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Primeiro momento: entendimento do objetivo e origem do texto cultural

4 COMPREENDENDO O PLANO IMAGÉTICO

4.1 Um método de análise audiovisual

4.1.1 Primeiro momento: entendimento do objetivo e origem do texto cultural

Esse primeiro momento abrange compreender o objetivo e o lugar de origem do produto midiático em estudo. Julgamos que já viemos tratando das questões do primeiro momento da análise audiovisual proposta por Pink (2008) ao longo de todos os nossos escritos até aqui, desde nossa primeira página (especialmente no primeiro capítulo, estritamente dedicado a uma descrição da série), mas convém o ratificarmos e complementarmos sinteticamente. Quanto à sua origem, Once upon a time é uma cocriação de Adam Horowitz e Edward Kitsis, ambos escritores/roteiristas de séries de TV norte- americanas e produtores de televisão. Além de criarem/escreverem, são produtores executivos de alguns dos programas dos quais fazem parte. Trabalharam juntos como escritores em várias séries de TV anteriores, com destaque para Lost (2004-2010), que foi a de maior repercussão e para a qual escreveram juntos alguns episódios. E, de fato, Once upon a time mantém algumas semelhanças em termos de construção narrativa com Lost (ABRAMS, 2016): ambas têm suas tramas se intercalando em dois espaços-tempos distintos (no caso de Lost, a ilha e o fora da ilha); as duas trabalham a todo momento com flashbacks; e cada uma a seu modo incorpora referências externas à série. Aliás, Once upon a time faz uso de elementos que citam a própria série Lost. Por exemplo, quando em determinado episódio (5o episódio, That still small voice), Dr. Archie encontra fora da entrada da mina uma barra de chocolate da marca Apollo, marca de chocolates fictícia criada para a série Lost, ou quando, no 6o episódio (The shepherd), Emma e Mary Margaret bebem um uísque da marca MacCutcheon, marca fictícia de uísque escocês que aparece ao longo de Lost. Enfim, as duas séries trabalham desse modo, inserindo informações vinculadas a outros universos. Inclusive, podemos dizer que Lost foi uma das primeiras séries televisivas recentes (ou a primeira série) a fazer essa brincadeira de forma tão intencional e promovendo mesmo um convite para os espectadores embarcarem nesse jogo de procurar pistas, vestígios e referências entre os episódios. É um jogo a que Once upon a time dá continuidade. Nos primeiros posts publicados no site oficial da série hospedado junto ao site da ABC, é possível ver o quanto a série incita aos espectadores para que vasculhem os episódios em busca de intertextos, referências e citações/alusões. O post de 5 de dezembro de 2011, referindo-se ao sexto episódio da primeira temporada (The shepherd), diz exatamente assim:

O mundo de Storybrooke não é bem o que parece. Se você olhar de perto, você pode encontrar pistas escondidas sobre um outro mundo, ou mundos. No episódio “The shepherd”: Emma e Mary Margaret bebem o whisky MacCutcheon. Esta é uma marca fictícia de uísque escocês usado ao longo da série Lost. Há muitas referências

a contos de fadas na Casa de Penhores de Mr. Gold, incluindo as duas marionetes dos pais de Geppetto vistas no episódio "That still small voice" e o móbile de unicórnio do berçário de Branca de Neve e Príncipe Encantado visto no episódio "Pilot". Mas isso não é tudo o que havia para descobrir neste episódio. Se você acha que encontrou um outro segredo oculto de Storybrooke, compartilhá-lo com outros fãs nos comentários abaixo. Você nunca sabe quem pode estar assistindo. (DOVE, 2011f, tradução nossa).29

Esse não é o único post nessa linha; há uma variedade de posts que, efetivamente, fazem um convite para que o público descubra as referências com as quais a série trabalha (o que reforça a pertinência de nosso olhar sobre ela a partir da noção de intertextualidade). Mais ainda, além de convocar para que o público encontre essas citações/alusões, em tempos de forte presença das redes sociais digitais, a produção da série faz uma solicitação para que partilhem as descobertas na internet, uma vez que ela tem se mostrado um espaço efervescente para as trocas de conteúdo entre fandoms30, o que alimenta o consumo da série.

À parte de Lost, podemos dizer que Once upon a time concorre mesmo é com uma série da NBC contemporânea sua, chamada Grimm31, iniciada em 2011 e atualmente na sexta temporada, ou seja, bastante próxima a Once upon a time em termos de início e duração atual. Suas tramas são bem distintas, mas Grimm recebe esse nome em virtude do sobrenome dos Irmãos Grimm, justamente autores/compiladores dos tradicionais contos de fada aos quais Once upon a time tanto referencia. Desse modo, a aproximação das duas séries se dá em virtude do mesmo repertório das histórias clássicas infantis que pode chamar o mesmo tipo de público.

Aliás, em termos de perfil de público, Once upon a time, nos primeiros cinco meses de 201532 (dados mais recentes a que tivemos acesso até a conclusão deste estudo), foi líder entre cinco perfis de públicos: (1) ambos os sexos, classes AB, com idade entre 25 e 34 anos; (2) mulheres, classes AB, com idade entre 18 e 34 anos; (3) mulheres, classes AB, com idade entre 25 e 34 anos; (4) mulheres, classes AB, com idade entre 25 e 49 anos; e (5) mulheres,

29 No original: “The world of Storybrooke isn't quite what it seems. If you look closely, you may find hidden clues about another world, or worlds. In "The Shepherd": Emma and Mary Margaret drink MacCutcheon whisky. This is a fictional brand of scotch whisky used throughout the LOST series. There are many fairy tale references in Mr. Gold’s Pawnshop, including the two marionettes of Geppetto’s parents seen in "That Still Small Voice" and the unicorn mobile from Snow White and Charming’s nursery seen in the "Pilot." But that's not all there was to discover in this episode. If you think you've found another hidden secret of Storybrooke, share it with other fans in the Comments below. You never know who may be watching.”

30

Grupo de pessoas fãs de algo em comum que se formam geralmente na internet.

31 GRIMM – Temporadas 1 e 2. EUA: Universal Pictures, 2012. 10 DVDs (1903 min.), 5.1 dolby digital, color. 32 Dados obtidos junto à Sony Pictures Entertainment, em arquivo da Proposta Comercial da 5a temporada para

patrocínio da série; cujos dados tem como fonte o Ibope/ Media Workstation (15 markets, 11/jan a 14/jun/15). (SONY PICTURES ENTERTAINMENT. Proposta comercial 5a temporada Once upon a time. São Paulo,

classes ABC, com idade entre 25 e 34 anos. Generalizando, a série é mais assistida por jovens e mulheres dos níveis socioeconômicos mais elevados da sociedade brasileira.

Esse é o contexto de produção (parte da primeira etapa da análise audiovisual que estamos perseguindo) em que Once upon a time se dá em termos de referenciais da narrativa, perfil de público que a assiste e produto concorrente. Já quanto a seu objetivo (ainda parte da primeira etapa da análise audiovisual que estamos seguindo), cremos que ele fica bastante explícito quando analisamos seu discurso (vide terceiro capítulo): a série quer, sobretudo, tratar das grandes temáticas do amor, da felicidade e da esperança. A jornalista brasileira Priscila Harumi (2014), em levantamento descritivo de séries atuais de sucesso na televisão, reforça isso:

[...] OUAT é uma série inteligente, que abusa de romance, ação e mistério, em que o poder do amor verdadeiro é mágico e que acreditar até mesmo na possibilidade de um final feliz é algo poderoso. Como um feitiço, o seriado consegue misturar fantasia e mitologia, construindo um universo que entrelaça histórias e encanta muita gente. (HARUMI, 2014, p. 161).

Lendo pronunciamentos dos produtores da série, vemos claramente sua intenção de trabalhar, sobretudo, em cima da questão da esperança. No site oficial da série junto ao site da ABC, encontramos o seguinte depoimento de Kitsis, um dos produtores:

Para nós, isso é o que é um conto de fadas. É essa capacidade de pensar que sua vida irá melhorar. É por isso que você compra um bilhete de loteria – porque se você ganhar você vai dizer para o seu chefe que você está se demitindo e vai se mudar para Paris ou onde quer que seja e ser quem você sempre quis ser. E isso é Cinderela, certo? Um dia ela está varrendo o chão e no seguinte ela está indo ao baile. Adam e eu somente queríamos escrever sobre algo esperançoso que por uma hora da semana permita que a pessoa coloque todo o restante de lado e tenha a sensação de que seus sonhos podem se tornar realidade. (ABC, 2016, tradução nossa).33

Dessa verbalização, conseguimos depreender que fomentar o sentimento de esperança é um dos grandes propósitos da série, a tônica central de sua trama. Relacionando essa fala do produtor, Kitsis, com o que vemos na narrativa da primeira temporada, essa esperança seria, principalmente, em confiar na existência de finais felizes. O foco, a nosso ver, não seria o final feliz em si, mas a crença nele. No último episódio da primeira temporada, ele acontece, sim, mas a ênfase teria estado na manutenção do sentimento de confiança num futuro melhor e pleno que seria esse final. Já transpondo essa metáfora para o mundo real concreto, os “finais felizes” seriam as realizações dos pequenos e grandes sonhos de cada sujeito em

33 No original: "For us, that's what a fairy tale is. It's that ability to think your life will get better. It's why you buy a lottery ticket – because if you win you get to tell your boss that you're quitting and you get to move to Paris or wherever and be who you always wanted to be. And that's Cinderella, right? One day she's sweeping up and the next she's going to the ball. Adam and I just wanted to write about something hopeful that for one hour a week allows one to put everything aside and have that feeling that your dreams just may come true."

relação ao amor, à família, à carreira, à moradia, à saúde e às várias esferas da vida. Então, temos que a grande mensagem da série está na alimentação da convicção na possibilidade de concretização de conquistas e realizações, que iniciam/encerram ciclos ao logo de nossas vidas. Esse seria, enfim, o microambiente em que Once upon a time está inserida.