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1. Correntes de pensamento da Antiguidade Clássica

1.2. Euclides

A maior parte das escassas informações que possuímos de Euclides são tiradas de Proclo79. O seu floruit deve situar-se por volta de 300 a.C., entre Platão e Arquimedes (287-212 a.C.). É muito provável que tenha recebido a sua educação em matemática em Atenas com os discípulos de Platão, pois a maior parte dos geómetras que o poderiam ter ensinado pertenciam à Academia; além disso, foi em Atenas que viveram e ensinaram os primeiros escritores de elementos (que referiremos de seguida) e outros matemáticos que tiveram influência na construção dos Elementos (basta lembrar Eudoxo, autor da teoria das proporções exposta no livro V dos Elementos).

A ideia de provar teoremas era familiar no final do séc. V a.C., quer os matemáticos tenham tirado a sua noção de prova da prática da filosofia, quer tenham descoberto por si mesmos que algumas verdades geométricas se seguem de outras. Foi no final desse século que viveu aquele que se considera o primeiro escritor de elementos, Hipócrates. No tempo de Arquitas (430-365 a.C.), senão mesmo antes, devia existir uma compilação de elementos de Aritmética. No séc. IV a.C., o arranjo que se encontra em Euclides deve ter-se tornado comum e os livros de elementos multiplicaram-se. Eudemo, que apenas conhecemos através de fontes secundárias menciona como autores de Elementos Leodamas, Teeteto, Léon, Teudio e Hermotino de Cólofon. A julgar pelo número de matemáticos activos no século IV a.C. e pelos seus extraordinários resultados, a geometria era um exemplo de uma disciplina de sucesso. Na Academia, o livro de estudo da geometria devia ser aquele escrito por Têudio de

78 Sobre a forma como, no De RevolutionibusOrbium Caelestium, Copérnico desautoriza outras classes

profissionais que não a dos matemáticos para avaliar a sua teoria, veja-se Westman 1980, 109.

79 In Euclidem 68, 6-20. O comentário de Proclo ao primeiro livro dos Elementos será sempre citado desta

Magnésia. Este admirado matemático desenvolveu o seu trabalho de investigação na Academia em conjunto com Amiclas de Heracleia, Menecmo (discípulo de Eudoxo), Dinóstrato (irmão de Menecmo) e Ateneu de Cízico. Não há notícia de outro autor de elementos até Euclides, portanto deve ter sido ele o antecessor imediato deste. Aristóteles, que muito apreciava os exemplos matemáticos, refere-se a proposições e outros elementos de matemática elementar de tal maneira que os seus alunos deviam ter à mão um manual onde pudessem completar a informação sem dificuldade. Esse manual devia ser aquele escrito por Teudio. Temos, assim, que Euclides, Platão, Aristóteles e os matemáticos gregos da época participam de um mesmo meio intelectual.

Euclides não fornece qualquer apontamento sobre o seu método, não menciona motivações, não inclui apartes, não alude ao desenvolvimento da matemática, não refere pessoas, não faz referências cruzadas (excepto quando refere o teorema primeiro do livro X, em XIII, 2), em claro contraste com Arquimedes, Apolónio ou Ptolomeu. Sobre estes assuntos, só poderemos saber o que se depreende da prática apresentada nas suas obras. O primeiro livro dos Elementos começa imediatamente com uma lista de assunções divididas em três grupos denominados “definições”, “postulados” e “noções comuns”. De seguida enuncia e prova 48 proposições (provtasei"), que dividem em dois tipos: as que mostram como executar uma tarefa (1-3, 9-12, 22, 23, 31, 42, 44-46) e as que produzem uma asserção (as restantes). As primeiras passaram a ser conhecidas como “problemas”; as segundas, como “teoremas”.

Proponho fazer uma exposição dos problemas constantemente colocados sobre estes quatro temas (definições, postulados, noções comuns e proposições), que hão-de ser especialmente relevantes na discussão sobre o estatuto da matemática nos séculos XVI e XVII. A verdade é que os problemas considerados mostrarão que a teoria da ciência aristotélica paira como uma sombra sobre a produção dos Elementos. Comecemos pelos princípios, cuja tripartição já é indicativa da relação estreita com Aristóteles80.

O primeiro livro dos Elementos contém definições de termos que não são usados nas demonstrações (“linha”, “plano”, “superfície”, “oblongo”, “rombóide”). Em

80 Com efeito, não há notícia de uma semelhante divisão dos princípios em matemáticos anteriores a

Euclides, nem ela é encontrada em autores gregos posteriores (McKirahan 1992, 141-2). Veja-se também Bochner 1966, 36: “In an apparent effort to emulate, or comply with, certain Aristotelian philosophical doctrines of his day, Euclid attempted, at the head of his book 1, to separate certain primary data into «postulates» and «common notions», but generations of commentators have not been able to rationalize this separation satisfactorily. Archimedes, however, ignored these would-be philosophical distinctions as if they were schoolmasterly pedantries, and he uses such related terms indiscriminately, as the fancy strikes him”.

contrapartida, alguns dos termos usados ao longo dos Elementos não são definidos (“paralelogramo”, “intersecção”, “pentágono”, “igual”)81. Algumas são do tipo

genus+differentia, mas outras são genéticas82. Algumas contêm informação excessiva e

passível de demonstração83. Algumas não parecem definições, mas explicações adicionais84. Algumas, não todas, desempenham um papel essencial na prova, como as

definições 10-12, 15-17, 20, 21 e 23. Um exemplo típico da importância que uma definição pode ter numa demonstração é dado pelo uso da definição de círculo na prova da proposição 1, que veremos de seguida. A mesma proposição mostra a irrelevância de outras definições, como a de ponto. As definições parecem ter um papel fundacional mais importante que o de qualquer outros princípios, pois nos restantes livros dos

Elementos surgem novas definições, mas nunca postulados ou noções comuns.

É questão muito debatida ao longo dos tempos se as definições euclidianas são nominais ou essenciais, o que vem a redundar na discussão de saber se os objectos definidos existem ou não. Euclides parece seguir a doutrina aristotélica que defende que as definições em si mesmas nada dizem sobre a existência dos objectos definidos. Diz o Estagirita que a existência dos objectos definidos em cada ciência deve ser demonstrada, excepto a existência de algumas coisas primordiais em cada ciência, cuja existência é indemonstrável e deve ser assumida, como “ponto” e “linha” na geometria85. É aqui que entram em jogo os postulados euclidianos. Os primeiros três

postulados em Euclides declaram a possibilidade de construir linhas e círculos. São estes postulados que permitem construir e, por conseguinte, provar a existência dos restantes objectos, como o triângulo (em I, 1 e 22), o quadrado (I, 46), o ângulo recto (I, 12), as paralelas (I, 27-29). O postulado quarto é um precioso auxiliar em construções do livro 2º dos Elementos. O famoso postulado 5 pode ser interpretado como uma asserção de existência para pontos, pois permite a intersecção de linhas e a intersecção

81 Veja-se Netz 1999a, 90-103.

82 As definições I. 1, 3, 5, 11-14 ou 16 são exemplos definição por genus + differentia. P.e.: Um ângulo

agudo é um ângulo menor que um recto (I, 12). A definição de esfera (XI. 14) é um exemplo de definição genética: “Quando o diâmetro de um semicírculo permanece fixo e o semicírculo gira até retornar à mesma posição, a figura assim descrita é uma esfera”.

83 Como, p.e., a definição (I. 17): “Um diâmetro do círculo é qualquer linha traçada do centro e limitada

em ambas as direcções pela circunferência do círculo, e tal linha recta também bissecta o círculo”. Que o diâmetro bissecta o círculo pode ser demonstrado.

84 Por exemplo, a definição I. 3: “As extremidades de uma linha são pontos”. Netz faz notar que esta não

é uma definição (nenhum dos três nomes que contém, linha, ponto ou limite, é definido) comentário de segunda ordem respeitante às duas primeiras definições (de linha e ponto). Veja-se a sua breve, mas convincente argumentação em Netz 1999a, 94-95.

85 Segundos Analíticos I.10, 76a31 e ss. Sobre o papel da construção em Euclides, veja-se Molland 1968,

pode dar-se apenas num ponto. Em Euclides, portanto, é possível ver uma identificação entre existência e construção. Esta posição epistemológica, não declarada, mas apenas detectada na prática dos Elementos, não pode ser inconsciente, pois o debate construção/existência está activo na pré-história dos Elementos e, mais uma vez, pode ser um elemento de formação tanto dos Elementos, como dos Segundos Analíticos86. A

existência dos objectos matemáticos e o correlativo problema do estatuto das definições matemáticas terá uma dimensão importante nos séculos XVI e XVII e ainda hoje se mantém. Se em geral, a matemática moderna postula a existência à maneira de Hilbert, alguns críticos deste método defendem que a existência em matemática deve ser provada à maneira euclidiana87.

Sobre os postulados pode acrescentar-se algo mais, com relevância para o desenvolvimento desta tese. Em primeiro lugar, são assunções não evidentes. São pedidos ao ouvinte (donde a frequente terminologia “petições”, petitiones) e concessões que este aceita fazer sem que haja necessariamente comprometimento com a sua veracidade88. Por outro lado, ao permitirem executar determinadas construções, exigem

a concepção de um espaço geométrico com propriedades não necessariamente correspondentes ao espaço da realidade física que conhecemos. A possibilidade de traçar uma recta entre dois pontos implica um espaço sem interrupções e impede (mesmo no espaço geométrico) que dois pontos sucessivos numa recta sejam contíguos; que seja possível prolongar uma recta ou traçar um círculo com qualquer raio implica um espaço, senão infinito, pelo menos ilimitado. Ora acontece que, com razão ou sem ela, o texto dos Elementos foi lido ao longo das épocas como obra que espelha relações entre objectos reais, o que tornou a questão em torno dos postulados muito complexa89. Muitas críticas que veremos feitas a diversas proposições vêm alicerçar-se precisamente aqui, nos postulados.

As noções comuns parecem ser equivalentes aos axiomas do texto aristotélico. São verdades supostamente evidentes, aceites por todos intuitivamente e comuns porque funcionam como princípio em diversas ciências, como a geometria e a aritmética. Pelo contrário, leis lógicas, como a da não contradição ou a do terceiro excluído, não são

86 Veja-se, sobre este tópico, o capítulo seguinte, que se debruça sobre Proclo.

87 Mueller 2006, 15. Interessante a observação de Ian Mueller neste lugar de que a crítica moderna da

assunção de existência está ausente da geometria elementar, mas está ligada a ramos da matemática em que conjuntos infinitos ou séries jogam um papel decisivo.

88 Pede-se aqui ao leitor que aceite o termo “veracidade” da forma mais vaga que entender.

89 Um autor moderno que ainda defende a intenção hermenêutica do mundo nos Elementos é G. Lloyd:

“Euclid almost certainly assumed that Elements presents not just a consistent set of mathematical truths but a set that corresponds to the reality of spatial relationships in the world” (Lloyd 2003, 107).

enunciadas. Uma hipótese possível para esta falta presume que Euclides seguiu o exemplo dos seus predecessores; estes, por um qualquer motivo desconhecido não incluíram aquelas leis nas suas listas de princípios. Uma hipótese mais forte radica no facto de que a teoria da ciência aristotélica pode explicar esta ausência: por um lado, estes princípios não são, como vimos, ex quibus, mas de acordo com os quais; por outro lado, podem estar ligados a uma ciência diferente da matemática que regule os processos mentais. Embora sejam (supostamente) verdades evidentes, a verdade é que “evidência” é um termo complicado em matemática, como creio ficará mostrado ao longo deste trabalho. Muitas dúvidas se levantarão ao longo da história sobre as noções comuns. Um dos problemas mais agudos está ligado à quarta noção comum (“Coisas que coincidem uma com a outra são iguais entre si”) e interessa aqui referir. O princípio é utilizado como um axioma de congruência, ou seja, visa legitimar a demonstração por sobreposição. Ora a fraseologia das proposições em que Euclides emprega este método indica sem margem para dúvidas que uma figura é, de facto, movida e colocada sobre a outra, o que exige uma concepção de movimento sem deformação90. Mas, mais uma

vez, esta é uma concepção que pode ou não ter correspondência na realidade física. Dúvidas de diferente tipo são aquelas respeitantes a axiomas que não estão formulados, mas deviam estar. Os postulados permitem construções efectuadas por meio de linhas rectas e círculos que, ao cruzarem-se, determinam novos pontos; estes são utilizados, novamente, para determinar novas linhas. Ora, embora a existência de tais pontos de intersecção tenha de ser postulada ou provada, contudo, apenas a intersecção de linhas rectas é postulada (postulado quinto), quando é igualmente fundamental a intersecção entre círculos e entre círculos e linhas rectas. Com efeito, tornou-se lugar comum, por exemplo, criticar o primeiro teorema do primeiro livro, que analisaremos pouco mais abaixo, porque Euclides assume a intersecção dos dois círculos que traça e considera-a um dos vértices do triângulo equilátero que se propõe construir. O mesmo problema surge em I. 12 ou I. 22. Nem mesmo no livro terceiro, onde diversas proposições se referem a posições relativas de dois círculos, se encontram discutidas as condições em que dois círculos se cruzam. Ou seja, há brechas no edifício euclidiano. O problema é que nunca se sabe se se pode provar posteriormente aquilo que se subentende numa demonstração anterior, o que provocaria circularidade na

90 A concepção euclidiana não é a única possível: Bertrand Russel concebe a sobreposição como prova

sem movimento, ou por outra, o movimento não está fisicamente nas figuras, mas intelectualmente na atenção de quem observa a prova (Heath 1956, I, 227).

cadeia demonstrativa. A acusação de circularidade na matemática será recorrente entre os detractores da matemática.

Depois dos princípios, seguem-se as proposições. Para cada proposição, Euclides fornece uma prova que possui uma forma estilizada e que pode ser dividida em diversas partes. Proclo é o primeiro autor que fornece uma descrição de um esquema geral das provas euclidianas que se tornou muito difundido91. Eis a proposição primeira do primeiro livro dos Elementos de Euclides, com indicação do esquema de Proclo (ver figura 1):

Enunciação (provtasi", propositio): Sobre uma dada linha recta finita [definições 2-3], construir um triângulo equilátero [definições 19-20].

Exposição (ejvkqesi", expositio): Seja AB a linha recta finita dada.

Especificação (diorismov", determinatio): Pede-se, portanto, que se construa um triângulo equilátero sobre a linha recta AB.

Construção (kataskeuhv, constructio): Com centro A e distância AB, tenha sido descrito o círculo BCD [definição 15-16, postulado 3]; de novo, com centro B e distância BA, tenha sido descrito o círculo ACE [definição 15-16, postulado 3]; e do ponto C, no qual os círculos se cortam um ao outro [sem postulado ou prova], até aos pontos A e B [definição 3], tenham sido traçadas as linhas rectas CA, CB [postulado 1].

Prova (ajpovdeixi", demonstratio, ostensio): Ora, visto que o ponto A é o centro do círculo CDB, AC é igual a AB [definição 15]. De novo, visto que o ponto B é o centro do círculo CAE, BC é igual a BA [definição 15]. Mas foi também provado que CA é igual a AB; portanto, cada uma das linhas rectas CA, CB é igual a AB. Ora, coisas iguais ao mesmo, são iguais entre si [noção comum 1]; logo, CA também é igual a CB. Portanto, as três linhas rectas CA, AB, BC são iguais entre si.

91 Veja-se In Euclidem 203. Este esquema está em conformidade com a prática dos Elementos, mas é de

difícil adaptação à matemática praticada por outros matemáticos gregos, como Arquimedes ou Apolónio. Além disso, a terminologia que emprega não é encontrada antes do próprio Proclo. Com base nestes dados, Reviel Netz propõe que o esquema procliano foi inventado com a finalidade de um comentário a Euclides e que provavelmente foi o próprio Proclo o seu inventor (Netz 1999b).

Conclusão (sumpevrasma, conclusio): Portanto o triângulo ABC é equilátero; e foi construído sobre a linha recta finita dada; o que se pedia fosse feito (o}per e[dei poih'sai, quod erat faciendum).

Figura 1

Esta proposição é um problema, pois ensina a fazer algo, no caso, um triângulo equilátero. Euclides não nos informa sobre a razão que o leva a começar com esta construção, mas sabemos que ela serve de lema para as duas proposições seguintes, fundamentais na indicação do uso a fazer da régua e do compasso ao longo dos

Elementos. Sendo a primeira dos Elementos, receberá atenção redobrada ao longo dos

tempos. Será crítica recorrente realçar que só na proposição 22 Euclides ensina a construir um triângulo com quaisquer lados. A proposição I. 1 é, pois, um resultado parcial de I. 22, mas está colocado antes daquele o que lança a reflexão sobre a natureza da ordenação das proposições nos Elementos. Outros problemas detectados são, por exemplo, a assunção de que os círculos se intersectam sem postulado que o assegure, como vimos, e a aplicação dos postulados 1-3, não evidentes. Estes problemas permanecem como focos de tensão ao longo da história e são muito antigos. Zenão de Sídon (sécs. II-I a.C.) considerava que o primeiro problema dos Elementos não podia ser resolvido sem que se assumisse previamente que duas linhas ou duas circunferências não podem ter segmentos comuns. A crítica de Zenão não pode ser considerada desonesta, ingénua ou absurda. Professor reputado e referido por contemporâneos, como Cícero e Diógenes Laércio, mereceu de Posidónio (estóico, professor de Cícero) um livro inteiro para mostrar a incorrecção das suas teses matemáticas e, de Proclo,

algumas páginas a refutar a sua crítica92. Thomas Heath defende que o segundo postulado já previne aquela crítica93. Contudo, o problema pode não estar na semântica do postulado mas no acto psicológico da sua aceitação. Desconhecemos os argumentos de Zenão e se são razões físicas ou matemáticas que o levam a criticá-lo. Hoje em dia a crítica parece ingénua e absurda, mas uma simples assunção de deformação do espaço seria suficiente para a justificar.

No caso de teoremas, as diferenças para a estrutura acima indicada são 3: a) a especificação começa com “Afirmo que”, b) a conclusão repete a enunciação e c) a conclusão termina com as palavras “o que se pedia fosse demonstrado”. Eis um exemplo, o trigésimo segundo do primeiro livro dos Elementos (ver figura 2):

Enunciação (provtasi", propositio): Prolongado um dos lados [postulado 2] de um qualquer triângulo [definições 19-21, construção em I, 1 e 22], o ângulo [definição 8] externo é igual aos dois internos e opostos e os três ângulos internos do triângulo são iguais a dois rectos.

Exposição (ejvkqesi", expositio): Seja ABC um triângulo, e tenha um dos seus lados, BC, sido prolongado até D.

Especificação (diorismov", determinatio): Afirmo que o ângulo externo ACD é igual aos dois internos e opostos CAB, ABC e que os três ângulos internos do triângulo ABC, BCA, CAB são iguais a dois rectos.

Construção (kataskeuhv, constructio): Tenha CE sido traçada pelo ponto C paralela à linha recta AB [I. 31].

Prova (ajpovdeixi", demonstratio, ostensio): Ora, visto que AB é paralela a CE e sobre ambas caíu AC, os ângulos alternos BAC, ACE são iguais entre si [I. 29]. De novo, visto que AB é paralela a CE e sobre ambas caíu a recta BD, o ângulo externo ECD é igual ao interior e oposto ABC [I. 29]. Mas também foi provado que o ângulo ACE é igual ao ângulo BAC; portanto, todo o ângulo ACD é igual aos dois internos e opostos BAC, ABC. Tenha sido acrescentado a ambos o ângulo ACB. Então, os ângulos ACD,

92 In Euclidem 199-200 e 214-218. 93 Heath 1956, I, 242.

ACB são iguais aos três ABC, BCA, CAB. Mas os ângulos ACD, ACB são iguais a dois rectos. Logo, também os ângulos ACB, CBA, CAB são iguais a dois rectos.

Conclusão (sumpevrasma, conclusio): Portanto, prolongado um dos lados de um qualquer triângulo, o ângulo externo é igual aos dois interiores e opostos e os três ângulos internos do triângulo são iguais a dois rectos. O que se pedia fosse demonstrado (o}per e[dei dei'xai, quod erat demonstrandum).

Figura 2

Este teorema é um dos mais famosos da história da matemática. Nele se demonstra um resultado fundamental que diz respeito às propriedades dos triângulos e à teoria das paralelas, que se relaciona explicitamente com o postulado quinto. A sua descoberta é antiga e deve ter sido considerada extraordinariamente importante na antiguidade. Atesta-o o facto de que Euclides prova este teorema assim que tem material suficiente para o fazer94. À semelhança do que se disse sobre a primeira proposição, também alguns corolários tirados deste teorema se encontram provados anteriormente, como, por exemplo, no teorema décimo sétimo. Por sua vez, o resultado demonstrado no teorema 17 é considerado muitas vezes o converso do postulado quinto, o que mais uma vez, lança dúvidas sobre a ordenação demonstrativa dos Elementos95. Também aqui parecem não estar explicitados alguns princípios fundamentais em que basear a prova. Por causa de este e outros teoremas que fazem as mesmas assunções não

94 Mueller 2006, 19.

95 É Proclo quem refere que o teorema décimo sétimo é o converso do postulado quinto (In Euclidem 183-

4 e 192). Bernard Vitrac anota: “Le lien entre cette proposition et le cinquième postulat est évidemment étroit. Dans la l’interprétation de ce postulat comme une «condition d’existence» d’un triangle, notre proposition en est en quelque sorte la réciproque” (Vitrac 1990-1998, I, 229). Mueller é mais cauteloso: “This seems to me a low point in the commentary. Euclid proves XVII because it is a weaker assertion than the parallel postulate....His realization of the necessity for such a postulate despite the provability of its converse may have been his greatest contribution to geometry” (in Morrow 1992, 184 n. 8).

fundamentadas, acrescentou Clávio às noções comuns o axioma: “o todo é igual à soma das suas partes”.

Este teorema é, também um dos exemplos mais citados por Aristóteles, que por vezes o indica, de forma abreviada, por meio de duas ou três palavras (p.e. to; dusi;n ojrqai'", em Segundos Analíticos I.24 85b5). Ao longo dos Segundos