• Nenhum resultado encontrado

DE COMO COM PREENDO O

CO M PORTAM ENTO DIVERGENTE

Foi abordada, até aqui, a relação da sociedade com o diferente. No tocante à questão da exclusão e da diferença, foi dada maior ênfase ao “louco”,4 pois é sobre ele que recai meu interesse de estudo. Vimos como, por motivos particulares e específicos, a sociedade tende a excluí-lo. Conseqüentemente, ele vive uma existência tolhida nas suas possibilidades.

Uma leitura mais atenta do fenômeno deixa transparecer que o universo de impossibilidades vivido pelo “louco” não

2 Ser com o substantivo.

35ércom o verbo.

40 termo “louco” é aqui utilizado no intuito de afastar-se de um a com ­ preensão exclusivamente m édica do fenôm eno que predom ina na m o­ dernidade.

pode ser creditado exclusivamente a uma reação socie­ tária. As ações sociais, os meios de produção e o projeto epistemológico assumido, entre outros, podem contribuir decisivamente no processo de instalação do comporta­ mento divergente e na atitude excludente. No entanto seria simplista creditar exclusivamente a esses aspectos a invenção da loucura.

Embora tais reações possam dificultar o livre fluir das possibilidades do divergente, a experiência mostra que os impedimentos também são de outra ordem. Os avanços ocorridos na Psicologia, sociologia, antropologia, psiquia­ tria e outras disciplinas afins, juntamente com a contri­ buição da filosofia conduzindo a uma visão crítica acerca de teorias possíveis, permitem-me acreditar que o compor­ tamento divergente é fruto de uma complexa interação entre os fatores do meio externo e vicissitudes individuais desenvolvidas na acontecência do existir. E no transitar pela existência que a pessoa vai adquirindo recursos para lidar com a realidade e a imponderabilidade do destino, de maneira singular. Esses recursos, quando usados de maneira habilidosa,5 tendem a conduzir a pessoa a uma existência coerente com seus próprios ideais. Quando esse intento não é alcançado, presenciamos a construção de formas divergentes de colocar-se na vida. Dizendo de outra forma, diante das várias injunções da realidade, a pessoa precisa responder de maneira habilidosa/pertinente. A construção do comportamento divergente seria conseqüência de não saber lidar com o seu contexto existencial e, perante a afetabilidade desagregadora que surge nesse confronto, resolvê-la através da única forma possível no momento. Desse modo, penso deixar evidente que não considero o “louco” um excêntrico ou revolucionário possuidor de um lugar privilegiado entre sábios transformadores.

Assim, reconhecendo que a loucura faz parte integrante do desenvolvimento da civilização e que sua compreensão varia de acordo com a cultura e o momento histórico, senti-me compelido a desenvolver uma forma particular de compreender essa manifestação, tendo claro que só através dela é possível uma ação fidedigna à condição humana.

Do ponto de vista psicológico, a relação de cuidado busca centrar-se na relação intersubjetiva para poder compreender o modo como a pessoa se relaciona com o mundo e consigo mesma, sendo os comportamentos diver­ gentes articulação direta e conseqüente dessa complexa interação. Nossa atuação recai nas formas singulares de

50 termo “ habilidosa” aqui se refere à atitude atenta e cuidadosa condu­ zindo a um agir pertinente.

re la ç ã o com o mundo, com as pessoas e com seu universo

interno, que conduzem a uma maneira especial de existir.6 Se essas relações tornam-se mais pertinentes no sentido de um viver pacificado, observaremos alterações do modo de ser no mundo com os outros. A atenção psicológica seria, portanto, a promoção de um espaço em que as relações e

a escuta visam à construção e ao manejo mais pertinente

das ferramentas que podem permitir um existir mais cria­ tivo e realizador.

Essa maneira de conceber o ato psicológico é intima­ mente influenciada pelos escritos de Binswanger. Para ele, “o homem não deve ser compreendido em termos de alguma teoria, mas, sim, através do modo como este se revela diretamente ele mesmo” (BINSWANGER; BOSS, 1974).

Na convivência diária com as pessoas internadas, essa singularidade no existir torna-se tão evidente que qual­ quer ação baseada em uma técnica preconcebida mostra-se canhestra. A realidade me conduziu a considerar a técnica dentro do sentido grego de sua concepção antiga, ou seja,

techné como as várias formas e maneiras de se conceber

uma arte. Presenciando esse modo especial de colocar-se no mundo, foi possível perceber certas peculiaridades.

Ainda tendo por base os escritos de Binswanger (1977), que compreende a doença como uma existência malo­ grada, tais pessoas parecem manifestar um desconforto e um sofrimento em estar no mundo. Fica evidente o quanto a maioria dos internos está incapaz de contatar com a sua “realidade” e transformá-la para uma exis­ tência mais amena. Diante dessa impossibilidade, desen­ volvem formas malsucedidas de se colocarem na vida, ou então começam a afastar-se e a falsear sua experiência de maneira a diminuir seu desconforto da realidade, vivida como inóspita. O malogro existencial e o isolamento evidenciam a carência no arsenal de recursos para o trato com a vida.

Dito isso, conclui-se que a relação entre cuidador e cuidado precisa constituir-se com o objetivo primeiro de atenuar o isolamento e propiciar a manifestação e a cons­ trução de instrumentos mais aptos no trato com a reali­ dade. Isso começa a ocorrer quando o interno aceita o convite para recontar sua história de maneira a construir uma nova relação com a experiência vivida. Essa construção se faz a partir de uma relação com características especiais. Na configuração de um espaço seguro, longe do caráter

6Segundo A lm eida (1999), existir é responder àquilo que é dado.

explicativo científico, estabelecido em algumas psicotera- pias, livre das pressões adaptativas impostas pela sociedade e tendo claro que o nosso interesse recai no encontro de duas pessoas em um mundo que é representado, naquele momento, pelo hospital, potencializa-se a possibilidade do resgate de aptidões perdidas e da construção de novas habi­ lidades. Esse encontro existencial acaba proporcionando a oportunidade de ressignificação da sua experiência de vida e do confronto com o novo. Essa relação sui generis tem o intuito de proporcionar ao indivíduo a percepção clara de onde, quando e em que medida lhe resultou impossível realizar a plenitude de sua humanidade (RAMADAM, 1982). Trata-se de evidenciar onde a pessoa se perdeu a si mesma no seu projeto existencial.

A ruptura desse projeto de vida é, por vezes, presumida como uma quebra significativa da linha de continuidade existencial. Olhando a questão por essa ótica, podemos afirmar que esse momento de ruptura parece levar a uma desestruturação progressiva e profunda da identidade, aqui entendida como uma tarefa de integração dos vários “eus”: aquele que foi, aquele que é agora e aquele que deseja ser no futuro.

Essa ruptura da malha existencial, com a conseqüente desestruturação da identidade, tem o poder de lançar o indivíduo em uma situação de inacessibilidade, na qual pode perder o contato com a lógica compartilhada, preva­ lecendo o delírio como estrutura de sustentação existen­ cial. Quanto mais profunda e marcante é a incapacidade de interagir, de maneira benéfica, com o mundo, amplia-se o nível de isolamento. Pode chegar ao extremo de isolar-se, a ponto de o mundo externo ser totalmente tomado pelos símbolos, que são criados particularmente e essencialmente pelo divergente. A interpretação delirante do mundo e a conseqüente distorção de sua postura existencial ficam sendo as únicas soluções possíveis no confronto com uma realidade vivida como inóspita.

Tal solução, concomitantemente à reação societária diante do divergente, amplia os níveis de isolamento preco­ nizados. Moffatt (1983) traz importantes contribuições no que se refere à desestruturação da identidade e o conse­ qüente afastamento das estruturas de compartilhamento. Segundo ele, a percepção é um processo pontual; porém, o homem, em seu longo desenvolvimento, conseguiu estabe­ lecer pontes entre esses vários pontos perceptuais, criando a ilusão do tempo. Ele sabe de onde veio, onde esta e para onde deseja ir. Assim, cria-se uma linha de conti­ nuidade existencial que sustenta a identidade e permite a construção de estruturas de compartilhamento como a

cultura.7 Diante de situações agudas, essa linha de conti­ nuidade temporal pode se romper. Quando isso ocorre, o individuo é lançado em um vazio paralisante, ficando alheio de si e do mundo. Nessa perspectiva, os comporta­ mentos divergentes seriam tentativas infrutíferas de voltar ao convívio compartilhado.

Olhar o fenômeno por esse enfoque temporal aponta a importância do futuro no processo de adoecer. Enquanto na química e na física um fato é quase sempre determi­ nado pelos eventos que o precederam, nos seres humanos o comportamento presente depende não somente do passado, mas também da orientação para os acontecimentos futuros QFEIFEL, in ROLLO MAY, 1980). A ruptura dessa linha temporal coloca o indivíduo defronte de uma situação de desesperança que amplia seu desalojamento. Resgatar a identidade e o compartilhamento passa necessariamente pelo resgate da capacidade de conceber sucessões, de orga­ nizar uma história com sentido, utilizando para isso todos os fatos que ocorreram no viver. Essa organização deve dar subsídios para que o sujeito possa lançar-se ao futuro a partir de um novo projeto existencial. De posse de uma possibilidade de futuro, fica mais pertinente a organização do presente. Compreender a crise como uma ruptura da continuidade existencial implica considerar a dimensão da temporalidade na experiência humana. Nessa perspectiva, transpor a crise e resgatar a saúde (bem-estar) diz respeito a rearticular e ressignificar presente, passado e futuro.

Compreendendo a divergência pela crise, aparente­ mente, por mais autores que se deseje visitar, essa condição de malogro na busca de seus ideais se expressa de maneira inequívoca na perda de capacidade de se governar por suas próprias leis ou a partir de sua vontade própria. Nesse momento agudo, fica evidente o embotamento da capaci­ dade pessoal de estabelecer normas próprias na condução de seu destino. A pessoa fica sem opções, restringindo-se a condições limitadas e definidas pela sua forma malograda de se colocar no mundo. Tal condição mostra-se como uma prisão, onde o indivíduo acaba vivendo sob o jugo de sua incapacidade de optar e arbitrar. Diante dessa condição, Sonenreich & Bassit (1979), com o olhar médico sobre o fenômeno, vão caracterizar a doença mental como uma “patologia da liberdade”. Segundo eles, o doente mental

7Para MofFatt: “ (...) a cultura nada mais é do que um conjunto de teorias, normas, ciclos, símbolos, etc. que nos asseguram um a plataforma imaginá­ ria que avança sobre o futuro, palavra que é simplesmente o nome de um enorme déficit de informação. A cultura tem com o finalidade a ordenação da realidade e a defesa da continuidade do eu” (1983, p. 53).

não age, é agido. Ele não consegue fazer diferente

diante

das exigências que o ato de viver impõe, ficando preso a estruturas de funcionamento Ümitantes.

Essa incapacidade em intervir e alterar seu contexto | de desenvolver uma relação pacificada com aquilo que se | mostra intransponível no momento ou mesmo imutável 1 parece ser multicausal. Por mais que o homem tente esta- \ belecer uma relação de casualidade direta, o malogro no trato com a existência mostra-se fruto de um processo histórico singular. Se no percurso existencial a pessoa não teve relações pessoais e experiências constituintes que j possibilitassem o movimento no sentido da criação de j maneiras habilidosas de lidar com sua angústia e eterno desalojamento, a tendência é que sua existência se mani­ feste de maneira pouco produtiva para a obtenção de seus ideais quando confrontada com a amplidão de possibili­ dades imposta pela realidade. Assim, o comportamento divergente acaba se estabelecendo sem correspondência com o normal, ou seja, não é nem ausência nem exagero de uma função normal. Tais manifestações seriam modos de ser totalmente novos e autônomos.

Tal imobilidade no encaminhamento de seus conflitos promove conseqüências de peso. Ela acaba favorecendo a ação de tutela exercida pela família, pelo médico e, em última instância, pela sociedade. Se a pessoa, por uma incapacidade sazonal, se ausenta de seu lugar de mando na condução de sua vida, abre-se espaço para que outra pessoa ocupe esse lugar. A experiência tem mostrado que na maioria das vezes a condução é feita não se levando em conta os propósitos desse que se encontra nesse lugar defi­ citário. Conseqüentemente, além da perda de autonomia que vem implícita na condição aguda de sua existência, agrava-se a perda de sua cidadania pela constante ação de tutela imposta pela sociedade.

Percebe-se que para o lugar do divergente converge uma série de tensões, tanto internas como externas, que contri­ buem para a perda de autonomia, da cidadania e da capa­ cidade de apropriação e cuidado de si.

REIN V EN TA N D O A PRÁXIS NA