• Nenhum resultado encontrado

3 COMPREENDENDO OS PLANOS NARRATIVO E DISCURSIVO

3.2 Nível discursivo: textos e discursos em Once upon a time

3.2.4 Intertextualidade: significações de histórias clássicas

3.2.4.9 Alice no País das Maravilhas

Alice no País das Maravilhas é uma obra infantil de autoria do britânico Lewis Carroll (pseudônimo de Charles Ludwidge Dodgson), datada de 1865. A história (CARROLL, 2013) inicia com Alice entediada passando o tempo com sua irmã, quando vê correr por ela o Coelho Branco. Alice, então, o segue e cai em sua toca. Ali, passa por várias mudanças de tamanho, desde muito pequena após beber a garrafa com os escritos “beba-me” até enormemente gigante assim que come o bolo com os escritos “coma-me”. Em seguida, passa a presenciar variadas situações. Entre elas, Alice encontra uma Lagarta Azul sentada em um cogumelo fumando tranquilamente seu narguilé. Ela aconselha a menina a comer pedaços do lado direito e do lado esquerdo do cogumelo, fazendo a menina retomar seu tamanho normal. Presencia, em seguida, a cozinheira atirando pratos e frigideiras contra a Duquesa. Nisso, encontra o Gato de Cheshire com quem tem uma conversa sobre todos serem loucos ali, ao final da qual ele sugere a ela que vá visitar o Chapeleiro Maluco. Com isso, o bichano desaparece lentamente até sobrar apenas seu sorriso. Chegando ao chá dos loucos, protagonizado por Chapeleiro Maluco, Lebre de Março e Arganaz, Alice se sente cansada de

ser bombardeada de enigmas. Saindo dali, ela finalmente consegue alcançar o lindo jardim que era de seu interesse. Chega bem no meio de uma partida de críquete entre a Rainha de Copas e seus súditos, para a qual é convidada/ordenada. Mas logo a partida vira uma grande confusão, e a Rainha de Copas ordena que o Gato de Cheshire seja decapitado, ordem a que o capataz se recusa a cumprir: “onde já se viu cortar uma cabeça sem corpo?”. A Rainha de Copas, então, apresenta Alice ao Grifo, que, por sua vez, a introduz à Tartaruga Fingida. Os três – Alice, Grifo e Tartaruga – cantam, dançam e recitam poemas e são interrompidos pelo início do julgamento: o valete de Copas está sendo acusado por ter roubado tortas. Dando início à audiência, o Rei cita o artigo que diz que todas as pessoas com mais de uma milha de altura devem deixar o recinto. Alice contesta e gera uma discussão que é encerrada com a ordem típica da Rainha: “Cortem-lhe a cabeça!”. Mas Alice, que começou a crescer novamente desde o início do julgamento, não teme, por ser mais alta, e ainda menospreza-os afirmando que são todos apenas cartas de um baralho, ao que todos se revoltam e começam a atacá-la. Nisso Alice é despertada por sua irmã para ir tomar o chá.

Para colocar um contraponto, como nos demais contos, pontuamos algumas das principais diferenças apresentadas pela versão de Alice no País das Maravilhas em filme de animação da Disney (1951). Ela insere plantas e animais fantasiosos, oníricos, assim como introduz a maçaneta falante da porta que Alice tenta passar para entrar no País das Maravilhas. Enquanto, no livro, Alice participa como testemunha no julgamento em que o Valete de Copas é acusado de ter roubado tortas, no filme, a própria Alice é a acusada pelo inadmissível crime de ter zangado a Rainha de Copas no jogo de críquete, levando-a a perder a paciência. O Coelho Branco é, no filme, um agente da Rainha, o que não condiz com o original. O capítulo do chá de loucos, em ambos os casos, traz os três mesmos personagens: o Chapeleiro Maluco, a Lebre de Março e o Arganaz; a diferença é que a cena de desaniversário encenada durante o chá não existe no livro.

No Reino Encantado de Once upon a time, a história construída a partir do texto de Alice no País das Maravilhas (CARROLL, 2013) gira em torno do personagem Jefferson, que equivaleria ao Chapeleiro Maluco no original. A série não mostra, mas deixa a entender que, por deslize de magia sua, Jefferson perdeu sua esposa. Aparentemente, ele era um homem mais rico que vivia de magia. Porém, desde sua perda, vive uma vida mais simples com sua filha, Grace, e sem usar de magia. Em um determinado dia, porém, a Rainha Má procura por Jefferson solicitando que ele use sua cartola mágica uma última vez, porque ela precisa se transportar para o País das Maravilhas para resgatar algo. Primeiramente, ele resiste, mas cede com a proposta de que sua filha não passe por privações dali para frente. Assim sendo, Rainha

Má e Jefferson são transportados para o País das Maravilhas através do portal aberto pela cartola de Jefferson. Ali, Rainha Má resgata um baú que supostamente teria o coração de seu pai e o alimenta com um pedaço de cogumelo do jardim da Rainha de Copas, e nisso seu pai ganha forma. Rainha Má havia armado para Jefferson. Sabendo da regra da cartola de que a mesma quantidade de pessoas que entra no País das Maravilhas deve sair dele, Rainha Má apenas usou Jefferson por interesse em seus poderes. Rainha Má e seu pai, portanto, rapidamente atravessam novamente o portal de volta ao Reino Encantado. Jefferson, por sua vez, fica preso no País das Maravilhas. Ali, é julgado pela Rainha de Copas por ser responsável por ajudar a Rainha Má em roubo e tem sua cabeça cortada. Respondendo a algumas questões, ele tem sua cabeça de volta, e a Rainha, então, sentencia que ele deve fazer uma cartola mágica que funcione para que ele possa retornar a sua terra. Jefferson passa dia e noite dedicando-se à feitura de uma cartola que tenha êxito.

Enquanto isso, no Mundo Real da série, a história construída a partir do texto de Alice no País das Maravilhas (CARROLL, 2013) está centrada na pessoa de Jefferson. Ele afirma que sabe da existência da maldição, porque a sua maldição particular é justamente ter memória dos tempos passados no mundo dos contos de fada, consciência que o deixa muito perturbado. Tem ciência de que não pertence aquele mundo, sente-se sozinho e sabe que teve uma filha no outro espaço-tempo que, agora, no Mundo Real, é Paige, que tem outros pais e não se recorda de sua vida com Jefferson no Reino Encantado. Seu maior desejo é retornar a sua terra de origem; por isso, vive dedicado à feitura de cartolas que possam funcionar. Sem êxito até então, em determinada ocasião, prende Emma, que acredita ser a suposta salvadora da cidade que teria, portanto, poderes para construir uma cartola mágica. Jefferson lhe anuncia que a manterá presa até que faça uma cartola que funcione. Enquanto isso, ela consegue distrai-lo, e, em uma luta física, ele cai da janela e, ao alcançar o chão, desaparece, sobrando apenas a sua cartola. Esse fato deixa a entender, portanto, que a cartola funcionou e abriu um portal para outra dimensão espaço-temporal para o qual Jefferson foi deslocado.

Reduzindo todo esse panorama de sentidos, para melhor visualização, temos como resultado um pequeno quadro (Tabela 3), em que apresentamos tanto os (novos) sentidos que os contos originais ganham no Reino Encantado de Once upon a time, que seria o que chamamos de primeiro grau de significação, quanto (novos) contornos que os contos ganham no Mundo Real da série, que seria para nós o segundo grau de significação.

Tabela 3 – Primeiro e segundo graus de significações em Once upon a time

Conto original Sentido original 1o grau de significação 2o grau de significação João e Maria União familiar por

esforço próprio.

União familiar por esforço próprio.

União familiar com ajuda externa. Cinderela/A Gata

Borralheira

Mudança de vida, com uso de magia, por merecimento, por ter um bom coração.

Mudança de vida, com uso de magia, que vem com um preço a ser pago. Mudança de vida conquistada com esforço próprio. Chapeuzinho Vermelho Aquisição de aprendizado de esfera fantástica. Aquisição de aprendizado de esfera fantástica. Aquisição de aprendizado no mundo do trabalho. Aladim e a Lâmpada Maravilhosa Realização de desejos. (aqui o personagem principal é Aladim) Prisão literal, em objetos mágicos (lâmpada e espelho). (aqui o personagem principal é o Gênio)

Prisão metafórica, aos sentimentos por alguém.

(aqui o personagem principal é o “Gênio”) A Bela e a Fera Aceitação do amor

verdadeiro, que transcende a aparência física. Negação do amor verdadeiro em nome do poder. Arrependimento por não viver o amor verdadeiro.

Branca de Neve Triunfo do amor verdadeiro.

Triunfo do amor verdadeiro.

Triunfo do amor verdadeiro. Rumpelstiltskin Realização de favor

de ordem mágica, com um preço a ser pago.

Realização de favor de ordem mágica, com um preço a ser pago.

Realização de favor, sem uso de magia, com um preço a ser pago.

As aventuras de Pinóquio Honestidade. Honestidade e cumprimento de promessa. Cumprimento de promessa.

Alice no País das Maravilhas

Enxergar o mundo com olhos de criança.

A loucura. A loucura da lucidez.

Fonte: Dados coletados e organizados pela pesquisadora, 2016.

Sobre essa tabela (Tabela 3), quando estabelecemos primeiro e segundo graus de significação, referimo-nos a graus de significação de contos de fada dentro do texto de Once upon a time. Assim, desse quadro, podemos depreender algumas considerações. Sobre o arranjo em cima das histórias de João e Maria, Chapeuzinho Vermelho e Rumpelstiltskin, podemos dizer que o sentido se mantém do conto original para o primeiro grau de significação (Reino Encantado da série), e, por sua vez, modifica-se deste para o segundo grau de significação (Mundo Real da série). No trabalho realizado com base nas demais histórias, a ressignificação já se dá logo no deslocamento do texto-fonte (dos contos de fada)

para o Reino Encantado da série, ou seja, já no primeiro grau de sentidos, e, depois, o discurso se ressignifica novamente na passagem para o segundo grau de sentidos. De todo modo, em ambas as situações, quando o Mundo Real da série (segundo grau de significação) se refere ao conto de fadas, já o faz a ele ressignificado no primeiro movimento de mudança de sentidos.

Quando essa transformação acontece no primeiro grau, pode ser mais sutil, como no caso das releituras de Cinderela e de As aventuras de Pinóquio, ou trabalhar com sentidos completamente diferentes, como no caso das releituras de Aladim e a Lâmpada Maravilhosa, A Bela e a Fera e Alice no País das Maravilhas. Em A Bela e a Fera, especificamente, percebemos um trânsito interessante: do original para o primeiro grau de significação do conto na série, notamos a total negação do sentido original: a negação do amor romântico, que acontece no texto-fonte. A consequência dessa negação nesse grau, ou seja, seu arrependimento, por fim, é o sentido que emerge do segundo grau de significação do conto na série.

A exceção a todos esses casos se dá no que tange ao discurso trabalhado a partir do conto de Branca de Neve. Entendemos que, nesse caso, o sentido se mantém constante do início ao fim do fluxo intertextual: do conto original para o Reino Encantado, e deste para o Mundo Real, o mesmo significado de apologia ao amor verdadeiro é mobilizado. Essa constância parece ter razão de ser, porque faz referência justamente a um dos sentidos que a série mais deseja reforçar, sobre o triunfo do amor verdadeiro; preservando-o, corrobora-o.

Por fim, à parte de todas essas ordenações, temos que a valorização da família, a possibilidade de mudança do status quo, a apreciação do aprendizado, o elogio à liberdade individual, a importância do cumprimento de promessas e, obviamente, o reconhecimento do amor verdadeiro afloram como os sentidos centrais manifestados nesse trânsito intertextual; com seus devidos desenhos, com e sem a esfera mágica, respectivamente, no Reino Encantado e no Mundo Real de Once upon a time.