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Assim como o corpo — respondiam os doutos — assi­ mila e retém as diversas diferenças vividas durante as viagens e volta para casa mestiçado de novos ges­

tos e de novos costumes, fundidos nas atitudes e fun­ ções a ponto de fazê-lo acreditar que nada mudou para ele, também o milagre laico da tolerância, da neutralidade, indulgente, acolhe, na paz, todas as aprendizagens, para delas fazer brotar a liberdade de invenção e, portanto, de pensamento.

Michel Serres Talvez alguém já tenha se perguntado algo semelhante, de diferentes formas: “como posso aprender a ser psicó­ logo clínico?”; “quais habilidades tenho que desenvolver?”; “como saber se o que faço é específico da Psicologia e não de outra área?” . São inquietações comuns a pessoas em processo de formação que, ouso dizer, não costumam ser tranqüilizadas com facilidade.

Falo com propriedade sobre o assunto por esse desas­ sossego também ter me acompanhado durante minha formação em Psicologia, o que fez emergir meu tema para pesquisa, quando ingressei no curso de mestrado. Algo me moveu na direção de compreender melhor como nos tornamos psicólogos clínicos, porém não em termos buro­ cráticos e institucionais. Não que a burocracia e a insti­ tuição não façam parte desse processo (e como fazem!), tnas o chamado ao qual atendi foi a parte obscurecida

*Artigo originado da dissertação de mesmo título sob orientação do Pro­ fessor M arcus T ú lio Caldas.

no oficial e tao luminosa no oficioso: a experiência como fenômeno humano, algo que acontece em torno do dizível e do indizível, que nos permeia de forma articulada, como peças de uma engrenagem.

O presente capítulo deriva de minha dissertação de mestrado, cuja pesquisa foi norteada, justamente, pela questão “como nos tornamos psicólogos clínicos?” (CARNEIRO, 2006). A pesquisa iniciou com uma busca intensa e interna de como olhar melhor para essa questão, de forma que ela pudesse ser vista em suas várias facetas. Como uma viajante que pára em determinados trechos do caminho, me deparei com a formação em Psicologia, pois olhar para a Psicologia clínica provoca esse espelhamento. Nesse sentido, comentar acerca da estrutura curricular dos cursos de Psicologia faz-se necessário, na medida em que fornece um contexto para a questão norteadora.

A referida estrutura vem sendo reavaliada há algum tempo. Sabe-se do grande esforço efetuado para encontrar meios de adequar a formação acadêmica à realidade fora dos muros da universidade. Os alunos têm conhecimento de que a reforma curricular está em andamento, porém muitos terminam o curso sem terem, de fato, vivenciado essas mudanças.

Dessa forma, a pesquisa em campo da qual surgiu o presente capítulo foi realizada num período (ano 2005) em que o currículo se apresentou defasado, contendo diversas teorias e correntes psicológicas que pareciam não se articular, além de refletirem a falta de disciplinas que demandem a prática e não apenas a teoria.

Essa realidade, que persiste até hoje, parece não ser exclusiva da região pesquisada (João Pessoa/PB). De modo

geral, percebe-se que, embora haja uma certa diversidade curricular, no que se refere aos tipos de disciplinas ofere­ cidas pelas instituições formadoras, há um modelo comum que obedece a uma concepção de ciência dominante na contemporaneidade. E dado um privilégio ao conheci­ mento num nível informativo e cumulativo, através de disciplinas essencialmente teóricas, que funcionam como se fossem uma aproximação sucessiva da verdade cientí­ fica e uma etapa preparatória para a aplicação da prática em Psicologia.

Esse modelo não é uma exclusividade do curso de Psico­ logia, visto que a universidade desde a modernidade é prioritariamente dedicada à pesquisa, colocando a raciona­ lidade técnica e eficiente como base para essa instituição. Schõn (2000, p. 19) afirma que, no início do século XX, houve uma corrida das várias profissões para a obtenção de prestígio através do meio acadêmico, de modo que o currí­ culo normativo incorporou a idéia de que “a competência prática torna-se profissional quando seu instrumental de solução de problemas é baseado no conhecimento siste­ mático, de preferência científico”. Conseqüentemente, a norma curricular foi estabelecida de modo a seguir uma ordem: primeiramente a ciência básica, em seguida a ciência aplicada e, por último, o ensino prático, no qual se presume que os alunos possam finalmente desenvolver suas habilidades aplicando o conhecimento acumulado nos anos anteriores.

Além de confirmar a cisao entre a teoria e a prática, essa estruturação curricular implicitamente carrega a noção da necessidade de um conhecimento prévio para uma poste­ rior atuação. Esse adiamento da prática dificulta a possi­ bilidade de construir um saber engendrado com a expe­ riência. Há uma lacuna entre o conhecimento ensinado e a descoberta de si mesmo, que o processo ensino/apren- dizagem contém.

Em se tratando da Psicologia, vale lembrar que ela tem- se configurado, no decorrer de sua história, como uma ciência abrangente em termos teóricos e metodológicos. Vemos-nos diante de diversas correntes psicológicas, que ora se complementam, ora se contradizem.

- * *É atravessado por essa multiplicidade que o estudante de ^Psicologia precisa cumprir a exigência de ter uma filiação teórica e uma coerência lógica que o direcionem para o momento final do curso, que é o do estágio supervi­ sionado, onde ele acredita que poderá pôr em prática o conhecimento acumulado nos anos anteriores.

*'Isso remete à expectativa que o momento da prática carrega. É a partir desse instante que se abre a possibilidade

de o aluno compreender que a inclusão de sua subjetivi­ dade em sua prática será o principal elo com a teoria. Dito de outra forma, ele perceberá que o principal instrumento de trabalho do psicólogo é ele próprio.

Sabe-se que a teoria e a prática se encontram asso­ ciadas em qualquer área de atuação, ora se corroborando, ora se desafiando. A prática acontece como um ponto de mutação, pois o aluno compreende que sua inserção transforma seu campo de atuação ao mesmo tempo em que ele próprio é transformado. A medida que passa a se incluir no universo teoria/prática, pode dar um novo significado a ambas.

Portanto, a prática do psicólogo clínico não supõe uma neutralidade, e sim uma instrumentalização por parte desse profissional, instrumentalização essa que acontece através do seu fazer e da sua reflexão sobre esse fazer.

No contexto da formação em Psicologia, o espaço oficial para realizar essa reflexão, no sentido etimológico da palavra, como um “fazer retroceder”, é a supervisão. Nesse sentido, o espaço da supervisão faz-se necessário, como vemos em Morato (1999, p. 71):

Sem dúvida, é na consecução dessa prática que a transmissão dos conhecimentos e ensinamentos teóricos e técnicos é garantida. Surgem os impas­ ses e entrecruzamentos com a questão da forma­ ção de psicólogos, reconduzindo a outras articu­ lações entre teoria e prática na Psicologia clínica. E através da supervisão e no exercício de estágios profissionalizantes que o ofício e a aprendizagem dos conceitos teóricos e do manejo das técnicas se efetivam. Nesse contexto é que reside a possibili­ dade de mais uma vez a prática poder ser traída na especificidade do seu fazer e tornar-se incon­ gruente com seus fundamentos originários. A supervisão torna-se essencial para a formação do psicólogo clínico, visto que se tornou o único espaço

oficial, dentro do curso de Psicologia, em que o aluno

tem a possibilidade de refletir sobre o seu próprio fazer, e não sobre o fazer de outro. E a partir daí que há uma aber­ tura para um verdadeiro engendramento teórico. Verda­ deiro porque próprio, porque implica uma descoberta: na descoberta de si mesmo, provocada pelo processo ensino- aprendizagem.

Com esse discurso, não pretendo colocar a prática num lugar privilegiado, em detrimento da teoria, senão estarí­ amos caindo no mesmo erro de novamente separar uma

da outra, ou de meramente inverter a ordem do que deve ser mais importante. Reflito apenas que a prática abre possibilidade para se compreender a teoria de um outro lugar, como veremos posteriormente.

Pensar a estrutura do curso de Psicologia me serviu como contexto para entender melhor como nos tornamos psicólogos clínicos. Pude bifurcar os caminhos da busca, de modo a encontrar ressonâncias de minha compreensão em vários autores, o que me ajudou a trilhar os caminhos a seguir.

A EX PER IÊN C IA V ISTA COM