E mostra, além disso, como existe um problema de fundo acerca do papel das construções auxiliares nas demonstrações matemáticas, porque não fica clara a sua relação com a causa requerida para uma conclusão115.

112 O seu enunciado é: “Em qualquer triângulo, se um dos lados é prolongado, o ângulo externo é maior

que qualquer dos ângulos internos e opostos”.

113 Veja-se Morrow 1992, 56 n. 48; 239 n. 132; In Euclidem 67 e 305.

114 Visto que os acidentes per se acidentais são mal explicados por Aristóteles, tem sido dada especial à

asserção de que “o triângulo tem ângulos internos iguais a dois ângulos rectos” é uma propriedade per se acidental do triângulo, sem que o seu significado tenha sido, até hoje, cabalmente explicado. Tem sido apontado que o conceito genérico se aplica muitas vezes, não a premissas ou factos, não a conclusões de silogismos ou inferências, mas a consequências (Mendell 2004, Mackirahan 1992, 98-101). Usualmente procura-se determinar em qual dos tipos de relação per se apresentados por Aristóteles se insere, mas não por que se considera uma conclusão acidental. O muito citado, mas insuficiente, artigo de J. E. Tiles defende que a demonstração tem início em predicados per se do triângulo, visto que os lados do triângulo têm de ser linhas rectas (Tiles 1983). Veja-se também Mesquita 2004b, 163-168.

115 Também se discute se a construção que Aristóteles conhece do teorema acerca dos ângulos internos de

um triângulo é aquela que encontramos em Euclides I, 32, ou se é aquela utilizada pelos pitagóricos. Um dado importante é o facto, notado pela primeira vez por J. L. Heiberg, de que a construção e a prova do teorema trigésimo conhecida de Aristóteles é a mesma que surge nos Elementos (Cf. Heath 1956, I, 320-

Apesar de todas estas dificuldades, Proclo considera que algumas provas euclidianas são causais. Assim considera expressamente o primeiro problema: “mas quando demonstramos que o triângulo construído pelo desenho dos círculos é equilátero, a nossa abordagem é pela causa, pois podemos afirmar que é o carácter semelhante e igual dos círculos que causa a igualdade dos lados do triângulo”116.

Contudo, a razão que o leva a considerar esta prova causal não é, apesar da sua explicação, clara. Diz ele que a igualdade dos círculos é a causa da igualdade dos lados do triângulo, mas não se vê utilizada na prova euclidiana a assunção ou prova de que círculos iguais possuem raios iguais. Tal asserção e óbvia, mas não é utilizada. Pelo contrário, Euclides utiliza a definição de círculo para provar a igualdade de dois pares de lados e, em seguida, prova a igualdade do restante par por recurso a uma noção comum (“coisas iguais a uma terceira são iguais entre si”). Proclo não deixa claro se a proposição euclidiana fica provada a partir de uma definição (de círculo? de igualdade?), que pudesse constituir uma aristotélica causa formal, ou a partir da referida noção comum, que teria a desvantagem de ser um princípio comum e não próprio.

Além das provas que considera verdadeiramente causais, existe um segundo caso que engloba as provas não causais, mas para as quais Proclo pensa poder atribuir uma causa. No comentário ao teorema décimo sétimo (Em qualquer triângulo, dois ângulos tomados de qualquer maneira são menores que dois ângulos rectos), ciente de que a verdadeira causa da conclusão não é apresentada, decide fornecê-la: “É necessário, como no teorema anterior, descobrir a causa da propriedade observando a génese dos triângulos (dei' de; kaqavper ejn tw'/ provsqen eij" th;n gevnesin ajpivdonta tw'n trigwvnwn th;n aitivan euJrei'n tou' prokeimevnou sumptwvmato"; In Euclidem 310- 311). Imagina então uma figura em que dos extremos de uma linha recta finita se erguem duas perpendiculares e defende: se se pretende construir um triângulo, é forçoso

321). Se as provas fossem excessivamente dissemelhantes, tornar-se-ia difícil vir a considerar os

Elementos como actualização do modelo. Além disso, fica patente o background comum a Euclides e

Aristóteles. Contra esta interpretação, veja-se Tiles 1983, n. 15. A argumentação de Tiles é insuficiente, senão mesmo, inexistente: “Heath’s case, however, is very slender, resting as it does on the word ‘anekto’, which suggested to him that the parallel line is drawn upward in Aristotle’s construction as it is in Euclid’s. But there is no reason why the Pythagorean construction could not have begun by drawing a line parallel to side BA in the diagram that follows”. A nossa hipótese fortalece a tese de Heiberg-Heath: a demonstração que Filipe de Mende comenta só pode ser aquela euclidiana, que possui um ângulo externo inexistente na prova pitagórica. A minha interpretação do conceito de per se acidental em Aristóteles depende da existência de um ângulo externo; por isso, se estiver correcta, constitui mais uma prova de que a prova euclidiana é aquela conhecida pelo Filósofo.

116 In Euclidem 206-7: o{tan de; dia; th'" tw'n kuvklwn perigrafh'" to; sustaqe;n trivgwnon ijsovpleu-

ron deiknuvhtai, ajp j aijtiva" hJ ejpibolh; givnetai. th;n ga;r oJmoiovthta kai; ijsovthta tw'n kuvklwn th'" tou' trigwvnou kata; ta;" pleura;" ijsovthto" aijtiasovmeqa.

que as duas perpendiculares se inclinem na direcção uma da outra; contudo, ao fazê-lo, produzem uma diminuição dos ângulos rectos que faziam delas perpendiculares. É esta inclinação, afirma, e não o ângulo exterior, a verdadeira causa da propriedade do triângulo:

Tou'to ou\n to; ai[tiovn ejstin, ajll joujci; to; meivzona ei\nai th;n ejkto;" eJkatevra" tw'n ejnto;" kai; ajpe- nantivon gwnivwn. ejkbeblh'sqai me;n ga;r th;n pleu'ran oujk ajnagkai'on, oujde; e[xw tina; sunestavnai gwnivan, tw'n de; ejnto;" gwniw'n b— oJpoiasou'n ei\nai [b] ojrqw'n ejlavttou" ajnagkai'on. to; de; mh; ajnag- kai'on tou' ajnagkaivou pw'" a]n ai[tion ei[h; ajll jo{per ei\pon to; me;n ai[tiovn ejsti to; rJhqevn, hJ suvneusi" tw'n eujqeiw'n ejpi; th;n bavsin ejlattou'sa ta;" ojrqav". (In Euclidem 311)

O passo confirma algumas observações feitas acima. A causa está associada ao movimento e à génese dos objectos geométricos e o problema epistemológico da causalidade está associada ao debate construcionismo/existencialismo. A causa apresentada por Proclo parece ser eficiente, sem que se possa identificar claramente um agente e contraria a doutrina aristotélica que nega movimento nos objectos matemáticos e causa eficiente na geometria. Finalmente, é difícil perceber a relação da causa “ontológica”, com a “epistemológica”; ou seja, não se compreende se a causa apresentada pode ser transformada na premissa de uma demonstração matemática alternativa ao teorema euclidiano. A verdade é que Proclo apresenta a suposta causa verdadeira da conclusão do teorema XVI, mas não uma demonstração alternativa

baseada nesta causa. Além disso, não se vê, igualmente, como esta causa possa servir

depois como a verdadeira causa da conclusão do teorema trigésimo segundo.

Um terceiro e último ponto a frisar é este: embora algumas proposições não alcancem os seus resultados através de métodos demonstrativos, elas derivam sempre a sua necessidade da matéria que é objecto da investigação, como vimos em passo citado acima (kai; dei' mh; lanqavnein. pantacou' me;n ga;r to; ajnankai'on e[cousin oiJ gewme- trikoi; lovgoi dia; tou' th;n uJpokeimevnhn u{lhn, ouj pantacou' de; peraivnontai dia; tw'n ajpodeiktikw'n meqovdwn; In Euclidem 206). O passo é, mais uma vez, problemático. Além da dificuldade em compreender como pode a necessidade das demonstrações geométricas (gewmetrikoi; lovgoi) derivar da matéria sujeita (th;n uJpokeimevnhn uJvlhn), assunto que fica por esclarecer, Proclo parece utilizar de forma disjuntiva os dois critérios do prólogo do De Anima para assegurar a superioridade científica da matemática.

Um outro passo ilustra bem a posição genérica de Proclo: Euclides utilizou nos

Elementos provas de todos os géneros, incluindo provas baseadas em causas, mas

também provas baseadas em sinais; no entanto, todas devem ser consideradas impecáveis, exactas e científicas (aqui, Proclo cede mais a Euclides que a Aristóteles)117.

Salientamos os três pontos essenciais que ficam desta análise do testemunho único de Proclo:

- desde a antiguidade se associa a teoria da ciência aristotélica ao texto dos

Elementos e existem opiniões divergentes sobre a compatibilização de ambos;

- alguns tópicos da discussão cristalizam-se, como o da análise dos teoremas primeiro e trigésimo segundo do primeiro livro de Euclides à luz do modelo de ciência aristotélico;

- fica patente a insuficiência dos argumentos que tentam conciliar a matemática com todos os requisitos do modelo aristotélico.