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2 TEORIZANDO SOBRE AS DIMENSÕES NARRATIVA E TELEVISUAL

2.5 Gêneros e formatos televisuais

Não é pertinente aqui, por não ser nosso foco principal, adentrar em tantos detalhes, ou mesmo extensa discussão – recorrente e efervescente no campo da comunicação – sobre os conceitos de gênero e formato e, dentro deles, as tantas classificações possíveis. Contudo, por mais que seja assunto para toda uma tese, convém, de maneira geral, posicionarmo-nos brevemente a respeito, dando foco à questão dos gêneros e formatos no televisual.

A discussão sobre gêneros nasce do contexto literário; de onde advém a denominação “gêneros literários”, que abarcam classificações como o romance, a comédia, a tragédia e tantos outros gêneros clássicos da literatura, que são bastante variados, sobretudo quando se somam a eles variantes específicas, como o romance histórico, a tragicomédia e afins.

O pensador russo Mikhail Bakhtin (2011), estudando a literatura, trata de “gêneros discursivos” ou gêneros do discurso, que seriam “[...] tipos relativamente estáveis de enunciados” (BAKHTIN, 2011, p. 262, grifos do autor). Enunciado enquanto um dizer único e concreto (concretização do uso da língua), mas que, ainda que individual, obedece a certo padrão dentro de seu campo de enunciação, ou seja, atende a um gênero discursivo, o qual

estabelece certo conteúdo e determinados estilo e composição para seus enunciados. Arlindo Machado (2005), pesquisador brasileiro, dialogando com Bakhtin (2011), atualizando-o ao transpor o conceito para a produção televisual, estabelece que gênero

[...] é uma força aglutinadora e estabilizadora dentro de uma determinada linguagem, um certo modo de organizar idéias, meios e recursos expressivos, suficientemente estratificado numa cultura, de modo a garantir a comunicabilidade dos produtos e a continuidade dessa forma junto às comunidades futuras. (MACHADO, 2005, p. 68).

Por sua vez, Maria Isabel Orofino (2006), outra pesquisadora brasileira, situa gênero narrativo como “[...] modos de classificação de estruturas narrativas” (OROFINO, 2006, p. 153) e aponta para a existência de dois grandes gêneros televisivos: os ficcionais e os não ficcionais. Em um contexto do audiovisual mais amplo, parece-nos apropriada a designação “gêneros ficcionais” adotada pela antropóloga brasileira Silvia Helena Simões Borelli (1996, p. 173), que podem ser conceituados como categorias ou modelos universais que abraçam “[...] possibilidades para formas literárias, orais, visuais e audiovisuais”.

Em verdade, hoje, em termos de produção cultural, quando tratamos de gêneros ficcionais, tratamos de uma questão que transita, no mínimo, entre as esferas da cultura oral, da literatura, do cinema e da televisão. Ou seja, não se restringe mais somente ao campo literário. De fato, já presentes entre os gregos (com a lírica, a epopeia e o drama), passando para a literatura e daí para o audiovisual, há os gêneros clássicos e há reedições atuais. “Falar em gêneros, portanto, significa dialogar, aqui, com as variadas manifestações da ficcionalidade contemporânea, principalmente aquelas produzidas pelos meios audiovisuais.” (LOPES; BORELLI; RESENDE, 2002, p. 246). E aqui, no audiovisual – no cinema, com os filmes e, na televisão, especialmente com as telenovelas e os seriados –, a dinamicidade se faz mais presente. O trecho a seguir parece traduzir bem o lugar dos gêneros ficcionais na produção cultural contemporânea:

Os gêneros ficcionais – dos clássicos aos reeditados na atualidade – parecem ser eternos na história da literatura e da cultura. Ainda que se deva assumir com cautela eventuais transposições e adaptações de matrizes literárias tão antigas e tradicionais como a lírica, a epopéia e o drama, é possível afirmar que os gêneros ficcionais estão presentes desde os gregos, reencontram-se – reciclados e transmudados – no campo literário e transformam-se, fundamentalmente, em base de sustentação para a produção da ficcionalidade nos meios audiovisuais. (BORELLI, 1996, p. 177).

Com esse panorama, Borelli (1996) assenta que os gêneros seriam “modelos dinâmicos” (BORELLI, 1996, p. 179), pois permitem redirecionamentos a partir dos grandes clássicos e, aliás, hoje tendem à hibridização (OROFINO, 2006; BALOGH, 2002).

Na mesma linha de pensamento, Balogh (2002) opera todo um resgate histórico apresentando que a emergência de concepções estáticas de gêneros iniciaram na literatura e, aos poucos, a televisão sedimentou gêneros e formatos, que, por mais estabelecidos que sejam, sofrem mutações e hibridizações com o avançar das técnicas e linguagens. De acordo com a autora, gêneros teriam uma função reguladora, servindo para estabelecer limites e facilitar a recepção. Com essa noção da finalidade balizadora dos gêneros, concorda também Borelli (1996), quando situa os gêneros como mediação entre produtores e leitores: “ampliando mais seu alcance e sua presença no universo cultural, é possível afirmar que os gêneros se constituem como mediação fundamental na relação entre produtores, produtos e receptores na cultura moderna” (1996, p. 178). Nesse sentido, gênero, seria, portanto, estratégia de comunicabilidade (MARTÍN-BARBERO, 2006, p. 303) para uma produção cultural se fazer entender entre os atores envolvidos.

De todo este contexto, o que podemos ainda depreender é que os gêneros televisivos ficcionais estão moldados por formatos. Se por um lado os gêneros dizem respeito a matrizes “temáticas” às quais se adensa uma produção cultural, os formatos, por outro lado, estão mais relacionados à configuração de estrutura desse produto. Sobre a noção de formato, exclusivamente no âmbito televisivo que nos interessa, também há muita discussão a respeito. Nos termos de Renata Pallottini (2012), dramaturga brasileira, formatos seriam os “tipos” de ficção televisiva. A autora, inclusive, começa conceituando o que entende por ficção televisiva:

Ora, o programa televisivo de ficção é a história, mais ou menos longa, mais ou menos fracionada, inventada por um ou mais autores, representada por atores, que se transmite com linguagem e recursos de TV, para contar uma fábula, um enredo, como em outros tempos se fazia só no teatro e depois se passou a fazer também no cinema. (PALLOTTINI, 2012, p. 24)

E aí, dentro desse contexto, Pallottini distingue os tipos (formatos) de programas ficcionais de TV a partir de critérios como: “[...] suas características de extensão, tratamento do material, unidade, tipos de trama e subtrama, maneiras de criar, apresentar e desenvolver as personagens, modos de organização e estruturação do conjunto – por meio, enfim da linguagem própria de TV” (PALLOTTINI, 2012, p. 25). Partindo desses parâmetros, ela cataloga quatro principais tipos de ficção televisiva no Brasil: o unitário, a minissérie, o seriado e a telenovela. O unitário é um programa ficcional com produção fechada (sem espaço para a incorporação de adequações possivelmente sugeridas por espectadores), que se esgota em apenas um episódio. A minissérie também é uma produção fechada, porém, com uma extensão que avança para além de um único episódio, variando em média de cinco a vinte

capítulos; e ao contrário da telenovela, geralmente trabalha apenas uma grande trama central. Em contrapartida, a telenovela, no modelo brasileiro, é uma produção aberta – pode sofrer modificações ao longo de seu processo, especialmente em virtude de demandas da audiência – , possui uma quantidade maior de tramas paralelas em relação à minissérie e tem uma extensão muito maior, com uma média de 160 a 200 capítulos. Por fim, o seriado é um formato ficcional que segue a serialidade como a minissérie e a telenovela, contudo, é constituído por episódios independentes. Há uma unidade base que pode ser dada, por exemplo, por personagens fixos, mas um episódio pode ser visto independentemente do conhecimento dos demais.

Orofino (2006, p. 157), ainda que posicionando-se contra uma rigidez entre os limites das classificações, dialoga com Pallottini (2012) elencando os mesmos quatro principais formatos da teleficção seriada brasileira, apenas acrescentando a eles a microssérie, que seria um formato mais inovador: no mesmo formato fechado de produção da minissérie, mas com extensão ainda menor, de até quatro capítulos (OROFINO, 2006, p. 158). Balogh (2002) amplia esse quadro adicionando o que se convencionou chamar simplesmente de “série”, que foi sendo fixado genericamente pela TV por assinatura com a grande quantidade de produções norte-americanas. Tratam-se de produções que possuem um dia específico da semana para estreia de episódio inédito (ainda que reprise em outros dias e horários da mesma semana) e organizam-se em temporadas (com uma média de quinze a vinte episódios cada), que podem prolongar-se por muitas temporadas, dependendo dos interesses dos produtores e da aceitação do público, o que pode equivaler a vários anos no ar.

Concluindo: via de regra, dentro da infinidade de possibilidades de classificações, podemos dizer que entendemos o produto midiático objeto de nosso estudo, Once upon a time, como pertencente ao gênero ficcional (ou gênero ficcional televisivo) – combinando principalmente fantasia, drama, romance e suspense –, moldado pelo formato de série televisiva.

Visto que nos referimos ao produto objeto de nosso estudo como uma série ficcional televisiva, ou narrativa de ficção seriada, convém situarmos alguns pontos sobre essa dimensão do serializado. Assumimos aqui serialização enquanto “[...] um conjunto de sequências sintagmáticas baseadas na alternância desigual: cada episódio repete um conjunto de elementos já conhecidos e que fazem parte do repertório do receptor, ao mesmo tempo em que introduz algumas variantes ou até mesmo elementos novos” (VILCHES, 1984 apud MACHADO, 2005, p. 89, grifo do autor).

Serialização – tanto em blocos quanto em capítulos/episódios – que é, pois, adotada pela televisão em virtude de uma variedade de fatores apontados por Machado (2005, p. 85- 87), como: (1) as condições de produção – para alimentar continuamente a grade de programação da TV, ela se viu obrigada a adotar um modelo industrial que permite a serialização e a repetição –; (2) as condições de recepção – a TV, estando no ambiente domiciliar, concorre a atenção com inúmeras outras atividades, exigindo a serialização para que o receptor a acompanhe adequadamente –; (3) as razões, obviamente, de ordem econômica – o intervalo comercial que reparte a programação surge em função da necessidade de financiamento da televisão; e também (4) por exercer uma função de natureza organizativa, permitindo, ao receptor, um tempo de absorção do conteúdo e, ao produtor, uma exploração de momentos de tensão.

Seccionando o relato no momento preciso em que se forma uma tensão e em que o espectador mais quer a continuação ou o desfecho, a programação de televisão excita a imaginação do público. Assim, o corte e o suspense emocional abrem brechas para a participação do espectador, convidando-o a prever o posterior desenvolvimento do enredo. (MACHADO, 2005, p. 88)

Machado (2005), ao estudar a televisão e seus produtos audiovisuais, passa pelas questões da narrativa seriada, explorando os diferentes tipos de serialização: a série cuja história inicia no primeiro episódio e se desenrola até o fim da série; e a série com estrutura de episódios independentes, mantendo-se a mesma temática, com ou sem os mesmos personagens. E, principalmente, o autor passa por três grandes modalidades, ou tendências, de narrativas seriadas: “[...] aquelas fundadas nas variações em torno de um eixo temático, aquelas baseadas na metamorfose dos elementos narrativos e aquelas estruturadas na forma de um entrelaçamento de situações diversas” (MACHADO, 2005, p. 90, grifos do autor).

Naturalmente, essas três modalidades de narrativas seriadas nunca ocorrem, na prática, de uma forma “pura”: elas todas se contaminam e se deixam assimilar umas pelas outras, em graus variados, de modo que cada programa singular, se não for estereotipado, acaba por propugnar uma estrutura nova e única. A riqueza da serialização televisual está, portanto, em fazer dos processos de fragmentação e embaralhamento da narrativa uma busca de modelos de organização que sejam não apenas mais complexos, mas também menos previsíveis e mais abertos ao papel ordenador do acaso. (MACHADO, 2005, p. 97)

Mesmo que não de forma genuína, podemos ver uma prevalência em Once upon a time da terceira tendência das narrativas seriadas, pois a série trabalha várias tramas paralelas com uma extensa quantidade de personagens – só na primeira temporada, identificamos a entrada de um novo personagem – ou mais de um – quase que praticamente a cada novo episódio. E se considerarmos o fato de que cada um desses personagens (ou a maioria deles) tem uma vida/personalidade no Mundo Real e outra no Reino Encantado, duplicamos a

quantidade de papéis, complexificando ainda mais a trama central. Mais ainda, para figurar concretamente como a terceira tendência, observamos, ainda em Once upon a time, a interligação entre os vários personagens: se não estabelecem relações num mesmo mundo (seja Real ou Encantado), interligam-se entre os mundos (por intertextualidade, um personagem em um mundo faz referência a outro em outro mundo – exploramos esse aspecto mais profundamente nas análises nos próximos capítulos). Desse modo, podemos defender desde já que Once upon a time inova ao instituir uma construção narrativa sua, ímpar, renovando e conquistando audiência.