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3 COMPREENDENDO OS PLANOS NARRATIVO E DISCURSIVO

3.1 Nível narrativo: desconstruindo a narrativa de Once upon a time

3.1.5 Nossas considerações sobre o nível narrativo

3.1.5.1 O narrador

Uma última função da análise narrativa que a estrutura de Vogler (2009) apenas não dá conta e abordamos à parte aqui é o que diz respeito ao narrador. Em uma narrativa, o ponto de vista a partir do qual ela é contada nos parece uma questão importante. Ou seja, trata-se da questão do narrador. Narrador enquanto criação do autor, “ser ficcional” (LEITE, 2007, p. 12) que relata e conduz a narrativa, cuja teoria que se tem a respeito vem da análise do romance escrito. Norman Friedman (2002), teórico norte-americano, desenvolve o que seria uma teoria do ponto de vista na narrativa ficcional, no romance escrito, enquanto Ligia Chiappini Moraes Leite (2007), pesquisadora brasileira do campo das Letras, propõe uma teoria do foco narrativo aplicando os conceitos de Friedman a romances nacionais. Empreendemos, então,

uma exploração desses referenciais e seu deslocamento da narrativa literária à narrativa audiovisual, procurando elucidar como aparece enquadrado em Once upon a time.

Segundo Leite (2007), os primeiros escritos que dão início a uma teoria do foco narrativo se situam nos prefácios dos livros de Henry James (escritor norte-americano de contos e romances, naturalizado britânico), escritos pelo próprio autor, em que ele defende a adoção de um ponto de vista único num romance, sustentando que o exemplar para ele seria uma combinação entre o contar e o mostrar que resulte em uma presença reservada do narrador.

O ideal para James, e que passa a ser o ideal para muitos teóricos a partir dele, é a presença discreta de um narrador que, por meio do contar e do mostrar equilibrados, possa dar a impressão ao leitor de que a história se conta a si própria, de preferência, alojando-se na mente de uma personagem que faça o papel de REFLETOR de suas idéias. (LEITE, 2007, p. 13, grifo da autora).

Essa harmonia entre o contar (descrever de fora tudo o que acontece com os personagens) e o mostrar (deixar que os personagens contem a história por si mesmos), em uma estória, direciona a uma certa exclusão ou redução da presença do autor. Friedman (2002), inclusive, enxerga que, na passagem do romance convencional ao romance moderno, ocorreu um deslocamento da ênfase na narração (o contar) à ênfase na cena (o mostrar), levando ao “desaparecimento do autor”. Tal movimento facilitaria a criação de uma ilusão de realidade, a qual, ao fim das contas, seria o propósito de uma narrativa: “[...] a finalidade primordial da ficção é produzir a mais total ilusão possível pela estória” (FRIEDMAN, 2002, p. 180).

Efetivamente, Friedman (2002) estuda algumas das principais possibilidades de pontos de vista a partir dos quais uma narrativa pode ser contada/mostrada. Desenvolvendo sua “teoria do ponto de vista”, que diz respeito a como uma estória é narrada, ou aos modos de transmissão de uma narrativa ao leitor, o teórico propõe uma tipologia do narrador, levantando oito tipos essenciais: (1) o autor onisciente intruso; (2) o narrador onisciente neutro; (3) o “eu” como testemunha; (4) o narrador-protagonista; (5) a onisciência seletiva múltipla; (6) a onisciência seletiva; (7) o modo dramático; e (8) a câmera. Sobre a tipologia de Friedman, Leite esclarece: “[...] trata-se sempre de uma questão de predominância e não de exclusividade, já que é difícil encontrar, numa obra de ficção, especialmente quando ela é rica em recursos narrativos, qualquer uma dessas categorias em estado puro” (LEITE, 2007, p. 26).

Único ou padronizado, a opção por um ponto de vista se mostra fundamental. Importante, afinal, enquanto técnica para se conquistar um determinado efeito consistente por

parte do leitor, para sustentar a narrativa. A partir da classificação de Friedman (2002), aplicando-se ao audiovisual, podemos assumir que Once upon a time combina um narrador onisciente neutro com a onisciência seletiva múltipla e o modo dramático. O narrador onisciente neutro consiste naquele narrador de fora da história, que fala de modo impessoal, em terceira pessoa, relatando a cena como se já tivesse acontecido. Já a onisciência seletiva múltipla acontece quando a cena é mostrada diretamente da mente dos personagens, apresentando seus pensamentos, sentimentos e percepções. Por sua vez, o modo dramático, excluindo o narrador, se limita a mostrar exatamente o que os personagens fazem e falam.

No caso de Once upon a time, o primeiro tipo, o narrador onisciente neutro, aparece nos dois minutos iniciais de praticamente todos os episódios da primeira temporada. Faz-se presente, por exemplo, no primeiro episódio (Pilot), quando narra o início da história: “Havia uma floresta encantada com os personagens clássicos que conhecemos. Ou pensamos conhecer. Um dia eles se viram presos num lugar em que seu final feliz foi roubado. O nosso mundo. Foi assim que aconteceu...” Eventualmente, esse narrador mostra sua presença em introduções de outros episódios, igualmente para contextualizar e resumir o que vem acontecendo, como no sexto episódio (The shepherd), quando inicia relatando: “Há uma cidade em Maine onde todos os personagens dos contos de fadas estão presos entre dois mundos. Vítimas de uma maldição poderosa. Só uma pessoa conhece a verdade e somente uma pode quebrar seu feitiço”.

Já o modo dramático seria a grande constante na série, quando a história é contada a partir dos diálogos e ações de cada um dos personagens, intercalado poucas vezes pela onisciência seletiva múltipla. Podemos ilustrar o funcionamento do modo dramático combinado à onisciência seletiva múltipla na série por todo o desenrolar das ações do sétimo episódio (The heart is a lonely hunter), por exemplo, que mostra a história do Caçador, personagem do conto original de Branca de Neve (GRIMM, 2005, p. 33-41). Nesse sétimo episódio, a história se desenvolve por meio das atividades de cada personagem, alternando-se entre Mundo Real e o Reino Encantado. Ao todo, esse episódio envolve os seguintes personagens: Graham, contraparte do Caçador do Reino Encantado; Regina, contraparte da Rainha Má do Reino Encantado; Mary Margaret, contraparte de Branca de Neve do Reino Encantado; Emma, filha da Branca de Neve e do Príncipe Encantado, enviada ao Mundo Real; e Henry, sem contraparte no Reino Encantado. O episódio inicia em Storybrooke, com o xerife Graham em um bar, embriagado, jogando dardos, quando discute com Emma e eles se beijam. Ao beijá-la, Graham tem alguns flashes que não consegue entender direito, que o espectador percebe por uma sequência de rápidas inserções de cenas do Reino Encantado,

como se fossem cenas passando pela cabeça do personagem (onisciência seletiva múltipla). Dando sequência, Graham vai até a casa de Regina, sua namorada, onde passa a noite. Já no Reino Encantado, Branca de Neve chora a morte de seu pai e, enquanto isso, a Rainha Má conversa com o Espelho sobre a morte do marido (Rei Leopoldo, pai de Branca de Neve) e futura morte de Branca de Neve. Nisso, ainda no Reino Encantado, o Caçador é mostrado matando um cervo. Então, a cena é transferida para Storybrooke, onde Graham tem pesadelo com um cervo e um lobo (novamente onisciência seletiva múltipla) e, em seguida, saindo da casa de Regina, ao chegar em seu carro, cruza com um lobo. A narrativa, então, passa para Mary Margaret e Emma conversando sobre relacionamentos, e volta para Graham no bosque, procurando o lobo com que cruzou. Retornando ao Reino Encantado, Regina, através do Espelho, enxerga o Caçador e sua brutalidade em uma taverna e ordena que os guardas tragam-no a ela. Em Storybrooke, Graham encontra o lobo no bosque e, ao encostar nele, novamente tem flashes do Reino Encantado (onisciência seletiva múltipla). Graham, então, vai à Escola e diz a Mary Margaret que tem a impressão de conhecê-la de outra vida. Enquanto isso, no Reino Encantado, os guardas trazem o Caçador até a Rainha, a qual negocia com ele para que mate Branca de Neve. Voltando para Storybrooke, na Escola, Graham e Mary Margaret conversam. Retornando ao Reino Encantado, o Caçador sai do Castelo com Branca de Neve para matá-la. Novamente em Storybrooke, Regina vai à delegacia alertar Emma para que não se envolva com Graham. Ele, então, aparece encontrando Henry e questionando-o sobre sua existência no livro de contos do menino. Regressando ao Reino Encantado, temos cena travada entre o Caçador e Branca de Neve. Ela está escrevendo uma carta e pede para que o Caçador entregue à Rainha. O caçador lê a carta e se emociona. Sem coragem de matar a menina, ele faz um apito para ela tocar quando precisar de ajuda e deixa-a ir. Dando continuidade, no Mundo Real, Henry está em sua casa mostrando o livro de contos a Graham e explica toda a história a ele. Ao sair dali, Graham encontra Emma e lhe diz que precisa encontrar seu coração. Em seguida, o lobo aparece, e Graham começa a segui-lo. Aparentemente, em um cemitério, ele não sabe, mas encontra o cofre onde supostamente a Rainha Má, na outra vida, teria guardado o coração do Caçador (coração de Graham). Retomando a história do Reino Encantado, o Caçador vai até a Rainha, entrega a carta de Branca de Neve e também o suposto coração da menina. Contudo, a Rainha descobre que o coração entregue não era de Branca de Neve, porque o cofre em que o guardaria, que abriria automaticamente, não abriu. Por sua vez, no Mundo Real, Graham continua no aparente cemitério procurando seu coração, quando é surpreendido por Regina, que chega para deixar flores a seu falecido pai. Graham termina ali seu namoro com Regina. Dando seguimento,

quando Graham sai, Regina entra num alçapão sob o caixão de seu pai e tira dali o coração de Caçador/Graham. A narrativa do episódio chega ao fim com uma cena em que Graham e Emma se beijam e, a partir de inserções rápidas de cenas do Mundo Encantado (onisciência seletiva múltipla), o espectador entende que o personagem está se recordando sobre tudo em sua outra vida. Com isso, a cena é cortada para outra em que aparece Regina despedaçando o coração de Graham/Caçador e, voltando para a cena entre Emma e Graham, ele é mostrado morrendo de forma fulminante.

Como é possível visualizar, o modo dramático, no formato de diálogo entre os personagens, é predominante em quase totalidade das cenas, tanto no Mundo Real quanto no Reino Encantado. Mas, ele é, por vezes, intercalado pela onisciência seletiva múltipla.