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Lugar da reflexão sobre a matemática no currículo jesuíta

3. A questão sobre o estatuto da matemática nos séculos XVI e XVII

3.2. Os Jesuítas

3.2.1. Lugar da reflexão sobre a matemática no currículo jesuíta

É inegável que o assunto invade a pedagogia jesuíta desde o primeiro momento. Baltasar Torres, o primeiro professor de matemática do Colégio Romano abordava o tratado de Piccolomini logo nas primeiras lições, como se pode ver no manuscrito sobrevivente que contém o seu curso do ano 1557: “Lectiones geometriae anni 1557. prima hora novembris. Prima lectio continebat praefationem desumptam ex Picolomini tractatu de certitudine Mathematicarum...”292. Por sua vez, os professores de filosofia costumavam incluir um capítulo sobre o estatuto da matemática, aquando da exposição da matéria do primeiro livro da física ou dos Segundos Analíticos. Benito Pereira, que será analisado mais abaixo, fornece o exemplo para a reflexão no âmbito da física; o manuscrito com as aulas de lógica de Ferdinando Capece leccionadas no Colégio Romano em 1581, ilustram o ensino do tópico no âmbito da lógica293.

Estes são os três espaços por excelência, para a reflexão sobre o estatuto científico da matemática: prólogos aos cursos de matemática, prólogos ao curso de física, capítulos autónomos na parte dos Segundos Analíticos do curso de lógica.

Maelcote; 1610-11: Odon van Maelcote (conjectura); 1611-1612: Cristoph Grienberger (conjectura). Balthazar Torres e Ferdinando Capece são filósofos, mas Clávio, Grienberger e Odon Maelcote são matemáticos. Deve notar-se que, a partir de certa altura, é a Academia que fornece os professores para o curso de filosofia.

292 O manuscrito com os seus apontamentos, onde estão incluídas as anotações sobre as suas lições de

matemática do ano 1557 referidas é o BAV Barb. lat. 304 e a citação é tirada da folha 187v. O manuscrito é de uma relevância enorme porque dá notícias sobre métodos e conteúdos do ensino da matemática, tendo sido descrito por Paul Lawrence Rose (1975, 197), e por Antonella Romano (1999, 72 n. 84 e 142 n. 24). Baltasar Torres (Medina del Campo 1518 - Nápoles 1561) estudou medicina em Espanha. Passou algum tempo na Sicília e aí conheceu Maurólico, com quem provavelmente estudou matemática. Torres não publicou escritos. Da sua actividade restam textos programáticos (incluídos em MPSI) e o manuscrito referido. Sobre a sua vida, veja-se Baldini-Napolitani 1992, I.2., 102.

293 Veja-se Romano 1999, 142 n. 24. A autora cita o manuscrito B.A.V. Barb. lat. 232, ff. 344r-346r (“An

mathematicae sint scientiae”). Outros professores de filosofia do Colégio Romano aderiram a estas teses, como Paulo Valla, que aí começou a ensinar em 1585. Sobre Valla, no entanto, deve acrescenta-se uma pequena nota. Ludovico Carbone é o autor de uma obra intitulada Additamenta ad commentaria D.

Francisci Toleti in Logicam Aristotelis. Praeludia in libros Priores Analyticos; Tractatio de Syllogismo; de Instrumentis sciendi; et de Praecognitionibus, atque Praecognitis. Auctore Ludovico Carbone a

Costacciaro, Academico Parthenio et in Almo Gymnasio Perusino olim publico Magistro. Cum Privilegiis Venetiis, Apud Georgium Angelerium, 1597. Nesta obra plagia o curso de lógica de Valla, provavelmente aquele leccionado em 1588, e nela contém uma secção intitulada “Dubitationes quaedam circa scientias mathematicas” (pp. 288-302), o que faz pensar que as aulas de Valla continham provavelmente um capítulo contendo dúvidas sobre as ciências matemáticas. As aulas de Valla foram impressas em Lyons, 1622, mas na edição impressa não surge o referido capítulo. A causa desta supressão pode derivar da pressão dos professores da Academia de Matemática de Clávio. Sobre o plágio de Carbone, uma curta descrição do capítulo sobre as dubitationes, e a causa da supressão do capítulo na edição impressa, veja- se Wallace 1984, 7, 9, 10-14, 16-23 e 136.

Esta prática docente, encontra formulação parcial na Ratio Studiorum. No capítulo dedicado ao estudo da filosofia (“De studio Philosophiae”), a versão de 1586 da Ratio apresenta a seguinte directriz:

Porro ne secundus annus nimis oneratus videatur, prolegomena Physicae, quae duos fere menses occupare solent, contrahenda videntur, et magna ex parte communicanda cum logico; qui cum a multis quaestionibus, quas in metaphysica transposuimus, liberatus fuerit, potest sub finem librorum Posteriorum instituere pleniorem quandam de scientia tractationem, et in ea disserere de divisionibus et abstractionibus scientiarum, de speculativo et practico, de subalternatione non solum in genere, sed etiam, an scientiae omnes subalternentur metaphysicae, de modo diverso procedendi in mathematicis et in physicis, de quo Aristoteles libro secundo Physicorum; et quicquid de definitione dicitur libro secundo de Anima. Haec enim et huiusmodi alia commodissime coniungi possunt, nec superant captum auditorum, qui in fine logicae versantur.294

O trecho é muito claro. Em primeiro lugar, libertam-se alguns tópicos do curso de lógica para o de metafísica. Isto permite antecipar os prolegómenos da física do início do segundo ano (demasiado sobrecarregado) para o final do primeiro. No final da exposição dos Analíticos Segundos devia compilar-se um tratado sobre ciência, onde se incluía a reflexão sobre o “diverso modo de proceder na matemática e na física”.

A discussão sobre o ano em que deve começar o ensino da matemática no curso de filosofia é, portanto, tudo menos inocente. Trata-se de determinar se a teoria da ciência aristotélica fornece um modelo com o qual se tem de confrontar a matemática, ou vice-versa. A segunda opção é a da primeira versão da Ratio Studiorum, que justifica o alargamento do tempo de ensino ao segundo semestre do primeiro ano com o pretexto de que o conteúdo dos Segundos Analíticos seria tanto melhor compreendido, quanto mais se pudesse apoiar em exemplos matemáticos295. A primeira opção é aquela que vincou. Como os filósofos levaram a sua avante, os alunos dos colégios jesuítas de toda a Europa acabaram por estudar primeiro a teoria da ciência levando para as aulas de matemática ideias já firmemente enraizadas sobre metamatemática.

Um quarto espaço consagrado à discussão do tema assegurou a sua divulgação e o seu carácter polémico. Visto que o tópico fazia parte dos programas lectivos, veio a surgir também, inevitavelmente, como assunto a abordar em teses e discussões de final de curso. Algumas são de grande importância, como a que um aluno de Cristopher

294 MPSI 5, 95-107 (a citação é da p. 106). O parágrafo receberá pequenas alterações e continuará

presente na versão final, de 1599.

Scheiner defendeu, em 1614. O próprio Scheiner escreveu o texto, que de seguida enviou, em cópia, a Galileo296. O tema era abordado também em festivais académicos diversos297.