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Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto** ■ Henríette Tognettí Penha Morato***

A ocupação do espaço psicológico pelos diversos sistemas e projetos não gerou proposta integrada conceituai e teori­ camente. O s sistemas de pensamento foram surgindo quase ao mesmo tempo, configurando propostas diversas para uma apreensão teórica com pretensões epistemoló- gicas de demarcação do “psicológico”. Embora dirigidos a preocupações aparentemente excludentes - o compor­ tamento manifesto ou a experiência imediata do sujeito

tais sistemas não se apresentavam tão independentes assim uns dos outros. Para além das diferenças, fazia-se presente, reiteradamente, a necessidade de confirmar a legitimidade de cada uma das posições particulares a fim de os diversos sistemas se tornarem habitantes apropriados do mesmo espaço psicológico como campo de conheci­ mento comum.

No entanto, a unificação do campo de saberes psicoló­ gicos apresentou-se utópica diante da dispersão e fragmen­ tação dessa área de conhecimento. Segundo Penna (1997), um novo processo de dispersão acrescentou-se ao que já dominava o campo do saber psicológico, com o processo de multiplicação de novas disciplinas como resultado do desdobramento de domínios tradicionais. Atualmente, as preocupações centralizam-se na coerência interna das

*Este capítulo foi extraído de Barreto, C LB T : Ação Clínica e os Fundamen­

tos Fenomenológicos Existenciais, 2006. Teste de D outorado em Psicologia

Escolar e D esenvolvimento H um ano. São Paulo: Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. O texto recorre à apresentação da pesquisadora principal, referindo-se à sua própria experiência no desenrolar da pesquisa; então, por vezes, o tem po verbal aparece na I a pessoa do singular. **Pesquisadora principal.

***O rien tad o ra da pesquisa.

produções teóricas e nas possibilidades de articulações transdisciplinares com suas implicações éticas e políticas.

O panorama contemporâneo, ainda dominado pela necessidade moderna de sínteses e respostas definitivas para as questões centrais da Psicologia, depara-se com a frag­ mentação dos saberes psicológicos e aponta para a neces­ sidade de revisitar as grandes contribuições das escolas e sistemas psicológicos, sem os vieses de uma compreensão já comprometida com as definições teórico-sistemáticas desenvolvidas a partir delas. Tal posição legitima a atitude de retomar a contribuição de um determinado autor sem a obrigação de manter-se fiel à “escola” derivada da sua orientação e idéias psicológicas, possibilitando a elaboração de outras compreensões contidas em sua proposta e que permaneciam veladas pela imposição de interpretações que se tornaram sistemáticas.

É nesse contexto que a Fenomenologia e o Existencia­ lismo marcaram de diferentes modos, direta ou indireta­ mente, a psiquiatria, a Psicologia e, particularmente, o campo das práticas psicológicas. Mas, antes de explicitar essas diferentes formas de influência que culminaram com a elaboração da perspectiva fenomenológica existencial em Psicologia, uma breve contextuaÜzação da idéia de matrizes psicológicas, elaborada por Figueiredo (1996), poderá ajudar nessa reflexão, apontando para um lugar próprio que essa perspectiva ocupa na Psicologia, para além do plano dos projetos e sistemas psicológicos. Por tal razão, optou-se por delinear as matrizes, que permitem traba­ lhar além das teorias e sistemas - maneira mais adequada e esclarecedora para se abordar a perspectiva fenomeno­ lógica existencial, tao acriteriosamente confundida com

a Psicologia humanista, com a Abordagem Centrada na Pessoa e a Gestalterapia.

Sinteticamente, as matrizes do pensamento psicológico têm por proposta compreender as concepções de homem, de mundo e de objeto da Psicologia que estão por trás dos diferentes projetos e sistemas psicológicos. Tal atitude almeja olhar os projetos e sistemas de Psicologia buscando tanto compreender as possibilidades de dispersão do campo da Psicologia quanto identificar algumas conflu- ências e diferenças inconciliáveis.

Apresentam-se em dois grandes grupos. No primeiro, encontram-se as matrizes cientificistas, que, por desco­ nhecerem a singularidade do sujeito, assumem, predo­ minantemente, o modelo das ciências naturais. Buscam a ordem natural e comportamental dos fenômenos psicoló­ gicos e partem do pressuposto de que existe uma “verdade” que pode ser indicada por evidências e demonstrações, confirmando assim a predominância do método científico. Assumem um realismo ontológico que defende a crença na realidade independente do sujeito que a conhece. Essa seria a matriz dos projetos do Estruturalismo, do Funcio­ nalismo e do Comportamentalismo.

Num segundo grupo, encontram-se as matrizes român­ ticas e pós-românticas, que reconhecem e sublinham a especificidade do sujeito. Elas reivindicam a independência da Psicologia diante das demais ciências, procurando novos cânones científicos que a legitimem. Denunciam a insu­ ficiência dos métodos das ciências naturais para o estudo dos fenômenos psicológicos, privilegiando a experiência subjetiva antes de qualquer racionalização e objetivação.

Nesse grupo, há uma perspectiva mais vitalista e natu­ ralista própria das Psicologias humanistas. Há, também, as matrizes compreensivas, que congregam as raízes estrutu- ralistas da Psicologia da forma e da psicanálise, e a matriz fenomenológica existencial. Ambas buscam encontrar respostas para o problema da verdade e se apresentam como ciências compreensivas.

Nessa direção convém, recorrendo a Dilthey (1883- 1911), distinguir as ciências históricas, fundamentadas no método compreensivo-hermenêutico, das ciências natu­ rais, baseadas, por sua vez, no método explicativo das ciên­ cias causais com a elaboração de leis gerais - distinção que postula diferentes orientações ontológicas e episte- mológicas. Assim, Dilthey definiu as ciências naturais como ciências explicativas, ressaltando o fato de estarem submetidas à previsão e ao controle. Quanto às históricas, consideradas ciências do espírito, não se submetem a um

processo objetivador, pois seus sujeitos não são passíveis de autoneutralização.

Por essa perspectiva, sua meta é a comunicação. Os atos comunicativos seriam atos de indivíduos históricos e cultu­ ralmente datados numa articulação entre biografia indivi­ dual e formas culturais, o que demandaria atitude compre­ ensiva como forma de desvelar a experiência vivida que se manifesta pelos ou nos atos comunicativos. O sentido que os sujeitos atribuiriam ao mundo e às experiências vividas e expressas em seus atos comunicativos constituiria o obje­ tivo das ciências do espírito.

Enquanto os estruturalismos buscaram enfrentar a questão de como fundamentar uma interpretação da verdade por meio do rigor metodológico, empenhando-se na formali­ zação dos conceitos e dos procedimentos analíticos, a pers­ pectiva fenomenológica existencial, de cunho heideggeriano, vai desenvolver-se como uma crítica à metafísica, suporte para a constituição da ciência e da técnica moderna. Tal crítica foi dirigida aos significados legados pela metafísica para o homem, o mundo, o pensamento, o ser, a verdade, o tempo, o espaço, entre outras dimensões. Assim, antes de produzir um método, engendrou nova ontologia, visando a outra via de conhecimento fundada na episteme fenomenológica.

Diante de tal cenário, seria possível dirigir questiona­ mentos à prática psicológica refletindo-a como ação que poderia escapar do domínio da técnica, enveredando por outros caminhos, afastando-se de procedimentos prescri- tivos voltados para o tratamento e a cura? Será que as consi­ derações críticas, feitas por Heidegger, à ciência moderna e aos pressupostos norteadores da constituição da Psico­ logia científica poderiam subsidiar tais reflexões sobre as práticas psicológicas?

Heidegger (1966) considera a ciência um dos fenô­ menos essenciais da Idade Moderna e a técnica meca­ nizada, o resultado mais visível da essência da técnica moderna. Por conseqüência, toda atividade do homem moderno e contemporâneo está afinada por um único diapasão: a razão tecnológica. Nossa cultura está dominada por essa perspectiva, e, no sentido corrente, apreende-se a técnica na sua dimensão instrumental, possibilitando à ação humana atingir determinados fins regidos pelo prin­ cípio de causalidade. Isso significa que assumimos o real e a natureza como grande fundo de reserva, disponível para extração e obtenção, transformação e acumulação, sob o

comando da previsão e do cálculo. !

Por sua vez, a compreensão da condição humana prove- ( niente do modo de pensar heideggeriano levanta questio- w namentos sobre o mostrar-se do ser-homem e o acesso

que este exige a partir de sua singularidade, denunciando a insuficiência do conhecimento científico-natural para compreender o ser-homem específico. O ser exige uma identificação própria, o que não significa abandonar a ciência, mas “chegar a uma açao refletida, conhecedora com a ciência e verdadeiramente meditar sobre seus limites” (H EID EG GER, 2001, p. 45).

No entanto, os conhecimentos científicos naturais foram aplicados à Psicologia sem nenhuma consideração à especi­ ficidade do ser-homem. Tal aplicação pode responder pelo suceder e pelas mudanças no psíquico, mas nao pelo que é o psíquico. Essa resposta não se fundamenta no princípio da causalidade - idéia que faz parte da estrutura do ser da natu­ reza. Os fenômenos psíquicos, para serem vislumbrados, exigem outro modo de aproximação: supõem, segundo Heidegger, a motivação, que “se refere à existência do homem no mundo como um ente que age, que tem expe­ riências” (HEIDEGGER, 2001, p. 51). Assim, apesar de o ser humano constituir-se como ser de necessidade enrai­ zado no mundo natural e de estar inserido numa sociedade e afetado pelas condições socioculturais, ele pode ir além da necessidade que o atravessa e além das determinações socio- cuiturais. Pode reposicionar-se diante daquilo que chega até ele, seja pela natureza, seja pelo social, já que o modo de se abordar o ser humano não é pelo princípio da causalidade, e sim pela motivação - o que motiva o gesto.

As ciências naturais estão atreladas a “premissas” que deduzem as coisas por meio de conclusões. Por tal concepção, o ponto de partida das ciências naturais é a relação lógica entre premissa e conclusão. Mas esse acesso de observação atende à exigência da singularidade do ser-homem?

Ao levantar esse questionamento, Heidegger recorre à distinção entre premissa e suposição e indica que essa última, por não derivar da relação lógica entre premissa e conclusão, pode atender às exigências da singularidade do ser-homem. Para ele, “na suposição a observação científica do respectivo âmbito é fundamentada no suposto. Aqui nao se trata de uma relação lógica, mas sim ontológica” (HEIDEGGER, 2001, p. 57, grifos do autor). Na relação ontológica, o ponto de partida é o pressuposto - trata-se de uma circunstância, não de um fundamento lógico - , ele é a razão de ser (rato

essendi), mas não a causa. Nas ciências naturais, o âmbito

objetivo já é preestabelecido, o que não acontece com o ser, que, embora possa ser pré-clareado, não pode ser espacial- mente pensado, pois não é um ente.

Diante do exposto, delineia-se a impossibilidade de vislumbrar o ser pela ciência natural, a partir de premissas deduzidas por conclusões causais. O ser, por não depender

da vontade do homem, não pode ser estudado pela ciência. Assim, como pensar a ação clínica, intervenção própria do psicólogo, limitada unicamente pelos ditames das ciên­ cias naturais (ônticas) que ainda predominam nas ciên­ cias humanas? Os pressupostos ontológicos, via método fenomenológico, por meio da hermenêutica, poderiam ampliar a intervenção clínica do psicólogo, permitindo o acesso ao sentido do existir em uma existência particular? Sendo assim, a situação clínica demanda compreensão das dimensões ônticas e ontológicas, assentando-se no trânsito - possível convergência - entre essas duas dimensões?

N a busca desse outro modo de pensar a ação clínica é que me debruço sobre o pensamento heideggeriano, considerando nao somente a crítica que apresenta a razão tecnológica, mas também o modo como pensou o ser do homem em sua analítica da existência.

Ao considerar o desamparo e a angústia como estru­ turas ontológicas do modo de ser do homem (Dasein), compreende que o ser humano está lançado em um mundo inóspito na condição de exilado, acossado para dar conta do seu acontecer humano. Tais estruturas, consideradas por Heidegger existenciais, não podem ser explicadas por mecanismos psicológicos, já que, como estruturas ontoló­ gicas fundamentais do homem, são as condições de possi­ bilidade do acontecer dos fenômenos psicológicos.

Compreensão assim permite dizer que o sofrimento humano, apesar de sua manifestação na esfera do psico­ lógico, demanda abertura à dimensão originária, ou onto­ lógica, do acontecer humano. Tal dimensão leva a ir-se para além do nível das técnicas e das teorias psicológicas fundadas em pressupostos metafísicos da subjetividade; aponta para a emergência de uma ação clínica que transite entre a compreensão psicológica dos fenômenos clínicos e a ontologia existencial ao modo de Heidegger. Sendo assim, poderia ser constituída por uma abertura do olhar clínico que, “afinado” por preocupações filosóficas acerca do homem, vislumbrasse outra ótica no horizonte no qual o ser humano fosse compreendido na condição de ser-no- mundo-com-os-outros. Tal possibilidade — já não subordi­ nada a pressupostos ontológicos metafísicos - talvez apon­ tasse um “novo paradigma” para a Psicologia clínica, no sentido específico deThomas Kuhn.1

'A noção de paradigm a utilizada é a de Kuhn (1970) em seu livro A estru­

tura das revoluções científicas. Para Kuhn (1970), um a disciplina científica

é definida por seus paradigm as, que são “realizações científicas universal­ m ente reconhecidas que, durante algum tem po, fornecem problem as e soluções modelares para um a com unidade de praticantes de um a ciência” (K U H N , 1970, p. 13).

No mesmo rumo dessa reflexão, encontro questiona­ mentos semelhantes em outros autores. Loparic (1997), por exemplo, ao questionar a metapsicologia freudiana, apresenta a necessidade da desconstrução heideggeriana da Psicanálise, ressaltando que “os pontos de vista metapsi- cológicos não são ‘hauridos originária e genuinamente’ da estrutura do ser do ser humano, mas das teorias metafí­ sicas” (LOPARIC, 1997, p. 12, aspas do autor). Na mesma linha de pensamento, Loparic atribui à obra de Winnicott o estatuto de revolução paradigmática:

[...] Winnicott modificou também a matriz dis­ ciplinar. Ele rejeitou ou modificou significativa­ mente o emprego de conceitos fundamentais tais como sujeito, objeto, relação de objeto, pulsão (vontade, impulso), representação mental, meca­ nismo mental, força pulsional. No seu lugar e no da teoria do desenvolvimento sexual, ele colocou a teoria do amadurecimento humano, assim como uma série de conceitos básicos novos a serem usa­ dos, doravante, no estudo de problemas antigos. (LOPARIC, 1997, p. 58)

Medard Boss (apud H EID EG G ER , 2001, p. 7), inquieto com os rumos da psiquiatria clássica e preocu­ pado com o “extremo perigo no qual se encontra o próprio ser-humano do homem atual”, que não pode ser captado com a ajuda das atuais ciências da medicina, Psicologia e sociologia, inicia uma reflexão, objetivando romper com o modo de pensar ocidental moldado por Descartes. Nessa linha de pensamento, encontrou amparo no pensamento de Martin Heidegger, que não só reconhecia o perigo em que o espírito tecnocrata colocara o homem, mas também apontava para outra possibilidade de relacionamento com a realidade. Assim, começou uma formação filosó­ fica com Heidegger a qual teria tornado possível, segundo o próprio Boss (1977, p. 8), “a remodelação da teoria e prática terapêutica dentro da minha atividade médica, para a análise do Dasein . Nos seminários de Zollikon,2 Boss (apud H E ID E G G ER , 2001) busca uma abertura para a discussão dessa temática. Heidegger (2001) inicia

a discussão, explicitando, graficamente, a compreensão da existência humana, constituída como Dasein em contrapo­ sição às representações da psique, da consciência e do eu, presentes na Psicologia e na psiquiatria clássicas.

Na Fig. 3.1, a seta vinda de um espaço aberto, vazio, em direção a um horizonte semifechado, significa a tentativa de apontar a diferença conceituai entre a sua ontologia do ser humano e a proposta pela metafísica. Referindo-se à forma gráfica, Heidegger (2001, p. 33, grifos do autor) diz:

A finalidade deste desenho é apenas mostrar que o existir humano em seu fundamento essencial nunca é apenas um objeto simplesmente presen­ te num lugar qualquer, e certamente não é um objeto encerrado em si. Ao contrário, este existir consiste em meras’ possibilidades de apreensão que apontam ao que lhe fala e o encontra e não podem ser apreendidas pela visão ou pelo tato. To­ das as representações encapsuladas objetivantes de uma psique, um sujeito, uma pessoa, um eu, uma consciência, usadas até hoje na Psicologiae na psi- copatologia, devem desaparecer da visão daseinsa- nalítica em favor de uma compreensão completa­ mente diferente. A constituição fundamental do existir humano a ser considerada daqui por diante se chamará ‘Da-sein ou ‘ser-no-mundo\

Os elementos contidos nesse texto indicam os aspectos centrais da estrutura ontológica de ser do ser humano proposta por Heidegger, em contraposição à objetivação naturalista vinculada à metafísica da subjetividade presente nos projetos de constituição da Psicologia como ciência independente.

Tais considerações apontam para a possibilidade de outra compreensão da ação clínica do psicólogo. Nessa

2Seminários realizados em Zollikon (1959-1969) por Heidegger e editados por M edard Boss em número superior a 20. Contaram com a participação de 50 a 70 estudantes e assistentes de psiquiatria. N o conjunto desses even­ tos, Heidegger propunha buscar a possibilidade de os seus insights filosóficos ultrapassarem as salas dos filósofos, beneficiarem pessoas que necessitassem de ajuda, enquanto Boss propunha buscar fundamento sólido para uma

compreensão satisfatória de seus pacientes e de seus m undos. Fig. 3.1

direção serão visitadas as principais contribuições para a consolidação da perspectiva fenomenológica existencial como ciência compreensiva, e que poderão respaldar a ação clínica do psicólogo.

O pioneiro a se ocupar com as ciências compreensivas por sua vivência na prática clínica, mais precisamente na psicopatologia e na psiquiatria, foi Karl Jaspers (1883- 1969)) seguidor da mesma tradição de Dilthey quanto à distinção entre explicação e compreensão. Trabalhou com o método fenomenológico de Husserl na dimensão descritiva dos fenômenos da consciência e propôs enfocar a “captação” e a “descrição” dos estados psíquicos vividos pelos pacientes. Assim, atentou para a complexidade da psicopatologia, reconhecendo que os fenômenos humanos não só são explicáveis por meio do modelo explicativo causal da ciência natural, mas também compreensíveis e interpretáveis, a fim de se estabelecerem conexões de sentido entre os fenômenos, de modo a tornar acessível sua lógica interna.

Ê com relação a essa última dimensão da sua psico­ patologia que, segundo Cardinalli (2004), Jaspers consi­ derou sua proposta uma “Psicologia compreensiva” , já que, além da descrição fenomenológica da vivência dos pacientes, também buscava o que denominava “conexões do psiquismo” . Sendo assim, sua contribuição foi bastante significativa para a constituição da matriz fenomenoló­ gica existencial do pensamento psicológico, sobretudo por enfatizar a busca de fundamentos filosóficos considerados mais pertinentes à compreensão do acontecer humano em lugar dos fundamentos oferecidos pelas ciências naturais. Questionou, então, o modelo explicativo causal proposto pela ciência natural para o estudo dos fenômenos humanos e encontrou, na perspectiva fenomenológica, possibili­ dades para o esclarecimento e a descrição daquilo vivido e experienciado pelo paciente.

Ludwig Binswanger (1881-1966) foi outro estudioso inquietado por sua prática clínica a dirigir-se à perspec­ tiva fenomenológica existencial. Seus primeiros trabalhos sofreram influência da fenomenologia husserliana quando se voltou ao estudo da descrição e da compreensão das vivências patológicas relativas aos estados de consciência. Mais tarde, já sob a influência de Heidegger, inaugurou novo modo de abordar os fenômenos patológicos, deno­ minado existencial ou daseinsanalítico, e ocupou-se em estudar o projeto de mundo dos pacientes.

Ele denominou Análise Existencial a escola de pensa­ mento que desenvolveu (no livro Existência, de Rollo May, 1976) e apontou a Análise do ser, de Heidegger, como a

base filosófica e as diretrizes metodológicas de sua proposta. Descontente com o atrelamento da psiquiatria clássica às ciências naturais e reconhecendo o caráter específico da existência humana, apoiou-se na “desconstrução” empre­ endida por Heidegger da idéia fundamental da episteme metafísica para considerar que a divisão do mundo em objeto e sujeito trazia sérios danos à psiquiatria; quali­ ficou-a inclusive de “câncer da ciência”. Na verdade, dese­ java suprimir essa divisão no pensamento psiquiátrico. Para isso chegou a fazer uma descrição daseinsanalítica de numerosos casos de esquizofrenia, apoiando-se na apresen­ tação heideggeriana da estrutura da existência como ser- no-mundo,3 a qual lhe permitiria superar não só a velha dicotomia entre sujeito e objeto, mas também o defeito

fatal de toda a Psicologia representado pela manutenção

da referida dicotomia.

Baseado em tais pressupostos, compreendeu a doença mental como modificações da estrutura fundamental do ser-no-mundo e apontou a importância das dimensões de espacialização e temporalização da existência para a