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Não, não é fácil escrever. E duro como quebrar rocbas. M as voam faíscas e lascas como aços espelhados.

Clarice Lispector

Diários são marcas em forma de escrita - depoimentos rememorados. Escrever é comunicar, é narrar. Um Diário de Bordo é feito por um protagonista, a próprio punho, disposto a compartilhar uma experiência. Comuni­ cando algo vivido e sentido, um diário é como um tecer de muitas histórias interligadas. Histórias estas também tecidas por entre outras narrativas. Mas narrar é também deixar sangrar, recordando palavras que se deixaram marcar como estilhaços de vidro ainda cortantes.

Nas palavras de Clarice: “Não, não é fácil”, porém faz- se necessário lançar “faíscas e lascas como aços espelhados”'. narrar é preciso. A narrativa é necessária; é história, e história, para ser história, precisa ser contada, comparti­ lhada. E o compartilhar, o dizer, é a própria condição do existir do ser homem. Não, não éfácil. Não é fácil porque não são quaisquer faíscas e lascas que voam pela recor­ dação; são faíscas e lascas como aços espelhados. Aços que, pela característica de espelhados, contemplam o refletir, o mostrar, o anunciar, o denunciar: o mundo em torno, os outros, nós mesmos.

Assim, Diários de Bordo não são apenas possibilidade de restituição da historicidade de uma pesquisa; são, também, o narrar a biografia da experiência de um profissional, na perspectiva de quem comunica como ocorreu o revelar-se do outro a esse profissional/pesquisador. Embora única, sua biografia contempla as diversas outras que a ela se entrela­ çaram. É desse modo que tal forma de registro transpassa um simples relatório descritivo; diz da experiência vivida de cada um, sem que nela tudo se exiba pelo “mesmo

estatuto; os agoras cercam-se dos ‘já nao’ que assinalam o que há de trânsito e pode haver de perda e de imprevisto” (FIGUEIREDO , 1997, p. 10), desvelando o modo de ser humano numa temporalidade outra, não-cronológica. Escrever diários são momentos de criação de sentido, teste- munhando-se como registro plural e único.

A Psicologia clínica remete à narrativa de sujeitos sociais como registro dessa experiência, plural, única, extempo­ rânea a posteriori. “Tendo como fonte o vivido ou a expe­ riência direta”, a narrativa “torna todos, e cada um, autori­ dade, no sentido de que cada um, e todos, enquanto porta­ dores do vivido, estão autorizados a falar: faz circular a palavra, concedendo a cada um e a todos o direito de ouvir, de falar e protagonizar o vivido e sua reflexão sobre ele” (MORATO e SCHM IDT, 1999, p. 127). Contudo, para Figueiredo (1998), a questão crucial posta por Benjamin diz da precariedade da experiência como narratividade, tanto como sabedoria transmissível quanto como vivência íntima afetiva. Mas, ainda que considerando tal problema- tizaçao da presentificaçao da realidade na experiência do “contar”, seria possível tomar um Diário de Bordo como a autenticação de cada autor, marcada a próprio punho em sua narrativa, do plural e único vivido e sentido.

Privilegiando a experiência humana como criação de sentido para o sujeito, e considerando sua constituição em situações, uma forma de contemplá-la é por diários de bordo como depoimentos colhidos através da sua escrita. Para isso, recorre-se à narrativa como forma de expressão afinada com a pluralidade de conteúdos da situação e da temporalidade outra, apresentando-a como possibilidade para elaborar e comunicar (SCHMIDT, 1990) o sentido da experiência vivida, a partir de evocação ambígua de si em si mesmo, entre as brechas de ausências presentes (FIGUEIREDO, 1998).

Um diário é narratividade, o modo próprio de se dizer do homem, lançando-se de seu repouso em direção ao sentido de si mesmo, como ação de dizer. Diferentemente da narrativa oral, o diário de bordo imprime marca dos vestígios do vivido pelo escrever. Para Amaral (2000), uma escritura torna-se independente de seu autor e, ao mesmo tempo em que marca essa ausência, funda um outro tipo de presença: a possibilidade de se dar a ver como sentido originário. Dessa forma, o texto pode ser compreendido como trânsito: nem passado nem presente; é possibilidade, aguardando trilhas outras a serem abertas, futuras interpre­ tações, como outras marcas possíveis a serem deixadas.

E precisamente pelas aberturas deixadas por cada diário lido que se fez um convite para basear o método desta

investigação: in (por dentro) + vestigium (vestígios). Já do grego méthodos, método refere-se ao caminho trilhado para encontrar algo. Dessa forma, pretendo percorrer os traços f de diários de bordo, per-correr os riscos: correr risco. 1 Durante um curso ministrado no Instituto de Psicologia \

da UERJ, René Lourau (1993) expôs algumas considera­ ções sobre sua investigação acerca do Diário da Pesquisa. Segundo o autor, o reconhecimento e validação da insti­ tuição acadêmico-científico de um pesquisador tornam inseparáveis a pesquisa de sua redação. Entretanto, essa 1 escritura marginal - o diário que restitui “não o como !

fazer das normas, mas o como foi feito da prática” (p. 77, i destaques do autor), é excluída da produção de um texto que precisa ser legitimado institucionalmente. Isso acon­ tece porque o diário seria aquele que denuncia a intimi­ dade do autor e, portanto, deve ser recusado pela ciência. 1 Dessa forma, “a escrita quase obscena, violadora de neutra- 1 lidade” (p. 71), foi nomeada por Lourau como fora do i-

texto, uma redação marginal, uma escrita colocada fora de \ cena da oficial escritura.

Em suas investigações, Lourau (1993), ao ler os diários secretos de Wittegenstein, publicados clandestinamente, notou que trechos de suas obras publicadas foram deri- 1 vados ou são passagens inteiras dessas anotações. Ao se I ” referir ao Diário de Ferenczi, publicado meio século depois j de sua escrita, comenta como continha relatos impres- sionantes que surpreenderam a própria psicanálise, insti- tuição baseada em não-ditosou inter-ditos. “Em seu diário, Ferenczi diz coisas que nao deve dizer” (p. 73). Escrito em 1 seu último ano de vida, o diário anunciava um distancia- f mento de Freud e desvelava seus sentimentos e dúvidas h; em sua experiência com a análise mútua. Lourau (1993) n

ainda adverte que: (

A vivência mais íntima do pesquisador se encon­ trar em contradição com seu texto institucional, ou com as suas posições políticas, é algo muito * incômodo. Então é preciso salvar a imagem não- 1 contraditória do pesquisador e, conseqüentemen- t te, da pesquisa. É preciso negar a contradição exis- | tente nele, em nós e em todos. E preciso, ainda, ^ recorrer à lógica identitária, numa óbvia recusa a quaisquer análises desnaturalizadoras (institucio­

nais). (p. 73) ^

\

Tal lógica identitária é resultado da tradição c ie n t íf ic a |

ocidental, na qual se criaram as diversas crenças daquilo ^ que seria o ser, confinando o mundo numa única inter- .

pretação, estreitando sentidos, limitando possibilidades do pensar, do indagar, indicando uma verdade única e abso­ luta (H EID D EG ER, 1927). Para Nancy Unger (1991), o Ocidente, na história do conhecimento, opera uma ruptura que aprisiona o sentido no significado, o múltiplo no uno, instalando uma dicotomia entre homem (sujeito) e mundo (objeto). Tal de-cisao histórica exclui a ambigüi­ dade tensional inevitável entre razão e mistério, ciência e poesia, negando, por anulação, a incerteza como também possibilidade verdadeira.

A perspectiva fenomenológica existencial encontra, pela tensão, um modo de recuperar o olhar da perplexidade: a irrupção do oculto, do mistério insondável, enigmatica­ mente provocando o descentramento desse olhar. Olhar de espanto encontrando híbridos, mesclados e mestiços fora e dentro de si mesmo. Segundo Figueiredo (1995), desvela o olhar plural, que toca e é tocado, simultanea­ mente vê e é visto por todos iguais/diferentes: reflexividade plural-única, expondo toda a singularidade como sujeito, captando-se pela diversidade da alteridade.

Ao recorrer a Diários de Bordo como vestígios pelos quais se percorre uma investigação, recuperam-se modos constituintes de subjetivação singularizada. Como num jogo de espelhos, busca-se uma reflexão compreensiva do sentido operante nos autores/atores participantes do espe­ táculo, partindo do próprio encontrar-se (experienciação e elaboração da experiência) para comunicar o vivido como um acontecimento. Recupera-se o sentido da experiência através da narrativa, também como forma de comunicação social e transmissão de saberes coletivos, através da qual a palavra circula sem o aprisionamento da fala especializada (BENJAMIN, 1985).

O diário é um exercício cotidiano de escrever sobre o cotidiano. É o momento de escritura aberto para o singular, para a criação - construção e desconstrução. É um jogo reflexivo de espelhos. No romance de Lewis Carroll, o espelho mágico de Alice permite o andar no sentido inverso, o se perder na própria identidade ou na busca de uma redireçao. Mas qual o inverso de um jogo de espelhos? Ao mirar espelhos, não será somente contemplada nossa imagem: “vemos refletidos nós e outros, ou melhor, em nós os outros e nos outros nós mesmos”. Uma mistura que aponta para a comunicação e diz de um “entrelaçamento entre observador e imagem, nós e os outros, e da disposição estética das mútuas mudanças, resultantes” (MORATO et al., 1999. p. 232).

E é nesse jogo de imagens que surgem as lascas de aços espelhados, referidas por Clarice para a ação de escrever...

Entretanto, devo acrescentar que muitas lascas tornaram a voar no momento de revisitar:

O que sao diários? São uma ou duas, às vezes nove, dez páginas escritas. São muitos... são densos. Al­ guns escritos à mão, outros impressos em folhas de rascunho: rascunhos... rascunhos de medos... desabafos... encontros... rascunhos de um grito. Tenho aqui esparramadas centenas de folhas... mi­ lhares de palavras! Como podem dizer tanto? En­ tre linhas tenho ora um nó na garganta, ora um sorriso nostálgico.

Coragem a nossa! Como pudemos propor ao ou­ tro (tantos outros) a entrada neste labirinto! Começo com as primeiras impressões. Trilha so­ nora: Pulp Fiction.

Agora, a trilha sonora de Blue traz o som do gri­ to embotado daqueles que passaram pela unida­ de invasora de todos os territórios. Sentimento: culpa!3

Denunciador de angústias e momentos de desamparo na e da prática, o diário relata sentimentos e dúvidas provocados pela arriscada experiência do encontro. Assim, recorrer aos diários de viagens para reconstituir a expe­ riência vivida da prática abre brechas para se mostrarem, em entrelaçares espelhados, também os lugares por onde protagonista/viajantes, deste e de outros tempos, passaram e as aventuras que viveram.

OS T E R R IT Ó R IO S DE UMA