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Outras correntes de pensamento contextualizantes

1. Correntes de pensamento da Antiguidade Clássica

1.3. Proclo

1.3.3. Outras correntes de pensamento contextualizantes

Proclo inclui críticas à matemática vindas de muitas outras correntes filosóficas. As mais importantes que refere são a epicurista e a céptica. Sobre os epicuristas, afirma que são críticos da matemática que procuram atacar os princípios, logo acrescentando que o epicurista Zenão de Sídon aprovava os princípios, mas salientava a sua insuficiência para as provas que se lhes seguiam118.

Sabemos que o próprio Epicuro era um detractor da matemática, pois Cícero afirma que o grande matemático Polieno passou a acreditar que a geometria é falsa,

depois de aceitar os argumentos de Epicuro119. O mesmo Polieno terá escrito um livro

sobre matemática que constituía, presumivelmente, um ataque à disciplina120. Epicuro morreu em 270 a.C. e Polieno, um pouco antes dele. Embora seja difícil caracterizar o discurso antimatemática epicurista, a verdade é que a falsidade da geometria era aceite como parte desta corrente de pensamento de Epicuro em diante, e que se concentrava no

117 In Euclidem 69: kai; ga;r oujc o{sa ejnecwvrei lejgein ajll j o{sa stoiceiou'n hjduvnato pareivlhfen,

e[ti de; toi;" tw'n+ sullogismw'n pantoivou" trovpou", tou;" me;n ajpo; tw'n aijtivwn lambavnonta" th;n piv- stin, tou;" de; ajpo; tekmhrivwn wJrmhmevnou", pavnta" de; ajnelevgktou" kai; ajkribei'" kai; pro;" ejpis- thvmhn oijkeivou".

118 In Euclidem 199-200 (veja-se acima, p. 50). Sobre a posição antimatemática dos epicuristas, seguimos

Mueller 2005, 92-95.

119 Academica II 106. O mesmo Cícero reforça esta ideia em De Finibus I 20. 120 Diógenes Laércio, Vita Philosophorum X 25.

ataque aos primeiros princípios. Embora muito fragmentária, a doutrina antimatemática dos epicuristas será relembrada com vigor no século XVII121. Uma boa razão para tão importante escola não ter deixado vestígios sobre a doutrina antimatemática é os seus argumentos sobreviverem nas críticas preservadas em outros autores, como Proclo.

Os cépticos adoptaram estratégia semelhante. Do ataque destes à matemática, sabemos um pouco mais, porque nos resta o texto intitulado Aduersus Mathematicos de Sexto Empírico122.

As suas Hipotiposes ou Esboço geral do pirronismo contêm um ataque sistematizado contra as diversas ciências, incluindo a lógica, a gramática e a matemática. O ataque contra a matemática está, por sua vez, edificado em quatro partes (geometria, aritmética, astrologia e música). O seu “contra os geómetras” (Pro;" Gewmevtra") esclarece, desde o início, o propósito de atacar a geometria enquanto ciência axiomática (CG 244-246, 2-6)123. Os matemáticos, afirma Sexto Empírico, quando querem provar algo, lançam mão de hipóteses (uJpovqesei"), que tomam como o princípio das suas demonstrações (ajrch; ajpodeivxewn). O contorno geral da sua crítica é este: reduz o conceito de “hipótese matemática” àquele de “postulado”, assim aniquilando a dimensão psicologista do conhecimento dos princípios e fazendo

121 Veja-se a anedota contada em Vóssio 1697. Na p. 59 tem início o capítulo Gerardi Joannis Vossii de

Artium et Scientiarum natura ac constitutione. liber III. siue de Mathesi. Cap. I. De Mathesi Generatim; siue de Mathesios vocabulo, & circa quas res scientiae Mathematicae versentur, na p. 60. o Cap. II. De multiplici utilitate Mathesios in omnibus pene artibus, ac scientiis, totaque vita humana. Na p. 63 conta-

se então a referida anedota: “6.§. Cum igitur multiplici adeo nomine commendetur Mathesis; quis tulerit

eos, qui tam contemtim de ea senserunt? uti jam olim factum est a nonnullis; maxime Aristippo Sophista, & Epicuro. Eorum prior utilitatem ullam adferre negabat; ut est apud Aristotelem lib. III Metaphys. cap.

II, & interpretem ejus Sirianum. Alterum vero totam putasse falsam, auctor est M. Tullius lib. IV Academicarum Quaestionum, cap. XXXIII- Ac Epicuro, postquam eum audiisset, adsensit Poliaenus; qui magnus fuisse Mathematicus dicitur; ut ibidem refert Tullius. Non absurde itaque Petrus Ramus contemtores Mathesios Aristippeos, & Epicureos, nuncupabat”.

122 O cepticismo como doutrina filosófica, e não como série de dúvidas dispersas, teve origem no

pensamento filosófico grego e dividiu-se em duas tendências fundamentais. A primeira, designada de cepticismo académico, porque formulada na Academia platónica por volta do século III a.C., pretendia que o filósofo dogmático não podia conhecer com certeza absoluta as proposições que afirmava conhecer. Esta tendência, desenvolvida a partir do dito socrático “só sei que nada sei”, e formulada teóricamente por Arcesilau (circa 315-241 a.C.) e Carnéades (circa 213-129 a.C.) negava, pois, a possibilidade do conhecimento. Uma segunda tendência, mais suave, propunha que não há provas suficientes para determinar se o conhecimento é possível. A melhor informação que podemos obter é somente provável. Esta tendência é designada de pirronismo, de acordo com o nome do seu fundador lendário, Pirro de Élis (circa 360-275 a.C.). A sua formulação filosófica é atribuída a Aenesidemo (circa 100-40 a.C.), mas o movimento floresceu até cerca de 200 d.C., data em que se coloca igualmente o floruit de Sexto Empírico, único céptico grego pirrónico cujo trabalho sobreviveu.

123 Para a breve descrição destas duas tendências, seguimos Popkin 1979. Citamos a obra de Sexto

Empírico “Contra os geómetras” como “CG”, seguida da página e parágrafo, de acordo com a edição que se pode encontrar em Bury 1971.

sobressair a dimensão convencional da matemática124. Hipóteses estabelecidas de forma convencional contornam conceitos como “evidência”, “verdade” ou “certeza” e não se pode afirmar que as conclusões obtidas possam constituir conhecimento. O seu propósito é destruir os princípios, pois se estes não ficarem estabelecidos, o que deles se segue não pode ser aceite como conhecimento (CG 252, 18). Com esta finalidade, esgrime argumentos contra o conceito de “ponto”, “linha”, e “corpo”, pois, se forem destruídos, a geometria não será arte. Os seus argumentos visam provar que nenhuma destas entidades tem existência, sensível ou inteligível. O que acarreta duas consequências: em primeiro lugar, as definições são apenas descrições nominais e não definições essenciais; em segundo lugar, não tendo existência, nenhuma figura geométrica tem existência, porque a sua geração depende daquelas entidades.

De entre os problemas levantados, saliento três, já referidos por Ian Mueller125:

1. O problema dos limites. Sendo uma linha limitada por dois pontos, levanta-se a questão de saber se estes pontos são parte da linha e se possuem um tamanho comparável ao da linha (ou se existe uma proporção entre os dois).

2. O problema da composição. Se uma linha é composta por pontos e a noção de “composição” está ligada à de “justaposição”, alguns princípios e teoremas euclidianos não se podem verificar. Por exemplo, o primeiro postulado dos Elementos permite traçar uma linha entre dois pontos e o teorema décimo da mesma obra permite bissectar uma linha e produzir um terceiro ponto entre os dois originais.

3. O problema do contacto. Se uma linha é composta por pontos contíguos, então dividi-la implica dividir um ponto ao meio (o que é contra a definição de ponto), e juntá-la a outra implica fundir dois pontos.

Os argumentos de Sexto Empírico podem ser interpretados a partir da perspectiva do modelo de ciência aristotélico:

- Sexto Empírico prefere definições genéticas, fruto de movimento: o movimento do ponto gera a linha, o da linha gera a superfície, o da superfície, o sólido (CG 254, 19-20), o movimento de rotação da linha traçada a partir de um ponto

124 Para a formulação explícita da redução das hipóteses a postulados, veja-se CG 253, 17; para a

argumentação substantiva contra os postulados, veja-se CG 247-253, 6-18.

descreve um círculo (CG 256, 26); além disso, a argumentação não refere noções comuns ou postulados euclidianos, mas apenas as definições relacionadas com “ponto”, “linha”, “sólido”, “círculo”. Perspectivadas no âmbito do modelo de ciência aristotélico, estas concepções criam dificuldades quanto à existência de causa formal e eficiente;

- cada contra-argumentação prevê dois casos, o de o conceito se aplicar a algo sensível ou a algo inteligível, o que deixa subjacente o conceito aristotélico de matéria sensível e de matéria inteligível (p.e. CG 254, 22 ss.). No âmbito do modelo de ciência aristotélico, cria-se uma dificuldade a resolver sobre a existência de causa material na matemática;

- a sua argumentação é marcada por um pressuposto (o da subordinação das verdades matemáticas a conceitos físicos) que lança dúvidas sobre se a matemática é ciência subordinante ou subordinada.

- muitas críticas apontam defeitos importantes, ainda hoje mencionados nos comentários a Euclides e que encontram eco na teoria da ciência aristotélica: ambiguidade de alguns conceitos, como o de igualdade (CG 290, 95 e ss.); circularidade nas definições (plano definido por meio da linha e vice-versa: CG 292, 99 ss.).

Sexto Empírico desempenhou um papel fundamental na construção do pensamento moderno. O pirronismo, praticamente desconhecido no Ocidente durante a Idade Média e o início do Renascimento, foi redescoberto com euforia no século XVI, altura em que explodem as cópias manuscritas do texto grego e de traduções latinas de Sexto Empírico. Pensadores como Montaigne, Mersenne, Hobbes e Gassendi viraram- se para aquele filósofo na busca de materiais que pudessem usar no tratamento dos assuntos debatidos na sua época126. Mueller é taxativo quando afirma “I do believe that

the notion that mathematics is a mental creation rather than a discovery of truth about the world has its beginnings in Hellenistic empiricism and scepticism” sem negar as contribuições no mesmo sentido de Aristóteles ou dos neo-platónicos127.

No entanto, embora estas correntes alternativas sejam fundamentais na construção da cultura moderna, os argumentos que avançam acabam absorvidos na discussão que opõe o modelo de ciência aristotélico à matemática euclidiana. Por um lado, o modelo aristotélico é absorvente por si mesmo; por outro lado, os currículos

126 Sobre o “renascimento” de Sexto Empírico no século XVI, veja-se Popkin 1979, 18-41, Schmitt 1987,

Floridi 1995 e 2002.

escolares acabaram por adoptar os textbooks da Academia, marginalizando outros textos alternativos.