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2 TEORIZANDO SOBRE AS DIMENSÕES NARRATIVA E TELEVISUAL

2.4 A dimensão audiovisual televisual

Tendo tratado até aqui sobre narrativa, que é a grande dimensão em que se encaixa nosso objeto empírico de estudo, adentramos agora a outra dimensão em que ele se enquadra: a televisual. A narrativa televisual é fulcral hoje frente a outras narrativas. Ou, mais enfaticamente, nas palavras da pesquisadora italiana Milly Buonanno (1999): “[...] não se trata simplesmente de reconhecer que a ficção televisiva é narrativa, mas também que constitui o corpus narrativo mais imponente dos nossos dias e talvez de todos os tempos” (BUONANNO, 1999, p. 58, tradução nossa12, grifo nosso). É nesse sentido (também) que o domínio do televisual convém ser explorado. Assim, procuramos a partir de agora, de forma geral, passar por aspectos centrais que delineiam esta esfera, da mesma maneira que, na sequência, pontuamos em caráter mais aprofundado pormenores televisivos como gênero, formato e temas afins ao televisual. Tudo isso para fazermos notar o fundamento a partir do qual olhamos para o texto televisivo concreto que estamos investigando.

Dialogamos com Jason Mittell (2012), teórico norte-americano, quando defende que os estudos de televisão pedem conceitos que lhes são próprios e não emprestados somente do cinema:

Embora o cinema tenha certamente influenciado muitos aspectos da televisão, especialmente no que diz respeito ao estilo visual, reluto em mapear um modelo de

storytelling associado a filmes que sejam restritos em si mesmos para transferir à

estrutura narrativa contínua e estendida das séries televisivas. (MITTELL, 2012, p. 30, grifo do autor).

11 Não vem ao caso aqui explorarmos mais o fato, mas seu modo de escrita inclusive fez o próprio autor se enquadrar no que chamou de ciência romântica (LURIA, 1992). Para ler mais, confira Baitello (2003).

12

No original: “[…] no se trata simplemente de reconocer que la ficción televisiva es narrativa, sino que constituye además el corpus narrativo más imponente de nuestros días y quizá de todos los tiempos” (BUONANNO, 1999, p. 58).

De fato, a TV nasceu como uma “síntese” do rádio e do cinema (JOST, 2007, p. 44). Efetivamente, a televisão mantém hoje ainda uma proximidade com o cinema porque faz uso de enquadramentos, planos, movimentos de câmera, iluminação, efeitos sonoros e demais recursos, como figurino, maquiagem e cenografia em contiguidade com o cinema. Nisso, sua linguagem, sua estética é, em menor ou maior grau, dependendo da situação, correlata à cinematográfica. Contudo, podemos – e devemos – expor aqui características que dizem respeito à linguagem própria do meio televisivo, às especificidades da linguagem televisiva que têm, inevitavelmente, relação estreita com suas regras de produção e condições de recepção.

Uma primeira grande característica que difere a TV do cinema diz respeito à difusão direta, ao vivo (JOST, 2007, p. 45). Apesar de essa propriedade nem se aplicar exatamente ao nosso caso de uma série ficcional, que não é transmitida ao vivo, é importante pontuá-la. Em termos de linguagem, quando comparamos particularmente a ficção na TV e no cinema, a narrativa ficcional televisiva, no geral, tem uma natureza ao mesmo tempo expandida e fracionada, distinta da natureza limitada e una do filme cinematográfico. Em outras palavras, na televisão, a ficção tende a ser mais longa e fragmentada em inúmeros capítulos/episódios (a exceção do chamado unitário, como veremos mais à frente). Enquanto no cinema se limita a um filme que se esgota em uma produção apenas – ou, no máximo, prolonga-se para mais de um filme de uma mesma saga, que se separam entre si com no mínimo um ano entre uma estreia e outra –, e no tempo médio máximo de três horas de duração.

Ainda dentro da questão da fragmentação, cada capítulo/episódio de uma ficção televisiva ou cada edição de programa televisivo mesmo que não ficcional é também fragmentada, para o encaixe dos intervalos comerciais. Essa talvez seja a maior peculiaridade dos produtos televisivos, quando contrapostos aos cinematográficos, pois, a partir desse aspecto, vários outros traços precisam se conformar. Por exemplo, a narrativa de um episódio de uma série precisa ser construída tendo em vista os intervalos: pode-se planejar para que a cena que vai ao final de um bloco, antecedendo os comerciais, deixe um suspense que prenda o espectador a continuar após a interrupção publicitária. Assim, a televisão e a publicidade construíram um vínculo extremamente forte, como a pesquisadora brasileira do campo da comunicação Maria Lília Dias de Castro (2006) procura evidenciar aproximando os dois fazeres. “Tudo o que nela [na televisão] se produz visa a conquista de audiência que, muitas vezes, faz valer a imposição do mercado sobre a qualidade da produção, até porque sem lucro não há condições de sustentabilidade.” (CASTRO, 2006, p. 211). A publicidade tem o papel primário de promover o anunciante, mas assume um papel de sustentação mesmo do sistema

de comunicação televisual, que depende da verba publicitária para se perpetuar. Nesse sentido, “a televisão cria com a publicidade uma relação de dependência recíproca, de necessidade mútua, dadas as contingências mercadológicas implicadas nessa reciprocidade” (CASTRO, 2006, p. 212). A publicidade gera receita para a emissora, propiciando investimentos de sua parte, que, por sua vez, conquistam a audiência. Assim, alimentando o ciclo, grandes números de audiência chamam mais uma vez anunciantes, que vão novamente gerar receita e dar continuidade ao processo. O que queremos realçar é que há toda uma lógica de mercado por trás dos produtos televisivos, que Anna Maria Balogh (2002), estudiosa da televisão brasileira, resume bem como sendo próprio da TV (os intervalos comerciais), e que é combinada a vários outros elementos que vêm dos já citados cinema e rádio, mas também das artes plásticas, do folhetim literário e da fotografia:

O mais corriqueiro dos programas ficcionais de TV trará um agenciamento de sons e imagens herdado da montagem cinematográfica à qual se acrescem as interrupções para os comerciais, próprias da TV, os enquadramentos cuja concepção vem das artes plásticas, da fotografia e do próprio cinema, os ganchos ocorridos antes das interrupções remetem ao folhetim literário e radiofônico, com a diferença de que os intervalos da TV são inundados de propagandas. Ou seja, cada uma das estratégias de enunciação da TV remete a uma diacronia feita de heranças múltiplas incorporadas de forma assimétrica pela televisão. (BALOGH, 2002, p. 24).

Tudo isso se dá, tradicionalmente, dentro de um fluxo televisivo que, apesar de descontínuo (fragmentado), é (sempre, ou quase sempre) ininterrupto. Por isso, a televisão funciona dentro do que Balogh (2002), citando respectivamente Virilio e Lotringer (1984) e Calabrese (1984), chama de estética da interrupção e estética da repetição. Interrupção porque a recepção ao produto televisivo é, a todo momento, suspendida para apresentar a publicidade; e repetição porque, uma vez que a difusão é praticamente permanente por 24 horas, a produção para a televisão deve ser constante, o que inevitavelmente recai em reiterações, que favorecem tanto a produção quanto a recepção.

Recepção essa que, aliás, tratando-se de um produto televisivo, tem também suas singularidades: tradicionalmente, a recepção deve se adequar ao lugar (dia e horário) que o produto ocupa dentro da grade de programação de uma emissora. Geralmente, comparada ao cinema, é uma recepção que não é necessariamente concentrada, dispersando-se com ocupações e demais atenções da vida cotidiana no ambiente doméstico. Todos esses são aspectos que refletem na linguagem que se solidificou para um produto televisual que, consciente da dispersão na recepção, se preocupa em sempre reiterar sua mensagem (novamente a estética da repetição).

Essas seriam algumas das principais qualidades dos produtos televisivos, que perpassam sua linguagem, produção e recepção. Contudo, a partir do avanço da tecnologia, e mesmo da familiaridade dos espectadores com a televisão, alterações foram promovidas nesse quadro. Ien Ang (2000), professora e pesquisadora australiana, reflete e tenta compreender as mudanças que ocorreram no mundo e na cultura televisiva dos anos 1980, quando do sucesso da hoje clássica narrativa ficcional televisiva Dallas, até a primeira década dos anos 2000. As principais mudanças apontadas por Ang (2000) seriam: (1) a introdução da ironia nas produções televisivas, a qual teria iniciado com uma postura irônica dos telespectadores frente à suposta baixa qualidade das produções e teria caminhado para a apropriação da ironia enquanto estratégia narrativa dos próprios produtos televisivos, que fazem deboches de si mesmos; (2) a aceleração da globalização, que antes era entendida e temida como uma expansão e dominação norte-americana, mas que, na realidade, se concretizou num processo muito mais heterogêneo e transnacional, com uma certa prevalência dos Estados Unidos, sim, mas também uma emergência de outros centros, compondo um movimento global de intercâmbio cultural; (3) e concomitante à globalização, têm-se o reconhecimento e a valorização de culturas e identidades locais e particulares em contraponto à norte-americana, fazendo conviver a homogeneização e a heterogeneização. Esse último fator resultou no processo de glocalização, que, no âmbito da cultura televisiva, consiste em, numa produção televisual, adotar-se referências globais adaptadas a um contexto local. Ponto que, aliás, Ang (2000) destaca em sua análise da cultura televisiva contemporânea: a persistência do local/regional em um panorama de cultura global interconectada.

No entanto, para além de todo esse panorama de modificações, o que se tem concretamente hoje em dia é uma mudança no consumo do televisual com o qual se perdem, às vezes, vários dos traços que o caracterizam. Em outras palavras, com a disseminação da internet e a consequente oferta de vídeo on demand, o produto televisivo pode não necessariamente ser mais consumido fragmentado em blocos, interrompido por publicidade e assistido dentro de uma grade de programação. Aliás, a verdadeira experiência televisiva, diria Williams (2016), é a que se dá em fluxo, na sequência, simultaneidade e entrecruzamento de diversos textos, como publicidade, filme e jornalismo; e isso estaria perdendo-se hoje com a assistência isolada de programas on demand.

O que vemos emergir hoje são, portanto, novos modos de assistir à televisão, sobre os quais fala Charo Lacalle (2010), pesquisadora espanhola especialista em análise audiovisual:

A expansão da conexão de banda larga e os avanços para a compressão de imagens originaram um novo modo de ver a televisão, com o consequente e constante

incremento das emissões de televisão via internet. O usuário tem a possibilidade de escolher o horário que prefere e iniciar a visualização de um programa e interrompê- lo para poder continuar em qualquer outro momento. (LACALLE, 2010, p. 82).

Com o desenho desse cenário, François Jost (2007), pesquisador francês, conclui que, sim, o aparelho televisivo está concorrendo com outras telas, como o telefone móvel e o computador, mas, por outro lado, justamente por isso, o televisual, a televisão tem até fortalecido sua presença no cotidiano. “[...] do ponto de vista da função, que é a de permitir ver a distância, ela [a televisão] não é a única a desempenhar essa tarefa” (JOST, 2007, p. 56), porém, “pode-se ver nisso tanto o fim da televisão, como uma extensão de seu poder: se, até agora, a televisão mobilizava o telespectador (menos que o cinema, é verdade), ela o acompanhará amanhã por todos os lugares em que ele for” (JOST, 2007, p. 56).

Paralelamente aos novos modos de consumo de televisão – concorrendo também com a produção e o consumo de produtos televisuais específicos para a internet –, o televisual e sua linguagem devem se adaptar e (re)encontrar seu lugar para manter e conquistar públicos. Todo esse contexto, devemos manter na base de nossos pensamentos, enquanto analisamos aqui um texto televisivo (sua a narrativa, seu discurso e suas imagens) contemporâneo a essas transformações sempre em curso.