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1) Quais as implicações da racionalidade metodológica da era moderna na constituição da Psicologia com o ciência? R: A Psicologia se constituiu com o ciência a partir de rupturas, contraposições, afirmações ou asseguramentos da racionalida­ de moderna. Essa racionalidade permeou o processo mediante o qual o método veio a se tornar o escopo da veracização e da legitimidade dos discursos, constituindo as ciências modernas. Nesse processo, configurou-se também um determinado tipo de subjetividade, a do sujeito autônomo e coincidente consigo mesmo, que no âmbito científico desembocou no ideal de sujeito do conhecimento, ou sujeito epistêmico, que se pretendia plena­ mente neutro, objetivo, autônomo e conhecedor pela razão.

Assim, o m étodo operou uma cisão entre o sujeito d o co ­ nhecimento e o m undo a ser conhecido, bem com o entre as facetas racionais, lógicas e claras do sujeito, mediante as quais ele realizava seu convívio público, e sua faceta irracional, obs­ cura, "emotiva” e contraditória, que passou a ser desconsidera­ da e excluída por condutas de ascese, numa cisão entre mente e corpo. A crença desse ideal de subjetividade entrou em crise quando - por razões históricas, econômicas, culturais, sociais - se tornou evidente que os aspectos que não se encaixavam nas classificações e operações de assepsia não haviam sido excluídos dos sujeitos, que assim não eram tão plenamente coincidentes consigo mesmos e racionais com o o método pretendia. É como resposta a essa crise na moderna subjetividade privatizada que surgem os diversos sistemas psicológicos.

A Psicologia é, assim, enquanto ciência, uma resposta moderna a um problema moderno, forjado pela tentativa de objetividade plena e universal tanto no âmbito social e subjetivo quanto no epistemológico. As diversas teorias, sistemas e perspectivas em Psicologia se posicionam de diferentes lugares em relação ao sujeito racional, por vezes afirmando-o, por outras criticando sua possibilidade de existência e propondo distintas formas de abordar essa cisão. Muitas vezes, abordagens que afirmam a au­ tonomia do sujeito tendem a produzir respostas exclusivamente técnicas às questões subjetivas, desconsiderando o contexto em que foram engendradas.

2) Quais as influências das relações sociais e políticas no con­ texto histórico brasileiro para a produção e transmissão de saberes em Psicologia?

R: O contexto histórico brasileiro foi marcado pela coloniza­ ção e por poucos períodos democráticos. Assim, por um longo período da história, as idéias psicológicas foram constituídas e

utilizadas na legitimação e no subsídio da marginalização e do controle social. N o nível "profilático” elas serviam a uma profi­ laxia do ajustamento, peta via da educação: a disciplina escolar, a instituição de m étodos técnicos de ensino, a compreensão do educando a partir da idéia de uma estrutura a ser conhecida, a centralidade da formação e da atuação do educador e a hierarqui­ zação profunda das relações ensino-aprendizagem forjaram uma acepção da Psicologia com o instrumento da adequação social. Constavam nas concepções e na prática psicológica do Império, por exemplo, estudos sobre o favorecimento do ócio pelo clima brasileiro e sobre técnicas de utilização do castigo com o instru­ mento educativo. Nesse rastro histórico, outro fator relevante foi o privilégio da reprodução do saber europeu, muitas vezes descontextualizada no tocante à realidade brasileira.

A partir do com eço do século XX, teorias tecnicistas, muitas vezes de cunho higienista, culpavam unicamente a atuação in­ dividual do aluno pelos problemas de ensino. Embora se cons­ tituíssem propostas que questionavam as noções de adequação e tecnização, com o a de Helena Antipoff, na década de 50, que relacionava questões educacionais e contexto social, e a de Paulo Freire, no início dos anos 60, que constituía uma articulação entre teoria, prática e concepção política na educação, perpetuaram- se respostas técnicas a problemas sociais. Assim, em 1950, Anita de Castilho e Marcondes Cabral ainda consideram que apenas a raça ariana compõe-se de pessoas com criatividade e que a mes­ tiçagem produz indivíduos desviantes (autistas e ciclotímicos), corroborando ainda a adoção de medidas higienistas profiláticas, via educação, e terapêuticas, via saúde mental. Também a Revista

Brasileira de Estudos Pedagógicos, veículo oficial da pesquisa em

educação, privilegia soluções técnicas a questões de escolariza­ ção geradas em esferas políticas e sociais, percorrendo teorias tecnicistas e modelares, com o a Teoria da Carência Cultural.

Por outro lado, as idéias psicológicas estavam presentes em uma terapêutica d o comportamento desviante, por meio do iní­ cio do atendimento em saúde mental, destinado não apenas aos que atualmente são denominados “doentes mentais” mas a todos os indivíduos socialmente marginalizados. Nessa conjuntura, o atendimento servia tanto ao reajustamento social quanto à ins­ tituição e ao favorecimento de práticas de exclusão. As concep­ ções em torno da saúde mental apenas encontraram transforma­ ções efetivas com o início da reforma psiquiátrica, na década de 80, em conjunto com o processo de redemocratizaçâo do país. Nesse contexto, até a regulamentação da profissão, muitas prá­ ticas em Psicologia eram desenvolvidas por profissionais com outras formações ligados a tais instituições.

jsja hegemonia de uma visão adaptativa e na restrição do espa­ ço a propostas inovadoras e democráticas, o ensino e a pesquisa, tanto em Psicologia quanto em educação, ocorreram em grande parte de modo desatrelado, influenciando tanto a transmissão de saberes psicológicos em diversos contextos quanto a formação dos cursos de Psicologia no país. São aspectos exemplares dessa conjuntura: as poucas modificações no currículo em Psicologia desde a regulamentação da profissão, em 1962, muitas das quais relacionadas a intervenções do governo no período da ditadu­ ra militar, a separação entre instituições produtoras e reprodu­ toras do conhecimento, o privilégio de certas modalidades de atendimento que se referenciavam no m odelo de clínica liberal (determinado número de sessões por semana, pagamento, pe­ ríodo de processo pré-terapêutico definido, etc.), a prioridade de modelos de investigação baseados nas ciências naturais e da construção d o saber com o produção de instrumentos para o controle da realidade na proposta para o curso de Psicologia da LDB de 1996, entre outros.

Tais eventos desvelam um ensino, uma Psicologia e um cuida­ do em saúde marcados pela hierarquia, pela descontextualiza- ção e pela desarticulação entre teoria e prática, que têm com o base o caráter normativo pelo qual foram historicamente com ­ preendidos e constituídos. Assim, os desafios na formação em Psicologia no Brasil passam pela preservação da inventividade e da criação com o propulsoras de novos meios de atuação, com ­ preensão e transformação da realidade, o que é dificultado pelas concepções adaptativas constituídas historicamente e presentes e atualizadas em muitos discursos no interior das instituições, que encontra conexões com as condições políticas e sociais do país, que, pouco pautadas em relações sociais democráticas, res­ tringiram uma perspectiva de cidadania enquanto possibilidade de construção coletiva e dialógica de conhecimentos, ensino e práticas reflexivas em questões humanas.

3) Apresente a proposta de ensino na perspectiva da Atenção Psicológica em Instituições e articule-a ao m odo com o se deu o m ovimento de aprendizagem dos alunos nessa perspecti­ va.

R: Do ponto de vista do ensino, a proposta em questão recon­ figurou a oferta de estágios extracurriculares a partir do Plantão Psicológico, numa concepção de clínica com o voltar-se ao cui­ dado e ao olhar específicos às relações e contextos humanos, como estágios em plantão psicológico e em pesquisa, articulan­ do-se o trânsito entre ensino, pesquisa e extensão de serviços à comunidade. Configuram-se também outros espaços formati­ vos: congressos, vivências, encontros de projetos em que todos participam (supervisores, alunos de graduação e pós-graduação, professores, técnicos). A o atar realização de estágio em Plan­ tão Psicológico e execução de pesquisa interventiva na mesma prática, essa proposta permite aos alunos uma referência expe- riencial das conexões entre ação e investigação clínica. Alunos de qualquer ano de graduação atuam no Plantão Psicológico em instituições desde o início d o estágio, e elege-se a exposição de uma perspectiva, e não de uma teoria, no contato inicial dos alunos com o trabalho. Esta é realizada por meios indiretos (um

filme e um texto filosófico), discutindo as perspectivas para o conhecimento válido na modernidade, a fim de resgatar a dimen­ são experiencial do saber e a multiplicidade de olhares possíveis. As questões teóricas são discutidas em supervisão conforme se apresentem pela prática, que também constitui um momento de cartografia, que abarca a própria pesquisa e construção de saber. Recorre-se, ainda, a anotações do trabalho em diários de bordo, que são registros pessoais da experiência, nos quais é possível uma primeira narrativa desta.

Na interface de investigação e prática, os alunos vão perce­ bendo a interrogação d o sentido, em sua dupla dim ensão de direção norteadora e afetabilidade, com o atributo fundamental do fazer clínico. A investigação clínica mostra-se rearticulação entre teoria, pesquisa e prática e o percurso do aprender, assim com o prática e pesquisa, norteiam-se pelo interrogar pelo sen­ tido. Tal investigação apresenta rupturas, releituras, conexões, circulando pelos temas atinentes à prática clínica e sua compre­ ensão, permitindo reinterpretá-los a cada narrativa. Inicialmente, a clínica na instituição se mostra com o crise no sentido etimo­ lógico: uma perda desalojante de referências que orientem um caminho a seguir, pois os significados construídos não contem­ plam a experiência atual.

Do desalojamento sentido emerge a afetabilidade como aber­ tura para m odos próprios de expressão e nomeação da experiên­ cia. O s momentos de crise e busca de significações são, gradual­ mente, reconhecidos com o parte de um movimento e exercício de compreender. A o se configurarem as vivências e os espaços clínico-pedagógicos em que elas podem ser compartilhadas, ar- ticulam-se questões, reflexões e novas conexões entre vivên­ cia, teoria, prática, pesquisa e aprendizagem, que acompanham passagens e desvios próprios à aprendizagem, em novas cons­ truções de sentido, pelo espelhamento de olhares e narrativas. A experiência articula-se a outras experiências e experiências de outros, favorecendo o trânsito d o sensível ao significado. Crise e interrogar pelo sentido se mostram nas interfaces de apren­ dizagem e pesquisa, com o bússola que possibilita releituras e transformações, impulsionando a pesquisa desenvolvida junto à intervenção.

Em cada contexto, novos períodos de crise levam à reconfi­ guração da bagagem vivencial, do significado e direcionamento das experiências e sua expressão: o aprender se apresenta com o tessitura de sentido, em que afetar-se é um m odo inicial de aber­ tura, de inclinação à escuta e à interrogação das subjetividades e das instituições, das falas, relações e ações ocorridas no espaço cerzido pela presença do psicólogo. Essa dinâmica está perme­ ada pela proposta, pois o Plantão Psicológico nas instituições se constitui com o abertura a atores sociais, para o imprevisto e o imprevisível, sem estruturas fixas e, nesse sentido, com o cenário de desalojamento, que implica assumir a ausência de um saber preconcebido com o condição para construir um olhar para a intersubjetividade na pesquisa de m odos contextualizados de intervenção. A cesura do espaço terapêutico dá-se na multiplici­ dade da esfera intersubjetiva, na tessitura de "pontes de diálogo eu-outro, pelas quais ocorrem travessias de afetos, significações e dimensões da existência.

Se inicialmente os espaços de discussão têm uma dimensão de identificação (os alunos percebem a própria ação clínica como pertinente a um grupo e escutam outras experiências com o ex­ pressão da própria experiência), ao longo do fazer os espaços de formação tornam-se lugares de fala da experiência. O s alunos voltam-se à rememoração das próprias vivências, numa abertu­

ra para significados e sentidos a serem construídos com outros. A o se reconhecer a inapreensão do real em si, as articulações realizadas nos espaços de prática e formação são legitimadas, permitindo resgatar a própria fala, na interlocução com falas de outros, com o eixo de constituição de um saber. O status das falas se expõe de maneira dialógica: “autorizados a falar” embe­ bidos do desalojamento oriundo da dificuldade de significar a experiência e da afetabilidade provocada por ela, os alunos re- articulam a fala com o construção com outros - as falas sobre a experiência deixam em suas conexões “aberturas” nas significa­ ções e a expressão ocorrida se faz uma leitura possível, passível de releituras.

A o considerar as vivências como eixo de significados e sentido expressos pela linguagem, os alunos rearticulam a aprendizagem numa dupla dimensão: em conexões com a vivência clínica pes­ soal, que transitam tacitamente na prática, junto a percepções e significações no encontro clínico, e em conexões com referências teóricas, construídas na linguagem e viabilizadoras de interlocu­ ção e reflexão, circunscrevendo o olhar e o campo de atuação. N o relato das experiências, salientam-se ainda reflexões teóricas que não se dão apenas no âmbito psicológico, mas implicam ou­ tros m odos de saber (sociais, políticos, históricos) que atraves­ sam as experiências dos sujeitos sociais e que, se nem sempre se expressam na fala de uma experiência especifica, se desvelam nas situações do cotidiano das instituições. Refletir sobre tais questões é, ainda, meio de compreender afetos e significações expressos e sentidos na atuação clínica.

Dessa forma, o lócus da teoria rearticula-se como instrumento para pensar e tecer sentido, num trânsito entre percebido - táci­ to - e significado articulado - explícito - que com põe um saber de ofício. A partir da cesura entre afetabilidade e significação, a

teorização atua com o eixo de reflexão e referenciação, de bus­ ca de contornos e de desenvolvimento de uma crítica sobre a prática, e não com o conceitualização rígida e afiguração precisa dos fatos. O trânsito pela multiplicidade das experiências clíni­ cas torna-se matéria-prima na consideração de várias esferas de relação: entre sensível e palavra, si mesmo e outros, teoria e prá­ tica, aprendizagem e pesquisa. Constitui, ainda, uma trama que cartografa a dinâmica dessas conexões e situa ação e teorização clínica num lugar, um tempo, uma situação social. A aproxima­ ção teórica se faz pela reflexão sobre a experiência, realocando o que se situava distanciado, e, nessa ressignificação, é possível realocar ainda as próprias leituras de teorias. Configura-se um movimento de elaboração de sentido, próprio tanto à aprendi­ zagem quanto à pesquisa e prática clínica: a interlocução entre significação, tessitura de sentido e afetabilidade rearticula mui­ tas vezes as acepções teóricas em reelaborações, expressando um estreitar da articulação teoria-prática com o conexão entre saber e experiência, e não com o fala heterônoma.

O interrogar o encontro clínico passa a ser compreendido com o meio para a articulação teórico-prática, possibilitando interpretações e trazendo novas questões de aprendizagem e pesquisa. Na articulação teórico-experiencial em que as com- preensões se referem aos próprios alunos, há um estreitamento entre eles e seus interlocutores, horizontalizando essa interlo­ cução e aproximando-a da esfera dialógica. N o momento em que a legitimidade do dizer foi construída, as interrogações se fazem na necessidade de reflexão constante sobre o cotidiano de novos encontros intersubjetivos, apontada no espaço clínico enquanto espaço de desalojamento, que permite uma ação crí­ tica de st mesma, na construção de um m odo de ser, enquanto profissional da prática clínica. Reconhecer-se ou não em teorias dã-se a partir das possibilidades de nomear o sensível e o sen­ tido no encontro, articulando significados possibilitados pelas compreensões e pelas percepções sentidas no contexto expe- riencial, abrangendo uma apropriação.

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