• Nenhum resultado encontrado

3 COMPREENDENDO OS PLANOS NARRATIVO E DISCURSIVO

3.2 Nível discursivo: textos e discursos em Once upon a time

3.2.1 Contextualização teórica: relações de sentido

Nesse espaço, nossa finalidade é explorar teoricamente diversos conceitos do âmbito da análise de discurso que dizem respeito a “relações de sentido”. Isso com a intenção de, ao final, conseguirmos evidenciar a centralidade, para a análise de nosso objeto de estudo, dos conceitos de intertextualidade e dialogismo que localizamos como mais apropriados para a investigação da narrativa ficcional em foco e que são nossos operadores analíticos na sequência.

A inspiração teórica para esse primeiro momento encontramos nas palavras de Helena Nagamine Brandão (2012), pesquisadora brasileira do campo do discurso, que nos lembra que “[...] os modos de dizer são heterogêneos, não se fecham numa formação discursiva, mas, operados pela memória, propiciam relações intertextuais e interdiscursivas” (BRANDÃO, 2012, p. 42). A partir daqui, revelamos nossa intenção: engendrar um itinerário que inicia na discussão de conceitos que tratam das conexões textuais/discursivas; sobretudo os conceitos de interdiscurso, intertexto, dialogismo, heterogeneidade, polifonia e memória discursiva.

Todos conceitos que dizem respeito, portanto, a relações de sentido colocadas em circulação por uma narrativa.

Damos partida decompondo cada um dos conceitos mencionados por Brandão (2012) em seu enunciado-guia: formação discursiva, memória, intertexto e interdiscurso. A noção de formação discursiva foi de fato introduzida nos estudos da análise de discurso por Michel Pêcheux (GREGOLIN, 2004, p. 62), filósofo francês, e é bastante complexa, especialmente por ter passado por revisões ao longo do tempo. De maneira resumida, entendemos como sendo o conjunto de regras que regulam os discursos, de acordo com posições ocupadas e com contextos históricos determinados. Reunião de enunciados que possuem uma mesma identidade, porque seguem os mesmos princípios reguladores, movimentam-se dentro das mesmas possibilidades discursivas.

Na série em análise, por exemplo, seu próprio título, “Era uma vez” em inglês, evidencia a formação discursiva em que seu discurso se inscreve. Ou seja, sua matriz de sentidos são as narrativas ficcionais ou, mais especificamente, os contos de fadas. Compreendemos quase que instintivamente seu lugar de fala e as “regras do jogo”, ou mesmo, indo além, como coloca Eco (1994), identificamos os “leitores” que a obra pretende atingir. O autor, ao tratar das estratégias narrativas – entidades do texto, como o leitor-modelo e o autor- modelo, além do leitor empírico e do autor empírico, entre outros conceitos de outros autores, como “leitor implícito” de Wolfgang Iser –, que são todas vozes que falam no texto, situa que:

Um texto que começa com “Era uma vez” envia um sinal que lhe permite de imediato selecionar seu próprio leitor-modelo [tipo ideal de leitor que o texto prevê ou mesmo cria], o qual deve ser uma criança ou pelo menos uma pessoa disposta a aceitar algo que extrapola o sensato e o razoável. (ECO, 1994, p. 15).

Tratando-se de formações discursivas, tangenciamos, então, a concepção de heterogeneidade do discurso: “uma formação discursiva está sempre em interação com outras formações discursivas em que vários discursos estão ora em relação de conflito, ora de aliança, e a linguagem é vista como uma arena de lutas” (BRANDÃO, 2012, p. 22). Podemos observar a formação discursiva das narrativas ficcionais televisivas contemporâneas dialogando com a formação discursiva dos contos fantásticos clássicos, por exemplo. Afinal, apreendemos a heterogeneidade enxergando “[...] marcas que remetem à instância em que os enunciados são produzidos” (BRANDÃO, 2012, p. 27). Com isso, reconhecemos que a “heterogeneidade é constitutiva do discurso” (BRANDÃO, 2012, p. 27), e isso se deve à introdução da noção de interdiscurso.

Conforme situam Patrick Charaudeau e Dominique Maingueneau (2012), linguistas franceses, desde os anos 1970, a formação discursiva é concebida como “inseparável do

interdiscurso” (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2012, p. 241). Nesses termos, de acordo com Pêcheux,

Uma formação discursiva não é um espaço estrutural fechado, já que ela é constitutivamente “invadida” por elementos provenientes de outros lugares (i.e., de outras formações discursivas) que nela se repetem, fornecendo-lhe suas evidências discursivas fundamentais (por exemplo, sob forma de “pré-construídos” e de “discursos transversos”). (PÊCHEUX, 1983, p. 297 apud CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2012, p. 241).

Chegamos, pois, onde nos interessava chegar, ao interdiscurso – segundo conceito mencionado por Brandão (2012, p. 42) que queremos explorar. A interdiscursividade transpassa todo e qualquer discurso. Assim, o interdiscurso traz em si a ideia de que existe uma conexão entre os discursos. Só posso dizer algo porque há alguém antes de mim que o falou. Remete à noção basilar de que um enunciado pode até ser individual em termos de quem o pronuncia, mas é indubitavelmente construído coletivamente. Isso porque, antes de tudo, há um repertório e práticas de vida que o dão suporte e, acima disso, há significados compartilhados.

De forma ampla, interdiscurso é “[...] o conjunto das unidades discursivas com as quais ele [o discurso] entra em relação.” (MAINGUENEAU, 1998, p. 86). Dando continuidade, o interdiscurso “[...] está para o discurso como o intertexto está para o texto” (CHARAUDEAU e MAINGUENEAU, 2012, p. 286, grifos dos autores). Intertexto é o terceiro conceito que retomamos do início, das palavras de Brandão (2012, p. 42). De uma forma geral, Maingueneau (1998, p. 87) defende que interdiscurso e intertexto seriam equivalentes. “Assim como o interdiscurso, o termo intertexto é frequentemente empregado para designar um conjunto de textos ligados por relações intertextuais” (MAINGUENEAU, 1998, p. 88, grifos do autor). Uma das suas distinções estaria no domínio de aplicação do intertexto, que seria a literatura, textos e obras literárias. O mesmo autor distingue intertexto de intertextualidade:

[...] intertexto é o conjunto dos fragmentos citados num determinado corpus, enquanto que intertextualidade é o sistema de regras implícitas que subentendem esse intertexto, o modo de citação que é julgado legítimo na formação discursiva da qual depende esse corpus. (MAINGUENEAU, 1984, p. 83 apud MAINGUENEAU, 1998, p. 88, grifos do autor).

Julia Kristeva, linguista búlgaro-francesa, é reconhecida por trabalhar com a intertextualidade. Em sua Introdução à semanálise (2012), a autora procura evidenciar a relação dos conceitos de genotexto e fenotexto, segundo a qual o texto tem uma constituição “genética” própria e uma manifestação visível dessa constituição; e essa relação desembocaria no conceito de ideologema enquanto função intertextual de um texto, a saber:

A verificação de uma organização textual (de uma prática semiótica) dada com os enunciados (sequências) que ela assimila em seu espaço ou aos quais ela reenvia no espaço dos textos (práticas semióticas) exteriores será chamada de ideologema. O ideologema é essa função intertextual que se pode ler “materializada” nos diferentes níveis da estrutura de cada texto e que se estende amplamente ao longo de seu trajeto, dando-lhe suas coordenadas históricas e sociais. [...] A aceitação de um texto como um ideologema determina a própria medida de uma semiótica que, ao estudar o texto como uma intertextualidade, o pensa desta maneira dentro (o texto de) da sociedade e da história. (KRISTEVA, 2012, p. 110, grifo do autor).

Ao tratar de função intertextual e texto como intertextualidade, Kristeva (2012) aborda a interseção de enunciados de um texto com outros textos. Desse modo, se estamos no terreno do intertexto, eventualmente estamos também no campo do dialogismo, mais um conceito da análise de discurso. Esse é o princípio fundamental da concepção de linguagem de Mikhail Bakhtin. Dentro do âmbito das proposições de Bakhtin sobre enunciação, por trás do conceito de dialogismo há questões centrais no autor, que são suas concepções de interação verbal e diálogo, que pressupõem “que qualquer enunciação, por mais significativa e completa que seja, constitui apenas uma fração de uma corrente de comunicação verbal ininterrupta [...]” (BAKHTIN, 2014, p. 128, grifo do autor).

Assim, dialogismo se refere “[...] às relações que todo enunciado mantém com os enunciados produzidos anteriormente, bem como com os enunciados futuros que poderão os destinatários produzirem” (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2012, p. 160). Ou, nas palavras de Bakhtin, “cada enunciado é um elo na corrente complexamente organizada de outros enunciados (BAKHTIN, 2011, p. 272)”.

Ele [o enunciado] tem limites precisos, determinados pela alternância dos sujeitos do discurso (dos falantes), mas no âmbito desses limites o enunciado [...] reflete o processo do discurso, os enunciados do outro, e antes de tudo os elos precedentes da cadeia (às vezes os mais imediatos, e vez por outra até os muito distantes – os campos da comunicação cultural). (BAKHTIN, 2011, p. 299).

Portanto, a teoria dialógica faz alusão à grande roda dos discursos que já existem. Dialogia não é apenas diálogo, e sim a compreensão da linguagem como interação entre seres sociais e historicamente constituídos. Enunciados se constituem a partir de outros e se orientam para o passado ou para o futuro. O dialogismo e a presença do “outro” no discurso estão manifestos também nos escritos de Jacqueline Authier-Revuz, estudiosa da análise do discurso, e resumem bastante do que refletimos até aqui: “o dialogismo atravessa a teoria da heterogeneidade de Authier-Revuz, pois ele está na raiz de toda a problemática da interdiscursividade como elemento constitutivo da discursividade e do sujeito” (BRANDÃO, 2012, p. 37).

Resumindo, o dialogismo remete à interação entre os discursos; ou, ainda melhor, enunciados ligados por relações dialógicas. Ao analisarmos discursos, conseguimos discernir ainda as várias vozes aí presentes. Várias vozes que compreenderiam o que já se convencionou chamar de polifonia, outra noção que permeia os estudos do discurso. O dialogismo é a base para a produção de sentidos e é embasado nesse pretexto que Bakhtin elabora o conceito de polifonia. Ao analisar textos literários populares, propõe que “[...] o narrador se investe de uma série de máscaras diferentes e representa várias vozes a falarem simultaneamente, sem que uma dentre elas seja preponderante e julgue as outras” (BRANDÃO, 2012, p. 33). Dessa forma, polifonia, de um ponto de vista amplo, significa fazer falar mais de uma voz em um mesmo texto.

Não convém adentrarmos em detalhes aqui, porque não é o foco, mas destacamos, na esfera da linguística, a teoria da polifonia, do linguista francês Oswald Ducrot, segundo a qual há mais de um sujeito na origem de um enunciado: sujeito falante, locutor e enunciador (BRANDÃO, 2012, p. 39). “Para ele [Ducrot], um mesmo enunciado pode ter vários sujeitos; isto é, num jogo polifônico, um enunciado pode apresentar várias vozes.” (BRANDÃO, 2012, p. 37).

Além de estar no campo da linguística e na análise literária de Bakhtin (2011), vemos a concepção de polifonia também na análise de discurso.

Encontramos o termo “polifonia” em muitos contextos diferentes e com muita frequência com acepções mais ou menos intuitivas ou impressionistas. Isso se explica talvez pela maleabilidade da noção, intuitivamente compreensível. [...] É claro que as diferentes acepções divergem em pontos essenciais. A polifonia

linguística se situa ao nível da língua, tornando-se, então, uma noção puramente abstrata; a polifonia da análise de discurso é um fenômeno de fala e, nesse sentido, concreto. A polifonia literária, enfim, que permanece na tradição bakhtiniana, diz

respeito às múltiplas relações que mantêm autor, personagem, vozes anônimas (o diz-se), diferentes níveis estilísticos etc.: falaremos de “polifonia” se no texto se estabelece um jogo entre várias vozes. (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2012, p. 388, grifos dos autores).

Agora, para avançarmos, precisamos fazer um retorno. Um retorno ao interdiscurso já comentado, segundo conceito mencionado por Brandão (2012, p. 42), que trabalhamos, para chegarmos à memória, último conceito que desejamos alcançar trazido pela mesma autora (2012). Acima de tudo, estamos preocupados com a produção de sentidos, que somente ocorre porque há uma relação do interdiscurso com o intradiscurso. Eni Orlandi, pesquisadora brasileira do campo do discurso, dialogando com pesquisador francês do mesmo campo, Jean- Jacques Courtine (1984 apud ORLANDI, 2007, p. 32-33), explica que o interdiscurso é da parte da constituição estruturante de um discurso, que compreende todo o já dito; enquanto o intradiscurso é da ordem da formulação, do momento da enunciação.

A constituição determina a formulação, pois só podemos dizer (formular) se nos colocamos na perspectiva do dizível (interdiscurso, memória). Todo dizer, na realidade, se encontra na confluência dos dois eixos: o da memória (constituição) e o da atualidade (formulação). E é desse jogo que tiram seus sentidos. (ORLANDI, 2007, p. 33).

Se interdiscurso é tudo o que já foi dito que me permite dizer (é “o que fala antes”, é o saber discursivo, portanto), é também, acima de tudo, memória. Ou melhor, memória discursiva.

A memória, por sua vez, tem suas características, quando pensada em relação ao discurso. E, nessa perspectiva, ela é tratada como interdiscurso. Este é definido como aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente. Ou seja, é o que chamamos memória discursiva: o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada da palavra. (ORLANDI, 2007, p. 31).

A memória discursiva/interdiscurso emerge e fala conosco quando articulamos nossos discursos. Então, Orlandi (2007) faz uma importante colocação que nos interessa dar ênfase. Trata-se de uma distinção peculiar entre interdiscurso e intertexto.

Se tanto o interdiscurso como o intertexto mobilizam o que chamamos relações de

sentido [...], no entanto o interdiscurso é da ordem do saber discursivo, memória

afetada pelo esquecimento, ao longo do dizer, enquanto o intertexto restringe-se à relação de um texto com outros textos. (ORLANDI, 2007, p. 34, grifo nosso).

Independente se no espaço conceitual da interdiscursividade ou da intertextualidade, temos relações de sentido, um dos tantos mecanismos de funcionamento do discurso. De acordo com essa noção de relações de sentidos,

[...] não há discurso que não se relacione com outros. Em outras palavras, os sentidos resultam de relações: um discurso aponta para outros que o sustentam, assim como para dizeres futuros. Todo discurso é visto como um estado de um processo discursivo mais amplo, contínuo. Não há, desse modo, começo absoluto nem ponto final para o discurso. Um dizer tem relação com outros dizeres realizados, imaginados ou possíveis. (ORLANDI, 2007, p. 39).

Enfim, operamos inúmeras digressões a partir de nosso discurso inspirador, de Brandão (2012, p. 42), trazendo, para discussão, conceitos basilares dos estudos do discurso. Todos eles, em sentido mais estrito ou mais amplo, versam – e procuramos clarear esses aspectos – sobre cruzamentos, conexões entre discursos/textos.

Partindo de toda essa fundamentação teórica em busca de conceitos com potencial para ser operadores analíticos da narrativa ficcional objeto de nosso estudo, afirmamos que consideramos dois deles centrais para esta investigação: (1) intertextualidade, que é a própria natureza da série, pois anima o enredo; e (2) dialogismo, que nos permite aproximarmos discursos que circulam no mundo de origem dos contos de fada e discursos que circulam em

nossos dias. Portanto, é do recorte desses dois conceitos que partimos agora para o estudo voltado a Once upon a time.

Resumidamente, na narrativa de Once upon a time, a intertextualidade se mostra no trabalho de costura de diversas histórias em uma única, referenciando histórias que vieram a compor nossa cultura em diferentes épocas, incluindo aquelas do momento atual. Once upon a time se constrói a partir dos textos que a precedem e estão em circulação desde muitos séculos. Esses textos que a série resgata, significando-os, de que a série depende para o trânsito intertextual que executa, constituem sua essência. Desse modo, amarrando com a noção de dialogismo, podemos dizer que a natureza de Once upon a time está equacionada entre dois vetores: (1) um que é o dos discursos de textos em que se firma (dialogismo); e (2) outro que é de sua própria articulação com esses textos em sua composição narrativa (intertextualidade).