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Problemas inerentes ao modelo aristotélico

1. Correntes de pensamento da Antiguidade Clássica

1.1. Aristóteles

1.1.2. Problemas inerentes ao modelo aristotélico

A proposta aristotélica patente nos Segundos Analíticos apresenta alguns problemas de interpretação que merecem referência porque são objecto de reflexão no âmbito da polémica sobre o estatuto da matemática nos séculos XVI e XVII.

O primeiro liga-se à finalidade da obra. Não a finalidade que Aristóteles pretendeu imprimir à obra, mas a finalidade da obra desligada da intenção do autor. Duas interpretações são relevantes. A interpretação “metodológica” defende que os

Segundos Analíticos pretendem fornecer tão somente uma descrição de como se pode

produzir uma ciência propriamente dita, sem a pretensão de formalizar toda e qualquer ciência, ou seja, os Segundos Analíticos oferecem, em maior ou menor grau, uma “metodologia da ciência”46. A interpretação “pedagógica” defende que os Segundos

Analíticos pretendem mostrar como uma ciência pode ser ensinada47. A divergência

fundamental na interpretação da natureza desta obra, que oscila entre salientar a sua intenção epistemológica ou a pedagógica, tornou-se hoje lugar comum entre estudiosos da teoria da ciência aristotélica, mas só merece referência neste lugar porque

historicamente é atestável uma influência desta tensão no debate sobre o estatuto da

matemática, como se poderá verificar mais à frente.

Um segundo problema é o da natureza da demonstração científica, em particular, se é silogística, dedutiva mas não silogística, ou, finalmente, mista48. O texto aristotélico

é vago e impreciso em relação a este tema. Uma leitura que se queira rigorosa do texto do Estagirita obriga a considerar que a sua visão da demonstração científica tende para a interpretação silogística, mas de forma moderada e, acima de tudo, flexível. A verdade é que parece que Aristóteles nunca considerou o problema de forma séria. Também este problema é historicamente relevante: a consideração de que a demonstração científica deve ter forma silogística fez com que os comentadores gregos regularmente parafraseassem os textos científicos de Aristóteles de forma a impor estrutura silogística

46 Esta é a opinião, p.e., de Ross 2001, 71.

47 Esta opinião encontra-se formulada, p.e., em Barnes 1969, 77. Michael Ferejohn propõe uma leitura

que atende ao papel diacrónico dos Segundos Analíticos, apontando, não já o seu aspecto meramente funcional, mas a sua actuação genética num processo cultural que terminou nos dias de hoje. Esta interpretação “genética” e processual, recusa considerar os Segundos Analíticos como obra de filosofia da ciência ou de epistemologia, mas como uma fase inicial do movimento em direcção à concepção moderna de ciência (Ferejohn 1991, 2).

48 A primeira opinião em Hintikka 1972; a segunda em Barnes 1969 e 1981, a última em Ferejohn 1991,

onde se defende que a demonstração em sentido aristotélico possui uma fase pré-silogística, essencialmente baseada no método platónico da divisão, e uma segunda fase estritamente silogística.

aos argumentos que neles encontravam49. Hoje em dia tornou-se usual citar, a propósito, o silogismo com que Alexandre de Afrodísias representa uma parte da demonstração do primeiro problema dos Elementos de Euclides: “coisas iguais à mesma coisa são iguais entre si; os lados CA e CB são coisas iguais à mesma coisa [i.e. ao lado AB]; logo, CA e CB são iguais entre si”50. Também o debate sobre o estatuto da matemática nos

séculos XVI e XVII fará eco desta controvérsia que, mais uma vez, não é exclusiva da moderna scholarship, mas tem percurso histórico atestável.

O terceiro problema é o facto de que historicamente o modelo não é monolítico e pegado à letra aristotélica. Por diversas razões, deve separar-se o conceito do modelo clássico de ciência, daquele exposto em acto nos Segundos Analíticos51. Em primeiro

lugar, o próprio texto aristotélico deve ser entendido como uma actualização de um modelo abstracto, que absorveu ideias em voga na cultura epistemológica da Grécia do séc. V52. Em segundo lugar, a massiva produção comentarística em torno do texto aristotélico produziu intensas alterações, acrescentos, emendas e modificações conceptuais, criando um crescente lastro cultural que influenciou a pedagogia e disponibilizou versões flexíveis do modelo. A ligação estrutural ao ensino fez com que gerações inteiras de alunos aprendessem um modelo de ciência sem contacto directo com o texto aristotélico, mas através do filtro docente53. Uma consequência prática do modo como o Ocidente interpretou e assimilou o modelo de ciência aristotélico é por

49 Veja-se Barnes 1969, 125 e n. 10. 50 Veja-se Harari 2004, 94-95.

51 Seguimos, com algumas alterações, as ideias que se podem encontrar em Jong-Betti (forthcoming), 3-4. 52 Sobre a história do modelo e modelos alternativos, veja-se Lloyd 2003. Sobre a noção genérica de que

“conhecimento” corresponde a uma investigação das causas, veja-se o programa dos historiadores (Heródoto e Tucídides), que pretendem descobrir as causas de acontecimentos históricos do seu tempo. Veja-se também como é ideal expresso por poetas em máximas conhecidas, como aquela muito celebrada de Vergílio: “felix qui potuit cognoscere rerum causas” (Geórgicas, II, 490). Por último, é de realçar que também nos inquéritos legais, e dispenso-me de, aqui, realçar o desenvolvimento do direito entre os antigos, a busca da causa é mais que acessório. Sobre este assunto, veja-se Beth 1966, 34-36.

53 A utilização do corpus aristotélico como textbook no ensino merece uma curta nota histórica. O

organon é tradicionalmente dividido em ars ou logica uetus e ars ou logica noua. Tal divisão é acidental

mas reflecte a ordem cronológica pela qual foi recebido na Europa. Acontece que por coincidência esta ordem de recepção do legado encontrava um equivalente na estruturação do pensamento e da prática do ensino, como eram entendidas pelos letrados dos séculos XIII e XIV. Como ciência que tinha por objecto o processo correcto de raciocinar, a lógica dividia-se tradicionalmente em três actos mentais, a primeira englobando a apreensão de termos simples, coisas, classes, e incluia as Categorias, ou Praedicamenta e a

Isagoge (ou Introdução, ou Universais) de Porfírio; a segunda consistia na enunciação de proposições

afirmando ou negando o predicado de um sujeito, e centrava-se no Perihermeneias (ou De Interpretatione ou ainda De Signis) e o terceiro envolvia o raciocínio científico, englobando os Analíticos, Primeiros e

Segundos. Proposições prováveis e conhecimento dialéctico eram tratados depois nos Topica, a que se

seguia o estudo das proposições falsas e sofísticas, através da análise do De Sophisticis Elenchis e do De

exemplo, o facto de a citação do texto aristotélico não remeter sempre para o texto de Aristóteles, mas para a leitura ou paráfrase de um comentador.

O modelo clássico de ciência não é, pois, aquele descrito por Aristóteles, mas deve ser entendido como um “ideengeschichtlich interpretative framework that aims at capturing in a systematic way a standard paradigm of scientific rationality being largely an ideal to which philosophers adhered throughout history, and only initially inspired by Aristotle’s ideas”54. “Aristotélico” não quer dizer, portanto, “de Aristóteles”, mas pretende, nesta perspectiva, evidenciar uma ligação com ideias sobre ciência e metodologia científica em primeiro lugar sistematicamente enunciadas nos Segundos

Analíticos de Aristóteles. Esta abordagem coloca também o enfoque na recepção e

interpretação do modelo em diferentes épocas históricas, e não na sua formulação primeira. Por isso mesmo, tem maior capacidade interpretativa. Qual é então o modelo clássico de ciência que fornece o contexto epistemológico para os séculos XVI e XVII? Willelm De Jong e Arianna Betti propuseram uma versão sintética do modelo, depois de observar diversas actualizações que teve ao longo da história e em diversos autores daquela época. De acordo com a sua perspectiva, uma ciência aristotélica deve ser entendida como um sistema S de proposições e conceitos (ou termos) que satisfazem as seguintes condições55:

1. Todas as proposições e conceitos (ou termos) de S dizem respeito a um conjunto específico de objectos ou referem-se a um determinado domínio de seres;

2a. Existe em S um determinado número de conceitos (ou termos) fundamentais; 2b. Todos os conceitos (ou termos) restantes que ocorrem em S devem ser compostos ou definidos a partir daqueles conceitos (ou termos) fundamentais;

3a. Existe em S um determinado número de proposições fundamentais;

3b. Todas as outras proposições de S derivam, ou partem (ou “são prováveis a partir”, ou ainda “são demonstráveis a partir”) destas proposições fundamentais;

4. Todas as proposições de S são verdadeiras;

5. Todas as proposições de S são universais e necessárias de alguma maneira; 5. Todas as proposições de S são assumidas como verdadeiras. Uma proposição não fundamental é tida por verdadeira por meio da sua prova em S;

54 Jong-Betti (forthcoming), 3-4. 55 Jong-Betti (forthcoming), 2.

6. Todos os conceitos (ou termos) de S são conhecidos de forma adequada. Um conceito (ou termo) não fundamental é conhecido de forma adequada através da sua composição, ou definição.

O modelo assim concebido e formulado capta o núcleo duro dos requisitos e, ao mesmo tempo, a flexibilidade que oferecem as variantes encontradas nos mais diversos autores.

Um dos problemas mais agudos diz respeito à relação de Aristóteles com a matemática. Esta relação (entre a teoria da demonstração científica descrita nos

Segundos Analíticos e a prática demonstrativa da matemática) parece tão próxima, que

alguns autores defenderam que a teoria da ciência aristotélica não é aplicável a todas as ciências mas apenas à ciência matemática56. A verdade é que a matemática parece constituir-se como paradigma ideal a partir do qual Aristóteles construiu a sua teoria. Vários argumentos têm sido aduzidos para apoiar esta tese; o primeiro aponta a enorme quantidade de exemplos matemáticos aduzidos pelo Estagirita; o segundo defende que o vocabulário técnico matemático pode ter influenciado a terminologia lógica aristotélica; o terceiro aponta o desenvolvimento da matemática no século IV que a destacou entre as demais ciências e forneceu um case study ideal para o desenvolvimento de uma teoria científica. A tese tem uma versão forte e uma versão fraca. A primeira versão propõe que Aristóteles terá baseado a sua teoria científica na prática da geometria comum no seu tempo tendo seguido de perto os Elementos de Têudio, predecessor de Euclides57; a segunda propõe que Aristóteles se terá inspirado na geometria do seu tempo, mas não de forma cega: antes desenvolveu uma teoria mais geral, aplicável a outras ciências que não a matemática58. A tese, no entanto, não é unânime e provoca cepticismo em alguns.

Os exemplos matemáticos são, de facto, mais numerosos, mas os não-matemáticos são mais interessantes, a influência terminológica entre matemática e lógica pode ter sido concretizada em sentido inverso, a inspiração aristotélica pode ter bebido em fontes filosóficas, como a Academia platónica, ou outras59. Finalmente, é difícil perceber o

grau de axiomatização e sistematização da matemática em Teudio e seus contemporâneos ou antecessores. Mas estas dúvidas não podem esconder o facto de que

ao longo da história foi normalmente estabelecida a ligação entre os Segundos

56 Barnes 1969, 127 e n. 20 (para indicações bibliográficas). 57 Heath 1956, I, 116-117.

58 McKirahan 1992, 135-6.

Analíticos e a matemática, pois os comentadores, de Alexandre (séc. II) em diante,

sublinharam esta ligação60.

A relação entre o modelo e a matemática é extremamente complexa61. Esta ciência possui, em contraste com as demais ciências, uma relação privilegiada com a teoria da ciência aristotélica porque oferece, desde a antiguidade, a única proposta influente, generalizada e estandartizada de actualização do modelo. Embora se possa considerar que Euclides se limitou a seguir a prática matemática comum entre os seus antecessores, e não que pôs em prática a teoria da ciência aristotélica, as semelhanças entre Euclides e Aristóteles são demasiado evidentes para serem fruto de um acaso. Poderemos até ser mais correctos, se defendermos que houve influência nos dois sentidos62. Nenhuma outra obra conseguiu, noutra ciência, o mesmo efeito que os

Elementos de Euclides obtiveram em relação à matemática e à teoria da ciência

aristotélica: a) sistematizar conteúdos de uma forma tão próxima daquela proposta nos

Segundos Analíticos, b) oferecer uma formulação estandartizada unânimemente aceite

por todos os membros de uma comunidade científica e que se considera obra fundamental de iniciação, c) alcançar uma vitalidade histórica e culturalmente abrangente.

Para estreitar a relação entre o modelo e a matemática, acresce o facto de que os elementos euclidianos serviram, ao longo das épocas, para preencher as lacunas existentes na teoria dos Segundos Analíticos, dada a escassez de exemplos de demonstrações aí existentes. Aristóteles limita-se, na maior parte das vezes a fornecer exemplos esquemáticos, ad hoc e frequentemente pouco rigorosos. Os Elementos de Euclides supriram esta falta, tendo sido utilizados como modelos de demonstrações aristotélicas. Esta simbiose tornou-se mais dramática no futuro, quando os Elementos se

60 Barnes 1969, 128 e n. 22.

61 Um crescente número de investigadores tem produzido trabalho de grande qualidade sobre este tema.

Veja-se Heath 1970, McKirahan 1992, 133-163; Harari 2004, 87-116; Mueller 1969, 1974, 2006; Mendell 1998 e 2004.

62 Evert W. Beth afirma: “...mathematics constitutes the classical example –practically the only one which

is generally accepted as such- of a deductive science in the sense of Aristotle’s theory. The Stagirite himself takes his illustrations mainly from the mathematical sciences” (Beth 1966, 37). Geoffrey Lloyd diz, por sua vez: “The theory of rigorous demonstration that was set out in the Posterior Analytics came closest to implementation in practice not in Aristotle’s own physical works, but in the mathematical work of Euclid.[...] the work that above all exhibited what the comprehensive presentation of a systematic body of knowledge set out in strict deductive form looked like in practice was Euclid’s Elements” (2003, 106). Um pouco mais adiante: “But the question of indebtedness is a subsidiary issue. What is both uncontroversial and of first-rate importance is that Elements thereafter provides the model for the systematic demonstration of a body of knowledge, a model influential [...] not just in mathematics but far beyond it” (Lloyd 2003, 107).

tornaram instrumento complementar de auxílio na interpretação das passagens obscuras dos Segundos Analíticos.

Os aspectos referidos conduziram, ao longo do período da Revolução Científica, a um aprofundamento da reflexão sobre a adequação da matemática ao modelo, em obras de matemática, de filosofia e de comentário a Aristóteles. Discutia-se o carácter científico das demonstrações matemáticas e a adequação desta ciência aos requisitos estabelecidos nos Segundos Analíticos. Isto implicava determinar, em primeiro lugar, se a matemática cumpria a definição aristotélica de ciência como conhecimento de causas e se as demonstrações matemáticas cumpriam os requisitos formulados em primeiro lugar nos Segundos Analíticos para serem consideradas conhecimento científico.

A discussão começa logo ao tentar-se determinar se, no corpus aristotelicum, ou seja, no conjunto da obra que nos séculos XVI e XVII se atribui sem hesitação à autoria de Aristóteles, se considera que a matemática cumpre os requisitos científicos exigidos nos Analíticos Segundos. A doutrina, no entanto, apresenta muitas dificuldades e inúmeras contrariedades. O aristotelismo, entendido como sistema filosófico e pedagógico, não deixou um tratamento sistemático e completo de filosofia da matemática63. Por isso uma filosofia coerente da matemática acabou por ser (re)construída a partir do comentário às mais diversas obras do corpus aristotélico onde se podem encontrar passos matemáticos. Ora, estes passos são em grande número, surgem sem concatenação lógica e nos contextos mais diversos (a propósito de assuntos ligados a áreas do saber tão diversas como a metafísica, física, lógica, ética, biologia), por isso a reflexão sobre a matemática encontra-se necessariamente espartilhada. No entanto, foi assim que muitos exegetas medievais, como Domenico da Chivasso, William Heytesbury, J. Buridain ou Biagio Pelacani encontraram espaço para discutir os problemas ligados à matemática, sua estrutura interna, relação com outros saberes e relação com o mundo físico64. Ora muitos passos parecem favoráveis à matemática, mas outros podem ser interpretados de forma diversa.

Pela parte positiva, parece que se pode sistematizar a doutrina da forma seguinte. A matemática é uma ciência especulativa, em conjunto com a metafísica (ou teologia) e

63 Para uma tentativa de construção de uma filosofia da matemática aristotélica coerente, veja-se Apostle

1959.

64 Vescovini 1983, 663. Um segundo passo na sistematização da doutrina foi a criação de antologias

comentadas que reuniam todos os passos do corpus aristotelicum onde a matemática era referida. Entre as mais importantes, contam-se Catena 1556 e 1561, Biancani 1615; entre os modernos, veja-se J. L. Heiberg, 1904. “Mathematisches zu Aristoteles”, Abhandlungen zur Geschichte der Mathematik 18 (a que não tive acesso satisfatório, mas deixo como referência) e Heath 1970.

a física (Met. 1026a6-32 e 1064a28-b14); como tal, possui os seus elementos, princípios

e causas (Met. 1025b1-8). As demonstrações matemáticas, porém, e ao contrário da

física, não remetem para todos os géneros de causa, pois ignoram a causa final e eficiente (Met. 996a18-32). Ainda assim, remetem para a causa formal65 e para a causa material66. Outro passo da Metafísica parece indicar que a demonstração que

corresponde a Elementos I, 32 oferece o propter quid (1051a21-31).

Muitos passos, no entanto, são bastante menos claros. Na sua Ética a Eudemo (1222b 22-26), Aristóteles defende expressamente que, na matemática, as causas são figuradas, metafóricas e, portanto, não reais, o que coloca em causa o estatuto científico da matemática. Por vezes, há declarações que não contrariam a doutrina, mas introduzem importantes nuances, como aquele em que se refere que a matemática, apesar de tudo, considera as causas e, em particular, a causa final, pelo menos de “certa maneira” (trovpon tinav: Met. XII.3 1078a33-1078b6).

Outros pontos em discussão alargam o âmbito da problemática em torno do estatuto da matemática. Vejamos de que maneira.

Aristóteles alude ao estatuto pedagógico e intelectual da matemática, quando afirma que a matemática é mais fácil de aprender pelas crianças que a física ou a ética (Ethica Nicomachea VI 8, 1142a 11-20). Aparentemente inócuo, o passo foi muitas vezes lido ao longo da história como uma indicação da ordem curricular que um estudante deve observar, confinando assim a matemática a um lugar pouco relevante no ensino, propedêutico, introdutório e apenas prelúdio do estudo dos assuntos mais sérios. Outro estatuto em discussão é o da posição hierárquica da matemática em relação às outras ciências, o que implica determinar se é uma ciência subordinada ou subordinante, ou se está a par da metafísica e da física, como acima se disse. Por vezes parece indicar-se que a matemática ocupa um lugar hierarquicamente inferior à metafísica, pois pertence a esta discutir a essência das quantidades e fornecer as definições primeiras (1005a19-29; 1025b16-18), bem como reflectir sobre alguns axiomas (1061b17-27). Se não nos concentrarmos apenas na análise da teoria metamatemática que nos oferece o corpus aristotelicum, mas a expandirmos de forma a incluir o uso que Aristóteles faz da matemática, o quadro ganha maior complexidade. A

65 Física 198a14-21: “O propter quid, com efeito, remete-nos ultimamente, ou para a essência, como no

caso das coisas imóveis; por exemplo, nas matemáticas remete-nos ultimamente para a definição de linha recta, ou de incomensurabilidade, ou de qualquer outra coisa [...]”.

66 Veja-se Segundos Analíticos II.11 94a28-31, onde se diz que o ângulo no semicírculo é recto,

scholarship produzida ao longo do século XX minimizou os aspectos matemáticos da

física aristotélica, antes realçando as suas teorias substantivas. A perspectiva usual é a de que a física aristotélica é totalmente qualitativa e que nela estão ausentes conceitos e métodos quantitativos. As Categorias aristotélicas impõem esta separação entre qualidades e quantidades; a doutrina dos Segundos Analíticos, em particular o postulado do genus e a lei da metábase, é suficiente para garantir a separação de objectos e métodos da física e da matemática; outros passos, como aquele do livro segundo da

Metafísica já referido, confirmam esta distinção, que parece estrutural ao aristotelismo.

No entanto, o conceito de subalternação, embora excepcional, permite contornar aquela proibição e autoriza a existência de áreas da física que ao fim e ao cabo se encontravam já matematizadas como a óptica, a catóptrica, a música, a astronomia ou a mecânica. Mais importante, Edward Hussey mostrou que a matemática tem um papel extraordinariamente relevante na física aristotélica, e fixou quatro usos que Aristóteles faz da matemática no estudo do mundo natural67:

a) em alguns passos, Aristóteles tira conclusões sobre a estrutura do mundo natural apelando a verdades matemáticas, o que implica considerar, de alguma maneira, a física subordinada à matemática; o exemplo mais gritante deste uso da matemática é a