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Excurso: três problemas aristotélicos em perspectiva

Muito brevemente, despendo aqui algumas palavras para explicar como o debate sobre o estatuto da matemática também contribui, de forma indirecta, para outros debates ligados à interpretação dos Segundos Analíticos. Entre eles, referir-me-ei apenas aos seguintes: a) silogismo e teoria da ciência; b) pedagogia e metodologia da ciência; c) acidentes per se.

O primeiro problema é o mais complexo. Durante muito tempo, a crítica moderna pensou que o debate sobre o estatuto da matemática se debruçava inicialmente sobre a inadequação entre a demonstração euclidiana e a teoria aristotélica do silogismo. Neal Gilbert é muito claro a este respeito:

The chief philosophical issue raised by the revival of mathematical studies, however, was whether the actual procedure of geometers in proving theorems and solving problems could be reconciled with Aristotle’s description of a demonstrated science. The central difficulty faced by those who thought it could be so reconciled was the role of the syllogism. If the syllogism as Aristotle had developed it was the instrument par excellence of science, how was one to explain the fact that the proofs of Euclid are not sequences of syllogisms but “linear proofs,” to use the ancient phrase?325

Neal Gilbert lembra, então, as tentativas de diversos autores converterem as provas euclidianas em silogismos (Conrad Dasypodius e Clávio), mas afirma que são vãs e sem utilidade. De Clávio afirma: “Cristopher Clavius [...] also started out to present Euclid in syllogistic form, but soon gave up the attempt as useless”326. Também a tese genérica que sobressai nos artigos de Giacobbe é a de que o silogismo aristotélico (ou a demonstração dialéctica) foi sendo progressivamente substituído pela demonstração matemática enquanto instrumento científico.

Esta tese em história das ideias ganhou maior relevo por duas razões. Em primeiro lugar, porque há participantes no debate da quaestio nos séculos XVI e XVII,

325 Gilbert 1963, 89.

326 Gilbert 1963, 89-90. Outros autores seguiram a opinião de Gilbert acriticamente; veja-se, p.e., Luís M.

Carolino: “Cristoph Clavius termina a demonstração [o autor refere-se à demonstração de Elementos I.1, que Clávio transforma em silogismos] considerando que, ainda que todas as proposições matemáticas sejam passíveis de demonstração silogística, tal procedimento é inútil pois as demonstrações matemáticas são mais directas e imediatas; ou seja, conclui o leitor, estas são superiores” (Carolino 2006a, 29). O texto de Clávio em nada suporta a ideia de uma superioridade da demonstração não silogística por contraste com a silogística.

como Catena e Biancani, que também incluíram observações sobre o facto de que a demonstração euclidiana consiste numa série de entimemas e não exactamente numa cadeia de silogismos327. Em segundo, porque outros autores, desta feita contemporâneos, notaram que as demonstrações euclidianas não podem ser captadas pela teoria do silogismo aristotélico, mas implicam conceitos de lógica de primeira ordem328.

No entanto, historicamente, a tese não tem fundamento; a verdade é que a possibilidade de conversão do discurso matemático em silogismos era comummente aceite. Em primeiro lugar, não é verdade que Clávio pretenda, ao contrastar a demonstração matemática com a silogística, mostrar a superioridade da primeira. O que ele afirma, depois de apresentar em silogismo o teorema I.1 dos Elementos é que as restantes demonstrações de Euclides e dos restantes matemáticos podem ser transformadas facilmente em silogismos e que os matemáticos só não empreendem esta tarefa porque é um gasto escusado de recursos329. Ou seja, a tónica é colocada na possibilidade de conversão da prova matemática em silogismos, sem consequências epistemológicas de maior. O próprio Piccolomini, no seu tratado sobre a certeza das matemáticas, dispõe o teorema I.1. em silogismos, sem indicar qualquer objecção a esta transformação. Além disto, a constatação de que as demonstrações matemáticas se encontram expressas por entimemas, como indicado por Catena e a Biancani, não implica um contraste de facto com a teoria do silogismo, desde que admitida a tese da convertibilidade330. Toda esta argumentação, aliás, se torna supérflua se se atentar no facto de que em nenhum autor se encontra qualquer objecção ao facto de as provas matemáticas se poderem transformar em silogismos. O problema é saber se se podem transformar em silogismos científicos. Por outras palavras, há um problema identificado na confrontação da matemática com os Segundos Analíticos, não com os Primeiros

Analíticos. Desta perspectiva, os exemplos de Dasypodius e Clávio parecem mostrar

327 Biancani, no prólogo à sua obra de esfera (veja-se Biancani 1635, disponível no URL

<http://libcoll.mpiwg-berlin.mpg.de/elib/rara>); Catena nos seus comentários a Aristóteles (p.e., Catena 1556, 25 ss.).

328 Mueller 1969, 1974; Pedrazzi 1974.

329 As palavras de Clávio são estas: “Non aliter resolve poterunt omnes aliae propositiones non solum

Euclidis, verum etiam caeterorum Mathematicorum. Negligunt tamen Mathematici resolutionem istam in suis demonstrationibus, eo quod brevius ac facilius sine ea demonstrent id quod proponitur, ut perspicuum esse potest ex superiori demonstratione” (Clávio 1611-1612, I, 28).

330 Com efeito, nada impede que se possam transformar em silogismos, ou mesmo que o entimema

que a transformação de provas euclidianas em silogismos se restringe a um exercício escolar, sem implicações epistemológicas331.

O segundo problema é interessante e também é colateralmente mencionado no debate sobre o estatuto da matemática. A matemática dos Elementos tende a considerar- se, como se viu, modelo e actualização da teoria da ciência aristotélica. Mas os matemáticos, na linha de Proclo, admitem que há demonstrações matemáticas não causais, como aquelas por redução ao absurdo. Como interpretá-las? Barozzi é muito claro: uma ciência pode ser considerada iuxta puritatem suam, ou quatenus ab

hominibus addiscenda est. A primeira é capaz de oferecer um encadeado demonstrativo ex natura scientiae, mas a segunda pode falhar a norma, ratione discentium. A

concepção de que a teoria da ciência aristotélica pretende indicar uma via de ensino dos diversos saberes é moderna e não parece ter precedentes em qualquer dos autores analisados. Já o mesmo não se pode dizer sobre a concepção de que os Elementos têm finalidade pedagógica. É aqui precisamente que há um desfasamento entre teoria da ciência e prática euclidiana. A primeira descreve uma ciência de acordo com a sua natureza, a segunda expõe uma ciência limitada pelas faculdades intelectuais humanas. A questão fundamental passa a ser esta: é possível construir uma ciência em acto que possa preencher todos os requisitos da teoria da ciência aristotélica e que não fique encarcerada nos limites da razão humana? Levada ao extremo, esta desadequação leva à perda de influência dos Segundos Analíticos, modelo de uma ciência inatingível. Por outro, relativiza o valor de Euclides.

O terceiro problema mostra como não só os matemáticos contorcem a filosofia aristotélica conforme necessário, mas também os filósofos a reinterpretam para lhe dar um significado que não é exactamente o seu. Vimos acima como a noção de per se pode ser muito complexa e como é muito difícil explicar o que é um “acidente per se”. Contudo, Pereira oferece uma leitura de Aristóteles que omite o conceito de “acidente

per se” e considera apenas a oposição entre “per se “ e “acidente”:

4. Potissima demonstratio constat ex his, quae sunt per se, & Mathematici demonstrant multa ex his quae accidunt, vt patet in prima demonstratione Euclidis, vbi ostendit latera trianguli extructi seu

331 A verdade é que uma análise dos silogismos de Clávio ou de Dasypodius mostra uma definição de

“silogismo” tão flexível que é impossível refutar a sua adequação à demonstração matemática. Veja-se Freguglia 1991 e 1999 e Harari 2004. Orna Harari, aliás, faz notar: “The discrepancy between syllogistic reasoning and mathematical proofs extends beyond the problem of formalization. From a formal point of view, the task of rephrasing mathematical inferences so that they comprise two predicative propositions, which relate three terms, is indeed achievable.” (Harari 2004, 90).

erecti super datam rectam lineam esse aequalia inter se. propterea quod sint lineae ducta a centro circuli ad circumferentiam, accidit autem lateribus trianguli aequilateri, esse lineas ductas a centro circuli ad eius circumferentiam.332

No trecho acima transcrito, “per se” é antónimo de “acidental”. Sendo acidental o facto de as linhas do triângulo pertencerem a círculos iguais, a conclusão da primeira proposição dos Elementos não parte de um facto per se, o que torna a demonstração não científica.

Estes três problemas mostram como o debate sobre o estatuto científico da matemática e como a concepção moderna de ciência e a cultura ocidental se construíram, em parte, sobre as contradições, omissões e obscuridades do texto aristotélico.

5. Breve sumário e nota sobre o alcance cronológico e geográfico