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Matemática e causalidade em Anfínomo

1. Correntes de pensamento da Antiguidade Clássica

1.3. Proclo

1.3.1. Matemática e causalidade em Anfínomo

O texto do filósofo neo-platónico é o primeiro conhecido a dar conta de críticas segundo as quais algumas demonstrações matemáticas usadas por Euclides não são conformes aos critérios das demonstrações científicas definidas por Aristóteles nos

Segundos Analíticos, por não cumprirem o seu mais importante requisito: apresentar a

causa da atribuição de uma propriedade a um sujeito100. A este propósito, Proclo menciona, ao comentar o primeiro problema de Euclides, o exemplo de Anfínomo:

Thvn ge mh;n aijtivan kai; to; dia; tiv polloi'" me;n e[doxen hJ gewmetriva mh; qewrei'n - tauvth" gavr ejsti kai; oJ jAmfivnomo" th'" dovxh" jAristotevlou" katavrxanto" - eu|roi d!ajvn ti", fhsi;n oJ Gemi'no", kai; th;n touvtou zhvthsin ejn gewmetriva/.[...] (In Euclidem 202)

O passo permite inferir que havia um problema identificado na antiguidade sobre a existência de provas explicativas (ou causais) na geometria e que um debate se construiu em torno deste problema. Pela parte contrária é citada uma multidão (polloi'") de autores anónimos, dos quais é realçado Anfínomo. Pela parte favorável apenas é citado um autor de peso (Gémino). Não são claros os contornos do debate. De Anfínomo não se avançam argumentos. O passo continua, referindo: “Pois não é tarefa do geómetra inquirir a razão por que se pode inscrever num círculo um número infinito de polígonos equiláteros, conquanto numa esfera não seja possível inscrever um infinito número de poliedros equiláteros, equiangulares e com faces iguais?”, mas não sabemos se Proclo está a citar um exemplo avançado por Gémino, ou se o argumento é seu. Acresce que Anfínomo é do século IV a.C. e Gémino do século I d.C. Proclo (séc. V) fundamenta-se, seguramente, em fontes secundárias. Não se conseguindo datá-las, fica por esclarecer se há continuidade no debate entre o século IV a.C. (Anfínomo), o séc. I d.C. (Gémino) e o próprio Proclo (séc. V d.C.). Em caso de descontinuidade, deve realçar-se este contínuo retorno ao problema. O passo também associa o debate a Aristóteles, mas o genitivo absoluto jAristotevlou" katavrxanto" é vago, impreciso e

100 Uma das maiores riquezas do texto de Proclo é que indica um imenso número de dificuldades

colocadas por um enorme número de pessoas a propósito dos primeiros princípios e das demonstrações dos Elementos. Indica, além disso, a forma como se procurava dar solução a estas dificuldades e como as críticas influenciaram a prática da matemática. Alguns autores, p.e., teriam elementos com demonstrações mais curtas, outros, com demonstrações mais longas; uns teriam evitado o uso da redução ao absurdo, outros a teoria das proporções; alguns ainda ter-se-iam precavido de futuras críticas nos primeiros princípios (In Euclidem 73). As críticas à existência de causas na matemática são aquelas mais extensamente analisadas, o que é natural, dado o programa procliano de defesa da adequação do modelo aristotélico à prática euclidiana.

difícil de entender. Para os tradutores modernos, Proclo afirma expressamente que Aristóteles foi o criador da tese de Anfínomo, mas, ao mesmo tempo, são forçados a considerar tal tese paradoxal, porque, como vimos, há passos no corpus aristotelicum que afirmam o contrário e não há nenhum que expressamente defenda esta tese101. Tentemos explicar melhor o sentido do texto de Proclo.

De Anfínomo pouco sabemos. É mencionado apenas por Proclo, e apenas mais três vezes, além da referência no passo citado acima. Estas referências, no entanto, são suficientes para o situar no tempo e indicar o seu campo de estudo. Um passo menciona em conjunto os “discípulos de Espeusipo e Anfínomo”, parecendo considerar ambos contemporâneos. Ora Espeusipo foi o sobrinho de Platão e seu sucessor na direcção da Academia, o que permite colocar Anfínomo na Atenas do séc. IV a.C. (In Euclidem 77)102. Outro passo refere que Anfínomo e Menecmo pertenciam ao mesmo círculo intelectual: kai; tau'ta oujde; tou;" peri; to;n Mevnaicmon kai; jAmfivnomon levlhqen maqhmatikouv" (In Euclidem 254). Menecmo foi irmão do matemático Dinóstrato, conhecido por ter usado a quadratrix para quadrar o círculo; foi igualmente discípulo de Platão e Eudoxo e, portanto, deve ter tido o seu floruit em meados do século IV a.C.; além das suas descobertas em matemática pura (descoberta das secções cónicas) é conhecido por ter escrito sobre metodologia da matemática103. Anfínomo parece, pois, ter trabalhado em área de confluência da filosofia, pois é mencionado juntamente com um filósofo, no primeiro caso, e da matemática, pois é referido em conjunto com um matemático (mas com interesses metodológicos), no segundo. Sabemos, com efeito, que, entre os assuntos estudados (tau'ta) pelos matemáticos em torno de Anfínomo e Menecmo, estava a possibilidade de conversão de proposições sobre atributos primeiros e essenciais de um sujeito, tema próximo da metamatemática, da metafísica e da lógica. O seu trabalho de investigação em filosofia da matemática é confirmado pela discussão

101 A opinião de Glenn Morrow, p.e., é a seguinte: “This reference to Aristotle is difficult to understand.

The Post. Anal. insist that demonstration is reasoning that establishes the cause (aijtiva or dia; tiv): cf. esp. 85b23ff. And the aijtiva that Aristotle demands appears to be identical with the conception of Geminus, as cited here” (Morrow 1992, 158 n. 7). As suas dúvidas estão ligadas à sua interpretação do texto, por isso citamo-la igualmente: “Many persons have thought that geometry does not investigate the cause, that is, does not ask the question “Why?” Amphinomus is of this opinion, though Aristotle originated it.” (Morrow 1992, 158; o itálico é nosso). A tradução de Morrow atribui a Aristóteles a opinião que Anfínomo reproduziu. Concordamos com Morrow que Aristóteles, embora impreciso, nunca defendeu tal opinião expressamente, e que Proclo não parece querer-lhe atribuir esta opinião; mas daqui só se pode seguir que a tradução não corresponde ao pensamento que Proclo quer transmitir; com efeito, aquele “it” não está no texto de Proclo e resta determinar o que Aristóteles terá “originado” de acordo com Proclo (ou Anfínomo?). Os tradutores latinos (p.e. Barozzi 1960, 10v e 30 r e Biancani 1615, 20) utilizam a expressão vaga “Aristotele duce”, sem se debruçarem sobre o problema.

102 Veja-se também Morrow 1992, 63 n. 66.

do problema da causalidade, acima referido (metamatemática e epistemologia), e pela participação no debate que opõe defensores do construcionismo e defensores do existencialismo na matemática antiga.

Por sua vez, este debate é referido por Proclo nos seguintes termos104. Algumas proposições dos Elementos são problemas, outras, teoremas. Os problemas incluem construção de figuras, sua divisão em secções, subtracções e adições. Os teoremas limitam-se a demonstrar propriedades inerentes às figuras. Uma analogia esclarece o seu pensamento: tal como as ciências produtivas possuem alguma teoria, assim também as teóricas resolvem problemas, executando-os de forma semelhante a uma produção. Acontece que alguns antigos, “como os discípulos de Espeusipo e Anfínomo”, insistiam em considerar que todas as proposições eram teoremas, porque as ciências teóricas se debruçam sobre objectos eternos e imutáveis, que não sofrem geração ou mutação. Por isso, quando se constrói um triângulo equilátero, não se deve pensar que o triângulo é

feito, mas que é entendido por meio da construção, que toma uma coisa eterna como se estivesse em processo de geração (ta;" de; genevsei" aujtw'n ouj pohtikw'" ajlla; gnws-

tikw'" oJrw'men: In Euclidem 78); ou seja, a construção é um processo epistemológico e não ontológico. Mais: a construção é um processo metafórico ou analógico. Outros antigos, como os membros da “escola de Menecmo”, consideravam, pelo contrário, que todas as proposições se deviam chamar problemas, porque o seu objectivo é apresentar algo que era procurado, seja esse algo uma relação, uma qualidade, ou outra coisa qualquer.

Proclo é substancialmente mais vago em relação à segunda opinião, que se torna mais difícil de precisar. A sua própria posição é intermédia. A escola de Espeusipo teria razão porque os problemas geométricos são diferentes dos mecânicos, onde os objectos são sensíveis e sofrem todo o tipo de alteração; a escola de Menecmo, pelo contrário, teria razão porque a descoberta de teoremas não poderia ocorrer sem recurso à matéria, ainda que inteligível (ouj ga;r a[neu th'" eij" u{lhn proovdou kai; aiJ tw'n qewrhmavtwn eijsi;n euJrevsei". levgw de; u{lhn th;n nohthvn: In Euclidem 78). Proclo não é claro e nunca deixa explícito o seu pensamento sobre problemas complexos levantados por este debate, como o da existência ou não de movimento nos objectos matemáticos (geração, local, etc.) ou o da finalidade da construção (serve um processo heurístico, demonstrativo ou produtivo? serve como prova de existência?).

104 In Euclidem 77 e ss. Sobre o debate existência/construção, veja-se Mancosu 1996, 218 n. 59 (com

Dúvidas deste género já estavam formuladas em Platão, que, em determinado passo da República, critica a linguagem dos matemáticos por referir acções como quadrar, somar, sobrepor, quando o seu objecto de estudo é o conhecimento puro, definido, de seguida, no mesmo passo, como o que existe sempre e nunca se gera ou destrói105. Contudo, se nos debruçarmos sobre a prática da matemática grega,

verificaremos, com efeito, que o movimento joga um papel muitíssimo relevante. A resolução da quadratura do círculo por meio da quadratrix, acima referida, envolve movimento de pontos com velocidade constante. Autólico de Pítane, que escreveu um tratado intitulado A Esfera em Movimento, considerado usualmente o texto mais antigo de matemática grega e o único sobrevivente do período pré-euclidiano, apresenta demonstrações alicerçadas no movimento que pontos desenham numa esfera quando se movem também a uma velocidade constante. O mesmo conceito de velocidade constante aplicado a pontos em deslocação é utilizado por Arquimedes para construir as suas espirais; finalmente, no próprio Euclides há objectos criados por movimento de objectos mais simples, como a esfera, gerada a partir do movimento de um semicírculo em torno de um eixo. A definição destes objectos é genética106.

Aristóteles, no entanto, parece considerar que o movimento está ausente da matemática. Em determinado passo, afirma que existem alguns ramos da matemática que tratam objectos imóveis e separados, outros, objectos imóveis e inseparáveis, colocando a distinção entre objectos separados e não separados, mas considerando todos imóveis107. Em outro passo, defende Aristóteles que processos utilizados em construções de figuras, como o processo de divisão, servem para mostrar em acto relações que existem em potência, tornando-se difícil perceber se a construção auxiliar está associada a um processo demonstrativo ou heurístico:

euJrivsketai de; kai; ta; diagravmmata ejnergeiva/ + diairou'nte" ga;r euJrivskousin. eij d jh\n dih/rhmevna, fanera; aj;n h\n +nu'n d jejnuvpavrcei dunavmei. dia; ti; duvo ojrqai; to; trivgwnon;; o{ti aiJ peri; mivan stigmh;n gwnivan i[sai duvo ojrqai'". eij ou\n ajnh'kto hJ para; th;n pleuravn, ijdovnti aj;n h\n eujqu;" dh'lon dia; tiv.[...] wJvste fanero;n o{ti ta; dunavmei o[nta eij" ejnevrgeian ajgovmena euJrivsketai + aijtivon de; o{ti hJ novhsi" ejnevrgeia. (Metafísica IX 1051a21-31)

105 República 527a.

106 Mas quando precisa de definir “linha”, Euclides põe de lado a antiga definição genética, baseada no

traço definido pelo movimento de um ponto e adopta uma definição praticamente sem significado; por outro lado, a definição de círculo é estática, quando podia ser construída em paralelo à de esfera. É, no entanto, difícil de precisar estas opções. A tradição textual complica o problema, pois muitas definições parecem adições posteriores e muitos termos podem ter ficado sem definição no texto euclidiano.

Em tratado de intenção epistemológica, não parece inocente a específica alusão aos problemas debatidos por Anfínomo. Pelo contrário, o debate em torno das construções e aquele que gira em torno do tópico da causalidade podem estar ligados. Anfínomo diz que os objectos matemáticos, assim como as suas propriedades não são criados, mas existem sem mais; a mesma coisa dita por outras palavras vem a reduzir-se a afirmar que na matemática não há movimento, senão metafórico, e que não há geração ou transformação de objectos108. Se acrescentarmos que Anfínomo acredita que não há causalidade na geometria (sem que possamos distinguir se se refere à causalidade nas demonstrações matemáticas ou nos objectos matemáticos), temos relacionados três conceitos convergentes: causalidade, movimento, existência. Esquematicamente, a conclusão é esta: problemas possuem movimento, teoremas não; problemas ainda poderiam ter causas, mas teoremas não; a geometria só tem teoremas, logo não tem causas. Ora, vimos antes, que Aristóteles afirma expressamente que a matemática não apresenta causa eficiente ou final, e parece ser a eficiente aquela que Anfínomo considera.

Do texto de Proclo temos pois que a) o texto de Aristóteles se tornou o referencial de um modelo de ciência explicitamente causal, porventura baseado na prática da matemática da Academia109; b) que a discussão de membros da mesma

Academia em Atenas levou a sério o problema da adequação entre o modelo e a prática matemática; c) que o debate foi suficientemente inculcado de forma a ser discutido 300 anos depois por Gémino e referido 800 anos depois, por Proclo110; d) que o problema da causalidade aparenta estar relacionado com o do movimento e uso de construções, o que restringe o problema à geometria, sendo ambíguo o que acontece na aritmética.

108 Seria interessante saber como considerava Anfínomo o estatuto das provas por sobreposição, que

implicam outro tipo de movimento, local.

109 Esta deve ser a interpretação genérica, portanto, do genitivo absoluto que tantas dores de cabeça causa

aos tradutores. Anfínomo deve manifestar a sua opinião na sequência do modelo proposto por Aristóteles.

110 No entanto, é impossível precisar se o problema era uma curiosidade intelectual ou se se impunha

naturalmente, no século V d.C. Por outro lado, não sabemos a dimensão que a reflexão sobre o assunto ocupava nas obras de Anfínomo ou Gémino.