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Durante meu percurso na construção da prática psico­ lógica aqui relatada, fui tocado por alguns aspectos da proposta de Franco Basaglia. Psiquiatra italiano de grande expressão no século XX, desenvolveu uma concepção que nega a instituição psiquiátrica e seus conceitos fundamen­ tais. Na verdade, Basaglia é o elemento mais recente em um movimento que teve vários representantes. As concep­ ções de Basaglia são francamente políticas. Acreditou que a loucura seria uma resposta do indivíduo ao sistema. Na sua concepção, a função do hospital psiquiátrico é receber aqueles que não se adaptam às normas determinadas pela sociedade. N a instituição, acaba se expressando a nítida divisão entre os que têm poder e os que não têm. Dessa forma, todo ato terapêutico em um hospital visa atenuar as reações dos excluídos em relação aos excludentes.

A influência da obra de Basaglia em minha prática precisa ser relativizada. Afasto-me, tanto quanto possível, do caráter radical que foi dado ao ato terapêutico. No entanto, alguns de seus princípios parecem ter imensa rele­ vância se nos propusermos a uma intervenção psicológica que vise instrumentalizar a pessoa no trato com o mundo e introduzi-la novamente no jogo social. Semelhantemente a Basaglia, também considero a manifestação da loucura uma resposta do indivíduo ao sistema. Não só ao sistema, mas a toda a realidade apreendida em um dado momento. Não podendo lidar com um contexto que é vivido como inóspito, a pessoa tende a desenvolver uma forma malsu­ cedida de existir como solução.1

Ao contrário de Basaglia, não chego ao extremo de propor a extinção dos hospitais psiquiátricos. No entanto, acredito na necessidade de transformá-los em institui­

!Esse tema sera mais bem abordado adiante em: Algum as breves conside­ rações acerca de com o compreendo o com portam ento divergente.

ções de curta permanência, e que devam funcionar como espaços para a instrumentalização de um viver saudável - com bem-estar. Sua utilização estaria condicionada a casos específicos, quando for impossível a abordagem em espaço externo. Quando a institucionalização é inevitável, devem ser utilizados todos os recursos disponíveis pelas várias disciplinas que ocupam o espaço hospitalar (Psicologia, terapia ocupacional, serviço social, psiquiatria, etc.).

Não desejando ser tão radical quanto a experiência de Gorizia, fui levado a buscar uma conciliação entre seus pressupostos e minha realidade institucional. Propus-me a desenvolver uma presença psicológica que pudesse faci­ litar um movimento inclusivo e de resgate de possibili­ dades para um existir autêntico. Configurar um ambiente marcado por relações positivas que visam tornar mais equi­ valentes as relações de poder e, portanto, mais permissivo para um movimento de vir a ser esboçava a possibilidade de incluir o hospital, mesmo com suas características, como um espaço de resgate de cidadania e da aptidão natural de viver para viver.

Embora sabendo do pouco interesse da instituição em negar seu mandato social, principalmente por não se permitir refletir sobre ele, propus-me a uma reestru­ turação profunda da postura psicológica. Baseando-me na demanda emergente dos usuários, que se mostravam carentes de possibilidades pela confluência de fatores vivenciais e, ao mesmo tempo, sedentos de se apropriarem de sua existência de maneira autêntica, comecei a buscar uma relação com os internos que fosse facilitadora na construção de espaços de questionamento que levassem à percepção de seu lugar na própria vida. A partir do sentido pessoal dado à sua condição presente, acredito que podem questionar o lugar social que lhe é atribuído, por lhes ser possível perceber os processos intrínsecos do viver que os levaram a essa forma imprópria de ser.

Retornando aos escritos de Basaglia, ele afirma que qual­ quer ação psicoterápica é barrada pela estrutura hospitalar, que tenta manter o sistema, ou pela estrutura humanista paternalista, que não acredita na possibilidade de escolha do interno (BASAGLIA, 1985). Assim, qualquer açao tera­ pêutica deve ser feita fora do ambiente opressor. Obvia­ mente, a estrutura hospitalar oferece certa resistência para uma ação inclusiva, assim como uma ação paternalista e tutelar acaba atrofiando as possibilidades de a u to g e r e n -

ciamento do interno.

Por outro lado, é inquestionável que o hospital ainda mantém uma função necessária e específica na c o n ste la ç ã o

Uma Prática Psicológica Inclusiva em Hospital Psiquiátrico: do Cuidado de Ser ao Resgate de Cidadania 149

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conviver com alguém em quadro agudo de desorganização sabe da necessidade de um ambiente protetor. Partindo Jo pressuposto de que o momento de crise gera uma ’o f ruptura desestabilizadora na linha de continuidade exis­

tencial do indivíduo e de sua família, torna-se necessário constituir um lugar de acolhimento para essa pessoa. Esse acolhimento cria condições propícias para que a família também possa se reorganizar e ser assistida nesse momento le * de convulsão existencial, para, mais tarde, poder receber

s 1 seu membro de maneira mais habilidosa e pertinente. e í Acentuo que estou sempre me referindo ao hospital de - | curta permanência como mais um recurso em um projeto

terapêutico amplo. A própria concepção de Basaglia e contempla tal possibilidade. Desde a experiência radical . * de Gorizia, há a possibilidade de utilizar um hospital de o 11 referência para os momentos mais agudos. Desse modo, [e a o hospital nunca deixou de ser uma instituição necessária, o f ainda que em momentos específicos. Nesse sentido, no il ^ contexto ao qual me refiro, faz-se imperativa a construção de uma ação visando ao preparo inclusivo e de elaboração o * da vivência dentro do ambiente hospitalar, mesmo que o 0 * contexto do hospital não se apresente favorável.

i- :i Quando o interno abandona os muros da instituição, e ii principalmente se essa tiver sido de curto prazo, como o n u hospital referente à minha experiência, pode se deparar :s com ações preconceituosas que poderão tentar levá-lo n '' à adaptação, tutelamento e/ou à própria exclusão. No r 11 entanto, partindo do pressuposto de que a ação do hospital a ü para com o interno acaba refletindo a posição da sociedade à j em relação à doença, posso concluir que tais tendências

3 exclusivas já se encontrem presentes, de forma insidiosa, 1 na relação do hospital com o interno e nas ações decor- r rentes.

s n Assim configurado, o contexto hospitalar acaba contri-

1 buindo para a manutenção dessa forma malograda do ser ;i doente. Inúmeras vezes presenciei o retorno de pacientes

ao hospital, não por recaída de seus sintomas, mas sim por uma inabilidade no trato com o contexto familiar e social quando da sua volta ao “mundo da sociedade”. Nesse :l sentido, podemos pensar se o hospital tem se permitido

t desempenhar um papel mais condizente com a manu-

r tenção da doença, indo na corrente contrária de seus objetivos terapêuticos. Ou seja, o hospital estaria se reve­ lando um espaço pouco propício para que os pacientes psiquiátricos possam desenvolver suas potencialidades 1 para gerenciar seus conflitos e levar adiante sua vida como i indivíduos e cidadãos. Não se sentindo preparados para o confronto com a realidade, devido a uma internação

que não contempla tal perspectiva, o retorno ao hospital, como volta ao refúgio, passa a ser uma, ou talvez a única, possibilidade de sustentação existencial desse paciente. Conseqüentemente, e concomitantemente à falta de suporte externo para as pessoas recém-saídas da internação, creio ser esse um dos motivos possíveis mais evidentes para as reinternações. O hospital, por sua visão positivista e segmentada sobre a doença e, talvez também, por sentir ameaçados seus fins tecnoeconômicos, opta por negli­ genciar esses aspectos. Começa a revelar-se, nos atos de cuidado hospitalar ao paciente psiquiátrico, a diferença entre procedimentos norteados por objetivos (reverencia- dores de uma tecnicidade) e não por princípios (reveren­ ciado res de uma ética).

Mediante essa experiência, comecei a buscar uma forma de também configurar o hospital como um espaço promotor de uma ação de cuidado que facilitasse uma relação mais habilidosa do interno diante das várias situações de exclusão e adaptação com as quais, forçosa­ mente, se deparará a partir de sua marca como institucio­ nalizado. Comecei a acreditar na possibilidade de utilizar a relação cliente-hospital no intuito de proporcionar melhor instrumentação na sua relação com o mundo. Ou seja, a partir da explicitação e da conseqüente reflexão sobre os aspectos deletérios implícitos na relação instituição-cliente, facilitar a tomada de consciência de uma condição imposta e a não-aceitação tácita ou passiva desta.

Comecei a vislumbrar a possibilidade de transformar um pretexto de adverso em aliado. Nessa atuação, não rompo com a lógica social e nem da instituição, mas a questão é escancarar a realidade como ela é ao paciente, para que ele possa nela sobreviver, respondendo de modo habilidoso às injunçÕes e concepções sociais limitantes, limitadoras e limitadas. Oferecer-lhe uma possibilidade de se perceber sendo no mundo, ambos sendo como são e o que são. Apresentar-lhe esse modo como a real condição humana.

Retornando a Basaglia, ele nunca negou o conceito de doença mental, ou, pelo menos, nunca o fez de forma explícita, porém criticou a relação que se instaura com o sujeito/paciente nesse momento de sua vida. Na verdade, dentro do hospital psiquiátrico, pelo seu caráter médico- tecnológico, o relacionamento acaba se fazendo com a doença e não com as pessoas. A proposta de que as rela­ ções na instituição sejam marcadas por uma tensão reci­ proca para que se rompam os laços de autoritarismo, como proposto por Basaglia (1985), parece fundamental para a construção de um ambiente inclusivo a partir do contexto

do hospital. Tal proposta acaba exigindo uma relação assen­ tada na particularidade de cada caso. Isso significa assumir a singularidade do estar doente e de todos os processos sociais relacionados à construção dessa forma malsucedida de se estar no mundo. A partir disso, torna-se possível construir o rosto do interno para que ele possa ocupar um lugar na sociedade. O processo de “coisificação” causado pela doença não pode ser ampliado por relações desfavo­ ráveis dentro do hospital. Se cada membro da equipe tera­ pêutica tentasse desenvolver uma relação de cuidado que buscasse construir um espaço propício para o emergir das possibilidades tolhidas, abrir-se-ia um universo de possi­ bilidades no sentido do resgate da cidadania.

Isso está longe do estabelecimento de um “instituciona- lismo frouxo”. Não nego os papéis dentro da instituição; na verdade, acredito na possibilidade de serem atenuadas as relações decisórias unilaterais, que priorizam a supre­ macia de um sobre o outro, desde que se mantendo as especificidades. Isto é, descobrir modos de ações terapêu­ ticas pertinentes e específicas de cada competência, através da experiência do próprio usuário, acompanhando-o no percurso árduo de fazer suas próprias escolhas. Creio que assumir tal proposta, no âmbito institucional, prescinde da construção de uma visão específica do ser em crise. E este o sentido deste trabalho: transitar entre a compreensão da forma malograda do ser2 “doente” e a da “doença” como forma malograda de ser.3

ALGUMAS BREVES