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Em nossas reflexões, debruçados nos depoimentos de cada participante, a vividação já teria resposta satisfatória no otimismo trágico de Frankl e estaria, então, elucidada. No entanto, cuidado e finitude ainda nos provocam inda­ gações, e outra perspectiva de interpretação nos aparece como possível... Passamos agora a reinterpretar as compre- ensões anteriores à luz do que nos diz Heidegger, fazendo uma outra escuta, ao sabor de saber do não saber.

Retomamos, assim, o nosso percurso a partir da Grécia antiga, no século VI (420 a.C.), resgatando a história na tradição mítica. Em Atenas, segundo Vernant (1888), a

tragédia foi um outro gênero literário, um novo tipo de

espetáculo que nas festas públicas mostrava a experiência humana cotidiana, suas condições sociais e psicológicas. Sua forma de apresentação é a narrativa, e conta do cole­ tivo experiencial, em sua dimensão humana.

Num enfoque psicológico, a tragédia mostra o que se passa com o herói e seus atosy e a sua comunicação com o público, trazendo também a responsabilidade, que aparece í quando a ação humana é objeto de reflexões. Na cena I trágica, temos dois elementos: o herói e o coro - repre- \

sentado pela coletividade. Percebemos entao o caráter ' ambíguo da tragédia, isto é, de um lado, o coro e, do outro, o herói, levando-nos a pensar na prática clínica e nas questões que permanecem atuais, como o pertenci- j mento e a possibilidade de ouvir o singular e o universal. I A obra trágica exprime-se na forma do drama, pela tensão l que se instala entre os dois elementos da cena trágica: o <

herói e o coro.

Seguindo o mesmo pensamento, Louraux (1992) lembra-nos que drama aqui é compreendido como uma ação, um acontecimento, como experiência vivida, que na 1 maioria das vezes referia-se a patos (sofrimento ou experi- I

ência de dor). Diz ela: |

E por ter sofrido que se compreende, mas tarde , demais, se é verdade que a revelação só ocorre no fundo do desastre. E começamos a nos pergun­ tar: quem tira proveito do ensinamento do patos trágico? O espectador, talvez, embora não seja um 1 herói; mas essa restrição perde sua importância i se é verdade que, ao submeter o herói ao patos, a ( tragédia atua na redução de toda distância entre o homem ordinário e o aner de exceção, entre a con­ dição mortal e a guinada heróica, em seu excesso, até dar a entender que o herói vale por qualquer

homem. (LOURAUX, 1992, p. 27) *

I Na tragédia, portanto, a possibilidade de compreen- . dermos a complexidade humana que é representada pelo herói. Ele provoca o espectador, que pode perceber e se identificar com o drama, uma vez que retrata o homem e o humano. Os termos brotós, ánthropost aner são, n a cena

trágica, condições próprias da existência humana, ou seja: I o homem finito, o homem como ser social e o homem j viril, respectivamente. E nesse cenário que a vida humana, ( desde a Antiguidade e sempre, se enuncia.

Nesse sentido, e refletindo na trama trágica do paciente grande queimado, o herói/paciente também fala da tragédia cotidiana. E, querendo ouvir ainda mais, te n ta m o s I

compreender com um novo olhar o que nos dizem os j

participantes deste estudo. i

Pensando em vividação no plano do simples voca- bulário, poderia referir-se a um movimento ou a um

conjunto de ações do paciente e da equipe, acreditando que vontade e força são decisivas para a recuperação do paciente, inclusive nas situações-limite. Frankl nos esti­ mula a não-angústia pela não-imortalidade, afastando-nos da angústia existencial, enquanto atuando na solidarie­ dade, com suposta serenidade, tal a “suposta” serenidade da equipe. Seria, então, possível sobreviver, caso a vividação fosse apenas vontade de sentido de vida!... seria a saída!... Se conseguirmos salvar... estamos todos salvos!

Voltando a ouvir Vernant (1988), lembramos que homem e ação se delineiam não como realidade a ser defi­ nida ou descrita, mas como enigma nunca esgotado, e assim abre-se a possibilidade de uma outra compreensão: vividação tem um duplo sentido!

A dimensão existencial do desamparo e sofrimento humano revela-se, agora, pela angústia da morte, como uma condição inexorável que escapa além da vontade do sentido de vida de qualquer mortal - ser humano.7 Por essa compreensão, a doença apresenta-se como experiência da fragilidade do corpo, e a vida, sendo chama, aponta para a morte como um fato, provocando mais a nossa angústia de sabermos de ser-para-a-morte.

Desse modo, descortina-se o duplo sentido de vivi­ dação: como recuperação da vida sadia e como esforço para manter-se no ser. Passamos, então, a compreendê-la como a vontade de viver, na recuperação, e como uma das possibilidades de saída da morte. Para a equipe, que tem como aliadas a ciência e a técnica, outra possibilidade de saída. No entanto, agora não podemos deixar de considerar a morte como uma das possibilidades de impossibilidade de vividação.

Na tentativa de ressignificar vividação à luz de Heidegger, agora a compreendemos como mais uma possibilidade, enquanto a morte é. Assim, os depoimentos se mostram com outro sentido:

• “ (...) quando o paciente não quer, mesmo que a equipe invista 100%, não adianta!” (...).

• “ (...) O que eu noto é um exagerado pessimismo, não é? Talvez um modo de se relacionar...

• “ (...) aquele que tem motivação lá fora e encon­ tra motivação aqui dentro... aí ele acredita e sai”

(«.).

• “ (...) Eu jamais vou falar sobre o que aconteceu com ele, sobre a dor dele” (...).

• “ Ele vai ver que tem que reagir, que tem uma so­ lução, que ele não está só naquela luta” (...).

7Ser aqui em pregado com o verbo/ação.

• “ (...) O relacionamento com o paciente é muito importante, a dor é mais psíquica” (...).

• “ Deus, a medicina, o carinho da equipe, a soli­ dariedade, a sinceridade, quando pude acreditar, a família, os amigos...”

No hospital, em contato permanente com os (sofre)dores, somos o tempo todo afetados pela angústia e desamparo do paciente. A condição do (do)ente aproxima-nos da fini- tude e da morte como acontecimento, em sua concretude na concepção existencial de Heidegger.

Assim, as narrativas, agora à luz da angústia em Heideg­ ger, revelam que a morte, presença-presente nos aconteci­ mentos da enfermaria, é real e pode ser sentida nos dife­ rentes modos de ser de cada paciente/membro da equipe, ou seja, com um modo que fala da angústia do confronto com a possibilidade da impossibilidade de poder-ser; ou já -

não-ser. a angústia inevitável, embora própria de ser-para-a- morte, que somos todos nessa existência, afinal, carregamos

sempre conosco nossa própria nulidade existencial. Nos fragmentos de narrativas de pacientes, notamos:

• “ (...) me sinto só... quero sair daqui... é porque estou sozinho... quero saber... estou angustiado... Isso fica na cabeça da gente... o sentimento é mui­ to forte... o que aconteceu?... por que comigo?” • “ (...) o acidente, não gosto de lembrar... dá medo...

doutora, quando eu entrei aqui... eu pensei não sair...”

• “ (...) vocês estão perdendo tempo... perdendo tempo... eu não vou melhorar!”

eu realmente senti medo... você pensa que a gente chega aqui depois de morrer...”

Na tentativa de compreender mais a questão, o trauma e a hospitalização são acontecimentos da vida cotidiana, e cada ser humano utiliza seus recursos ou modos de enfren- tamento no mundo, na vividação, revelando sua singu­ laridade. No entanto, esses modos não se oferecem como possibilidade de impossibilitar a morte! Na prática, vemos que pacientes deprimidos sobrevivem, suicidas sobrevivem e também morrem, pessoas com vontade de sentido de vida lutam e sobrevivem, mas também muitos lutam e morrem independentemente dos seus humores e credos... A tonalidade afetiva pode parecer como uma possibilidade de saída, e na verdade não é!

Heidegger, pensando sobre o homem e sua existência angustiada por ser um ser-para-a-morte, nos faz compre­ ender também que, ao se confrontar com um adoecimento grave, o paciente pode se perceber com essa vulnerabili­ dade que é a mais original, radical e extrema e que coincide

com a concretude da fragilidade física em que se encontra. E assim, no hospital, a descontinuidade existencial provo­ cada pelo imprevisto faz emergirem a angústia originária e a percepção da finitude humana. Com isso queremos dizer que a equipe se surpreende e vivência um sofrimento, na maioria das vezes velado, no encontro com a dor do outro e a finitude da vida.

(...) a fragilidade do paciente desperta essa per­ cepção na equipe, ainda que em instantes, porém de modo tão intimamente afetado, no extremo da afetabilidade pela concretude crítica, dando- se conta da sua condição como impossibilidade de ter à mão a finitude que lhe escapa. A equipe se defronta com a perda do controle daquilo que acredita: seu poder de controlar a morte. (SOU­ ZA, 2003, p. 129)

Trazemos fragmentos de narrativas: “ (...) veja: está todo mundo cuidando da parte física do doente, e a parte física está falhando... e aí é grave e vai... vai e começa a dar pra frente. O que foi que se passou? E outros nao consegiiem... vai embora! (óbito)”

“Eu nunca descobri, do ponto de vista clínico, porque estava tudo certo com ele... e ele não responde... (...) Não entendo... o que esse cara tem!... (...) aí complica... porque clinicamente esse cara não tem nada que o levasse a isso, até a morte!”

Compreendemos, então, que na cotidianidade da exis­ tência, sobretudo no hospital, vivemos na impropriedade, abrigando a angústia no suposto saber/fazer. Essa angústia, que poderia ser paralisante, transforma-se em sentido de ser pelo cuidado. Esse movimento é uma possibilidade de conviver serenamente com a angústia da finitude humana. Revela-se, finalmente, a vividação, pela imponderabilidade

do incontornável, no limite com que o outro se apresenta e com que nos apresentamos entre todos (Ibid., p. 130).

No pensamento heideggeriano, cuidado é o modo de aplacar o sofrimento de ser-para-a-morte. Ser-em implica múltiplas ocupações, por ser cuidado a estrutura geral da existência humana. Por outro lado, ser-com é o ser da preo­ cupação, que nada mais é que ocupação dirigida para o outro, isto é: cuidar do outro, cuidar daquilo que esco­ lhemos para nossos cuidados. Acreditamos assim que em nosso cotidiano nas enfermarias somos cuidadores por assumirmos, com nossos pacientes, atitudes de soli­ citude, preocupação e responsabilidade — o outro em Heidegger.

Seguimos refletindo sobre o que nos dizem as narrativas, revelando sentidos e ressoando a outra dimensão da nossa prática. Um dos depoimentos mostra a compreensão do sentido do trabalho da equipe junto ao depoente: “ (.„) ^

a medicina... não é?... foi muita dor!... E assim mesmo! Vocês cuidaram de mim...” Nossa compreensão, à luz de Heidegger, agora aponta novo sentido: afetado pelo cuidado recebido, cuidou da sua condição como ambigüi­ dade. Cuidado e cuidando de si apontam outro sentido à nossa prática, qual seja: o cuidado como modo de ser na angústia, respondendo ao que nos afeta e tomamos para a nossa responsabilidade. Por essa compreensão,

na trama trágica do paciente grande queimado, somos espectadores do que ele nos aponta diaria­ mente: que ainda é tempo para olhar a nossa pró­ pria trama. Só à luz da morte a vida fez sentido. (...) por sermos finitude radical, encontramos em nossas atividades, isto é, em nossas tarefas cotidia­ nas, um modo de preencher o vazio do nada que somos. (SOUZA, 2003, p. 132)

E assim, ao lado e cuidando do paciente, passamos a elaborar a experiência da nossa fragilidade, de como a vida é um sopro, só nos restando compreender a morte como possibilidade que valoriza a vida e que, num instante, tudo pode findar:

O findar implicado na morte não significa o ser e estar-no-fim da pré-sença, mas seu ser-para-o- fim. A morte é um modo de ser que a pré-sença assume no momento em que é. (HEIDEGGER, 1999, p. 26)

Tudo isso nos leva a uma ressignificaçao do sentido da existência do ser-aí, dos relacionamentos, da convivência

(ser-com), das atitudes (do ser-si-mesmo) que só a perspec­

tiva do ser-para-a-morte pode despertar. Uma compreensão nao para a vida cotidiana, mas que diz respeito ao viver mais autêntico, encontrando sentido no exercício da alte- ridade.

Procurando entender alteridade: a palavra vem do latim - alter- e significa outro, condição de fazer-se diferente. Nossa tarefa ética é o cuidado que diz respeito também a uma equipe, que não é apenas solidária e assistên cia- lista, mas que consegue ter a coragem de ser si mesmo cuidando do outro. Coragem de enfrentar a dor, a deformi­ dade e a morte do outro, que aponta para a nossa condíça0 humana.