• Nenhum resultado encontrado

Contar com a companhia dos interlocutores propor­ cionou, através da escuta da experiência, uma interpre­ tação de como é o vir a ser psicólogo clínico. É impor­ tante frisar que a descrição que se segue é apenas uma forma de compreender, entre as diversas possibilidades. Mostrarei pequenos trechos das discussões, juntamente com o meu posicionamento, em que faço articulações e questionamentos. Nesse sentido, a interpretação que aqui se apresenta rompe a imparcialidade entre pesquisador e pesquisado.

Tanto na busca de recursos teóricos quanto na escuta dos interlocutores, aparecem referências a aspectos estrutu­ rais do curso de Psicologia, a começar pelo próprio currí­ culo do curso. Percebe-se a insatisfação dos participantes da pesquisa com as disciplinas oferecidas, com relação tanto ao conteúdo quanto à própria forma com que são organizadas. Os relatos revelam a falta de uma clara articu­ lação entre as disciplinas, além da separação entre teoria e prática. Parece que essa desarticulação gera uma espécie de “falta de território” nos alunos. E como se todo o conheci­ mento fosse se acumulando sem encontrar uma destinação.

Surge a (des) esperança com relação à reforma curricular, com o algo esperado que parece nunca chegar.

Acho que há uns dois anos eu estava muito frus­ trada com meu curso... Quase jogo pra fora meu curso... Porque eu não via sentido nele. Porque a gente entra em Psicologia... Passa pelas mãos de vários professores... Algumas disciplinas a gente não aprende praticamente nada se não for atrás... Mas como é vasto o campo que pode ter a atua­ ção do psicólogo... Como a Psicologia se divide... Como tem várias abordagens... Mas se parar para pensar, você vê que não sabe praticamente nada! A gente começa a ver Psicologia mesmo na metade do curso. Porque antes é tudo muito abstrato... Foi como eu... Eu pouco antes quase deixo o curso de Psicologia porque não tinha motivação...

Eu penso o seguinte: que a prática já deveria ter começado há mais tempo... Muitas vezes eu chego na sala e até brinco assim: “tudo que sei é que nada sei...” Porque lidar com pessoas é uma responsabi­ lidade muito grande... Por isso a prática deve ser feita dentro da clínica há mais tempo... E muito bom estar vivenciando a prática clínica, infeliz­ mente agora, literalmente no final do curso... Você vê que desde que a gente entrou no curso se fala em reforma curricular. A minha supervisora diz que desde a época dela tem isso. Eu conversei com uma coordenadora de curso e ela me disse: “O que você passa... Passa-se aqui... Passa-se nas demais universidades federais.” Então é uma coisa muito difícil... Envolve tanta coisa... É tanta com­ plexidade... E difícil a gente romper com isso... Exige muito mais do que a nossa luta... Nossa luta enquanto estudantes.

Envolvidos nessas questões de insatisfação com o currí­ culo, surge a noção de que o processo de aprendizagem é compartilhado e ao mesmo tempo solitário. Ocorre um “trazer para si mesmo” a responsabilidade acerca de sua própria formação. O ingresso na prática parece provocar esse olhar para si mesmo e, concomitantemente, um certo direcionamento acerca da própria formação. Fica a pergunta: há um limite de responsabilidades entre o aluno e a instituição com relação à carência de teoria e prática que os estudantes normalmente sentem?

O que eu pude refletir depois do atendimento é realmente essa questão... de saber que o que eu sei até agora e muito pouco... Que é um proces­ so contínuo realmente... Você tem que explorar mais... Tem que estudar... E isso tem que partir de você. Realmente universidade nenhuma vai poder suprir essa questão [...] Mas é muito gratificante estar atendendo... É uma experiência realmente muito diferente do que a gente vê... Não tem nada que chegue tão perto, que a gente possa experien- ciar quando a gente tá lá... Eu acredito que tanto teoria quanto prática têm que ser revistas.

O momento da prática gera expectativas, dando uma conotação de legitimação ao que foi aprendido nos anos anteriores. A prática parece abrir a possibilidade de desco­ bertas nos alunos, não apenas acerca da Psicologia clínica em si, mas também de aspectos pessoais, que se desvelam a partir da abertura à experiência de prestar atenção e cuidado ao outro. De certa forma, é um encontro com o inesperado que, ao exigir improvisação e invenção, propicia uma abertura para o pré-reflexivo. Nesse sentido, a clínica provoca uma aprendizagem autodescoberta, assimilada à experiência. A prática possibilita que cada um possa se perceber fazendo, a partir da forma como estão fazendo. E essa “forma” parece dizer muito da experiência de ser humano de cada um, e não apenas do que foi aprendido durante o curso. Nota-se, portanto, a surpresa dos alunos ao se sentirem implicados com o próprio fazer.

[...] há dois anos eu me encontrava totalmente frustrada e hoje eu estou apaixonada pelo meu curso... Impressionante... Cada dia mais eu que­ ro estar mais próximo... E aprender mais... Es­ tudando... Aperfeiçoando-me... Para poder aju­ dar... Quando a gente começa a praticar mesmo... Quando começa a ver o curso realmente... Porque antes a gente vê muita coisa que eu acho que não tem muito a ver... Mas como é rico... Como a gen­ te cresce... Como está sendo importante! Eu vejo como é maravilhoso... E o que eu estava perden­ do, entendeu? Mudou totalmente minha visão... E como se antes não tivesse nada! Nada! E depois da prática... Eu estou fascinada com meu curso... Porque é uma coisa que a gente não conhece du­ rante todo o curso... O que é impressionante, por­ que a gente passa o curso todo sem saber o que é

uma clínica, o que é clinicar. Acho que até mesmo no estágio a gente fica sem saber... Vai descobrindo realmente quando começa a atender... Você vê o que é clínica... O que é atender... O que é escu­ tar. Você estuda, estuda, estuda... Aquela coisa de ouvir profundamente... A escuta profunda... A importância de estar ali com seu cliente no aten­ dimento só para ele... E a gente sabe que muitas vezes não consegue... As vezes se desconcentra... As vezes se vê nele...

A prática clínica parece oferecer uma outra possibilidade de compreensão do que seja a ação clínica, compreensão esta que exige uma implicação subjetiva no próprio fazer. Dessa forma, a prática clínica se mostra como uma impor­ tante via para a aprendizagem significativa.

Acompanha a própria maturação da gente... Por­ que eu penso no começo do curso como eu era... Eu não pensava nessas coisas... Acho que chegou a hora de dizer: “pronto agora é tua hora de se preparar...” Exige isso... A prática faz com que... Nao sei... Acho que a prática faz com que você enxergue as coisas de uma outra forma. [...] Move você a buscar mais, a conhecer mais, a estar pre­ parado realmente... O que mexe comigo é isso... Preocupar-me com a minha formação.

A prática clínica ganha destaque na constituição do “ser-próprio” do psicólogo, pois redimensiona a percepção anterior e denota a implicação com o fazer, o que parece abrir um caminho à frente e um rumo dentro da própria formação. Nesse contexto, em que os alunos se referem com tanta ênfase à prática, onde está a teoria? Talvez já tenha recuado para uma dimensão silenciosa ou tácita e, finalmente, sido incorporada.

Eu acho que nenhuma teoria é capaz de dar con­ ta... Porque é uma complexidade... Não tem aque­ la coisa de dizer: “Ah, nessa sessão eu posso utilizar isso ou aquilo de determinada teoria.” Eu acho que com o tempo você vai criando um caminho que é teu... Eu acho que é no dia-a-dia mesmo... E na prática que você vai por um caminho... Atra­ vés das suas leituras, do que você ouve dos outros profissionais... Dos outros colegas de supervisão... Eu acho que é um processo inacabável para qual­ quer um. Não há uma neutralidade. O trabalho... é mais uma transferência sua... Tem algo ali... O

desejo mesmo, que está te movendo. Então isso diz muito de você... Algo muito particular seu... Fala-se muito na questão da reprodução... Isso acontece muito... Mas com o tempo, com os anos, com a maturidade, com a prática é que você vai imprimir um estilo próprio seu. Acho que é por aí... Eu vejo assim.

A gente mesmo tendo estudado fica num im­ passe... E quando o paciente traz problemas que vêm de encontro à tua subjetividade. Tem pro­ blema que você transfere... Eu estou atendendo [...] vítimas de abuso sexual. A secretária até diz: “Doutor, pode entrar o próximo paciente?” E eu digo: “Não, espera aí um pouquinho...” Porque eu estava completamente desorganizado! Então são essas questões que vão surgir sempre... As vezes a subjetividade do paciente está implicitamente ligada à tua subjetividade... Aí como é que você transfere, contratransfere... Mas são coisas que eu acho que só a prática vai fazer com que a gente possa elaborar essas questões. Agora a gente está recém-começando...

A teoria serve como referência e não como um “porto seguro”, onde se pode chegar e estacionar. Quando tenta descrever como funciona o conhecimento tácito, Polanyi (1958) afirma que é uma entidade abrangente que envolve tanto os indícios subsidiários quanto as partes focalizadas. Há certos particulares (prática, leitura, supervisão, convi­ vência com outros profissionais) que fazem um sentido inteligente de forma abrangente. Como se formassem um significado que pode ser criado ou captado, pois, como explica o referido autor, a ação humana é que integra os indícios subsidiários e o que é focalizado.

Para Figueiredo (1993), a experiência aparece com lugar de destaque, uma vez que, quanto mais tempo de prática, mais as experiências vão interferindo no modo de cada um fazer a sua ação clínica. Assim, experiência pessoal e teoria mesclam-se de forma indissociável.

Nesse contexto de articulação entre teoria e prática, a supervisão mostra-se como contexto fundamental para que os alunos possam, finalmente, se perceber com o partes integrantes de tudo aquilo que foi aprendido. 0 momento da supervisão permite (ou exige) que o aspirante a psicólogo clínico se interprete como futuro profission al. A supervisão possibilita que o estagiário perceba a forma

como ele próprio pratica a Psicologia clínica. Ele se trans­ forma no espaço em que há uma constante relação entre os conhecimentos aprendidos e a prática realizada por ele}

e não por outro, provocando a incorporação de um saber

e fazer próprios.

Isso ficou muito evidente na supervisão que eu e as meninas temos... De valorização ao estilo pes­ soal mesmo... Que a teoria muitas vezes não dá conta da realidade... Utilizar a intuição mesmo... Para intervir tem que ousar, se atrever de vez em quando... Para dar conta de uma demanda... Se você não tiver um bom analista para você ela­ borar as suas questões e não tiver uma boa super­ visão para elaborar os problemas do paciente e os seus, que estão implícitos, aí você fatalmente vai naufragar. Porque é como se a gente entrasse no oceano... navegando no barco sem bússola, sem nada... Porque você vai se perder!

Juntamente com a supervisão, o trabalho pessoal de elabo­ ração das experiências ganha lugar de destaque. Os alunos reconhecem a importância disso e identificam a psicoterapia e a análise (dependendo do referencial teórico) como cons­ tituindo a principal modalidade para esse fim.

Se olharmos a história da supervisão, veremos que ela surge como uma exigência para a formação do analista (lembrando que a prática da psicoterapia nasceu na medi­ cina - psicanálise - e não na Psicologia), havendo uma preocupação com a delimitação dos espaços correspon­ dentes à análise e à supervisão. Nos tempos atuais, parece que ainda há essa tentativa de distinguir os conteúdos que podem ou não ser “trabalhados” na supervisão e na psicoterapia/análise. Em que medida essa fronteira está bem delimitada? O fato de buscar a elaboração pessoal em outro espaço e com outro profissional provoca a cisão da experiência?

Não tem essa coisa de ver a experiência que eu es­ tou vivendo... Isso você vai ver na tua análise [...] As vezes o supervisor, quando você está relatando um caso, aponta: “Olha, eu acho que quando o seu cliente lhe falou alguma coisa, mexeu com você. Veja isso aí.” Aqui você não vai ver isso [...] Entao é algo que eu vou trabalhar fora...

Se tiver outra prática que substitua a psicotera­ pia, então eu quero conhecer. Mas eu acho que

a maneira de você se conhecer é essa... é através da psicoterapia... é começando a entrar naqueles recantos mais íntimos do seu ser e trazer à tona para discutir aquilo com alguém... Um profissio­ nal que vai lhe orientar...

A referência à importância da psicoterapia/análise como via de elaboração de experiências pessoais traz essa moda­ lidade para dentro da formação do psicólogo clínico. A psicoterapia/análise está indubitavelmente presente no contexto de construção do vir-a-ser do psicólogo clínico. Como isso ocorre? Há uma prática comum, nos cursos de Psicologia, de associar o período de estágio supervisionado ao período em que o aluno deve ou pode estar em processo psicoterápico/analítico. No caso das instituições pesqui­ sadas, ambas exigem, como pré-requisito, que o aluno esteja em psicoterapia/análise para que possa iniciar sua prática clínica. Que repercussões isso pode gerar dentro de um contexto de formação e de construção de si mesmo como profissional?

Dentro desse contexto de formação, há muito a ser interrogado. Pois é de lá que estão saindo os futuros profis­ sionais que realmente “fazem” a profissão de psicólogo. Algo importante que foi percebido é a compreensão da clínica psicológica como algo que corresponde a uma ética de eficácia e eficiência.

[...] depois que comecei a atender reconheci que nao posso resolver os problemas dos outros. Mesmo com toda essa boa vontade... com toda essa preparação... Eu sou impotente muitas vezes para resolver todas as questões... Isso me deu uma certa frustração... Eu saber que o paciente está aqui... Eu saber que estudei tanto... me preparei tanto... E eu não posso ajudar... Isso realmente me causou uma certa frustração...

A gente tem que buscar leitura, principalmente teórica... Subsídios para colocar naquele caso... Dar um andamento, dar uma continuidade... [...] Que a gente resolva. Tem que resolver, e não estar ali por estar.

Qual a idéia do papel do psicólogo clínico que está sendo transmitida para os estudantes? Afinal, qual a nossa função como psicólogos clínicos? A clinica se constitui como uma ação de atenção e cuidado ou como trata­ mento em busca da cura? Acredito serem estas questões

relevantes, dignas de investigação e melhor compreensão, que parecem ser básicas para todas as interrogações do presente estudo.

A CO LH EN D O AS APRENDIZAGENS

Diante do exposto, parece que se tornar psicólogo clínico é um vir a ser que envolve uma gama de elementos que de forma reconhecida e oficial ou não atuam misturada- mente: o conteúdo teórico, as conversas “desinteressadas”, a prática clínica, a supervisão, a aprendizagem significativa, que envolve a atribuição de sentido e a descoberta de si próprio, entre outros.

Podemos até afirmar que a experiência de aprender a ser psicólogo clínico envolve a nossa própria condição de sermos seres de projeto. Há um ponto de partida, mas não há um fim certo. Há uma destinaçao que nos guia para onde imaginamos que vamos chegar. Ou seja, de concreto mesmo, só há o lugar de onde estou partindo e o horizonte que vislumbro poder alcançar.

Destarte, conhecer mais de perto essa experiência nos mostra quão tortuosos são os caminhos a serem trilhados e quão magnífica pode ser a aprendizagem. A pesquisa demonstrou o encanto que a experiência de aprender a ser psicólogo clínico provoca, principalmente por explicitar o processo de descoberta de si e do outro, numa ação em que está diretamente implicada a inserção subjetiva do (aspirante a) profissional.

Acredito que é de grande valor tentar compreender como ocorre o processo de nos tornarmos psicólogos clínicos, para que possamos encontrar questões que sejam realmente merecedoras de ser interrogadas. Na base de nossa construção, estão outras perguntas, já conhecidas, mas que acredito que ainda mereçam nossa atenção, como “qual a nossa função como psicólogos?” e “qual a especi­ ficidade de nossa ação?”.

De acordo com Schon (2000, p. 15), a nossa educação profissional encontra-se constantemente em crise de confiança, permeada pela visão de que o que os aspirantes a profissionais mais precisam aprender as escolas profissionais parecem menos capazes de ensinar, o que o faz indagar:

Na topografia irregular da prática profissional, há Um terreno alto e firme, de onde se pode ver um pantano. No plano elevado, problemas possíveis de serem administrados prestam-se a soluções atra­ vés da aplicação de teorias e técnicas baseadas em pesquisa. Na parte mais baixa, pantanosa, pro­

blemas caóticos e confusos desafiam as soluções técnicas. A ironia dessa situação é o fato de que os problemas do plano elevado tendem a ser rela­ tivamente pouco importantes para os indivíduos ou o conjunto da sociedade, ainda que seu inte­ resse técnico possa ser muito grande, enquanto no pântano estão os problemas de interesse humano. O profissional deve fazer suas escolhas. Ele per­ manecerá no alto, onde pode resolver problemas relativamente pouco importantes, de acordo com padrões de rigor estabelecidos, ou descerá ao pân­ tano dos problemas importantes e da investigação não-rigorosa?

Diante do exposto, vemos o quanto as “soluções” técnicas têm sido colocadas em questão. Talvez uma saída possível seja não apenas o resgate da improvisação (mesmo porque de forma marginal isso ocorre), mas principalmente a adoção da incerteza e da improvisação como oficiais e necessárias na prática clínica. Estar diante do outro, que demanda atenção, exige estarmos atentos também a nós mesmos, à nossa capacidade de criação e reinvenção de novos significados em nossa prática.

Assim, talvez valha a pena considerarmos não apenas como melhorar o uso de conhecimentos técnicos e teóricos, mas, principalmente, como podemos aprender a partir

de cuidar melhor de como se faz, de como nos fazemos

criadores e inventores, do como damos conta das zonas incertas e “pantanosas” da prática.

Foi com esse olhar que citei Serres (1993), no começo do capítulo. Tornarmo-nos psicólogos clínicos nos mostra a experiência como fenômeno humano. Incorporamos as vivências das diferentes jornadas que fazemos durante a vida. As marcas deixadas em nós misturam-se e fundem- se de tal forma que, sem nos darmos conta, vamos nos tornando quem somos. Assim, nossa condição humana impõe: lança-te! Acolhe as aprendizagens e lança-te!

TÓ PIC O S O RIEN TA D O RES