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Segundo momento: identificação do contexto sociocultural do texto

4 COMPREENDENDO O PLANO IMAGÉTICO

4.1 Um método de análise audiovisual

4.1.2 Segundo momento: identificação do contexto sociocultural do texto

Agora, dando seguimento, o segundo momento de análise proposto por Pink (2008) compreende entender o macroambiente, o contexto sociocultural mais amplo da série: identificar conexões entre as práticas representadas no texto cultural em investigação e o macrocontexto de que emergem essas práticas.

Para tratar das representações da/na série, começamos observando o perfil sintético (mas suficiente para nossa proposta) de quatro protagonistas: Mary Margaret, uma mulher romântica que se atormenta demais pelo amor de sua vida; Regina, uma mulher que no passado sofreu uma grande desilusão amorosa, a qual endureceu seu coração e a faz amarga hoje, lutando apenas pela manutenção de poder e vinganças; Emma, uma mulher extremamente forte que, tendo sido abandonada pelos pais, no fundo tem medo de comprometimentos que possam a vir a machucá-la; e Henry, um menino que é tachado pelos adultos que o cercam por acreditar em ilusões e faz terapia desde cedo. Podemos dizer que o contorno desses personagens se dá a partir de questões centrais bastante emocionais que resumem algumas das inquietações, ansiedades e incertezas de nossos dias. A partir dessas representações circuladas pela série, traçamos paralelos com o macroambiente que envolve o seu processo de produção, recepção e consumo.

Mediado pelo viés tecnológico, o historiador brasileiro descendente de ucranianos Nicolau Sevcenko (2001) atravessa essa questão da ansiedade. O autor usa a metáfora da montanha-russa para representar nossas experiências e nossas atitudes com o avanço da tecnologia ao longo da história até o alcance do século XXI, dividindo esse tempo em três fases distintas pelos quais o carrinho da montanha-russa passa em seu percurso por toda a extensão do brinquedo, as quais corresponderiam a momentos pelos quais a humanidade vem passando exposta às forças agenciadas pela tecnologia e que desembocam, cada qual, em comportamentos e sentimentos humanos distintos.

Teríamos já passado pela primeira fase, que vai do século XVI até metade do século XIX, fase de ascensão contínua rumo ao topo da montanha-russa, que representa o boom do desenvolvimento tecnológico que nos enche de otimismo para o futuro. Assim como teríamos

também já atravessado a segunda fase, de 1870 a 1945, fase de queda vertiginosa da montanha-russa, que representa principalmente o período de guerras e nos deixa sem referências – característica marcante que deixa sequelas. Agora, alcançaríamos a terceira fase que teria iniciado em 1945 e se estenderia até os dias atuais (ao menos até 2001, data da primeira edição do livro do autor). Essa etapa corresponderia ao loop da montanha-russa, momento que nos deixa ainda mais desorientados e desfigurados, o qual representa de fato o comportamento a que nós, atores sociais, estamos sujeitos frente às mudanças tecnológicas cada vez mais aceleradas se não pararmos para refletir a respeito. Elas seriam, portanto, as tais desorientações que os personagens da série representam. Então, Sevcenko (2001) sugere um exercício para escaparmos da “síndrome do loop”, esse “[...] efeito perverso pelo qual a precipitação das transformações tecnológicas tende a nos submeter a uma anuência passiva, cega e irrefletida [...]” (SEVCENKO, 2001, p. 17). Tal exercício exigiria uma recuperação do tempo histórico, que forneceria o contexto para avaliar as mudanças em curso, para, a partir da perspectiva histórica, sondar o futuro. Esse movimento, a nosso ver, Once upon a time pode promover a certo modo, trazendo as antigas narrativas para um novo olhar no presente.

Muitos outros teóricos têm discorrido sobre a conjetura do contemporâneo ou, como tantos deles preferem, da pós-modernidade. A maioria dos textos seminais a respeito da emergência de mudanças na sociedade que marcam uma possível transição para o pós- moderno e as consequências nos comportamentos e sentimentos dos sujeitos data das duas últimas décadas do século XX, quando, visto em retrospectiva, muito se dissertou e se teorizou sobre isso. A data parece e é distante, mas seus escritos não se apresentam datados; pelo contrário. Assim, comentamos brevemente alguns desses textos (LYOTARD, 2009; HARVEY, 2014; JAMESON, 2006) que, acima de tudo, dão conta, a nosso ver, de desenhar o macrocontexto que nos interessa. Jean-François Lyotard, filósofo francês, foi um pioneiro a disseminar a noção de pós-modernidade em A condição pós-moderna (2009), cuja primeira edição, francesa, data de 1979. O teórico trata da pós-modernidade a partir da perspectiva do saber científico, de como o assentamento do capitalismo e o avanço tecnológico alteram o estado atual do saber científico e sua (des)legitimação. Nisso, entende a pós-modernidade, sobretudo, como uma experiência resultante de nossa rejeição do que ele chama de metarrelatos – ou metanarrativas, para harmonizar com nosso amplo espectro de estudo das narrativas –, os quais seriam grandes teorias universalizantes que sempre justificaram o conhecimento científico até então e preconizavam realidades possíveis para a sociedade, mas que não se realizaram. De acordo com o próprio autor, “simplificando ao extremo, considera- se ‘pós-moderna’ a incredulidade em relação aos metarrelatos” (LYOTARD, 2009, p. xvi). A

não concretização desses discursos – “decomposição dos grandes relatos” (LYOLARD, 2009, p. 28) – conduziu a um sentimento de descrença que garantiu a ambientação para a pós- modernidade, marcada, então, pela relativização de discursos e de valores do que é verdadeiro e justo. E isso, novamente, potencializa a geração de uma sensação de desorientação que apontamos com percepções de Sevcenko (2001), e que vemos retratada em Once upon a time.

Em outra perspectiva sobre a pós-modernidade, Fredric Jameson (2006), teórico estadunidense do tema, por sua vez, enxerga o pós-moderno a partir das formas culturais nesse que seria o estágio do capitalismo global. Também afirma que, entre tantas outras discussões, uma grande diferença que marca o pós-moderno em relação à modernidade é justamente a natureza global e, principalmente, mercantil das manifestações culturais. Defende, portanto, que o que há é a fusão entre a esfera cultural e a esfera econômica.

O que ocorreu é que a produção estética hoje está integrada à produção das mercadorias em geral: a urgência desvairada da economia em produzir novas séries de produtos que cada vez mais pareçam novidades (de roupas a aviões), com um ritmo de turn over cada vez maior, atribui uma posição e uma função estrutural cada vez mais essenciais à inovação estética e ao experimentalismo. (JAMESON, 2006, p. 30).

Examinando as produções da cultura, Jameson (2006) ainda discute as noções de historicidade e temporalidade que nos parecem pertinentes aqui. Desse ponto de vista, o autor percebe alguns aspectos fundamentais nas produções pós-modernas: a linguagem artística do simulacro; a crise da historicidade e o modelo estético da esquizofrenia que rompe com a temporalidade.

Jameson (2006) ilustra a crise da historicidade com o que chama de filmes de nostalgia: “[...] tentativas desesperadas de recuperar um passado perdido [...]” (JAMESON, 2006, p. 46). Filmes, pois, em que o passado (décadas de 1930 ou 1950, por exemplo) é revisitado e passa por uma “colonização estética” (JAMESON, 2006, p. 46) no presente, que é, por sua vez, “colonizado pela modalidade da nostalgia” (JAMESON, 2006, p. 47). Em outras palavras, ao mesmo tempo, há uma estetização de um passado que ganha destaque na cultura da imagem e também um presente que é envolvido pelo passado. Traçando um paralelo, no caso de Once upon a time, temos um passado que aparece apenas conotado entre o fantástico dos contos de fada ambientados em uma suposta Idade Média europeia. Essa abordagem do presente através do passado seria também a linguagem do simulacro, porque as representações ali são cópias de um original que nem de fato aconteceu. Nesse sentido, o passado que trabalhamos hoje nos produtos culturais é apenas um simulacro do passado, um

estereótipo do passado. “Essa abordagem do presente através da linguagem artística do simulacro, ou do pastiche do passado estereotípico, empresta à realidade presente, e à abertura da história presente, o encanto e a distância de uma miragem reluzente.” (JAMESON, 2006, p. 48). Jameson (2006) sugere o modelo estético da esquizofrenia para definir a produção cultural pós-moderna, porque o esquizofrênico vive somente o presente, incapaz de correlacionar passado, presente e futuro, o que consistiria em uma “ruptura da temporalidade” (JAMESON, 2006, p. 54). A esquizofrenia é um estado que mexe com nossos sentidos e sensações e, consequentemente, gera resultados estéticos e culturais específicos, marcados por descontinuidades e desconexões; aos moldes do que, mesmo que levemente, Once upon a time empreende com seu modo fragmentado de composição temporal e intertextual.

Com tudo isso, mais do que a questão de conteúdo, vemos uma questão mais estrutural aí colocada nessa narrativa midiática. Muito mais do que as temáticas trabalhadas na série (especialmente sobre as desorientações emocionais) que estão em conexão com o real concreto atual e que nos dizem algo sobre o macroambiente que estamos, enfim, explorando aqui teoricamente, a construção narrativa em si (e seu trabalho intertextual) parece tentar nos contar muito mais sobre o tempo histórico atual: desconexo. Todo o jogo cronotópico praticado pela série revela essa sua face. E assim mais uma vez nos ajustamos – nosso olhar e nossa teoria – a nosso objeto de estudo.

Por fim, David Harvey (2014), geógrafo britânico, interessado em entender a chamada condição pós-moderna, disserta exaustivas páginas para tratar das características da modernidade e da pós-modernidade. Novamente, o pós-moderno, segundo o autor, dialogando com vários outros estudiosos (inclusive Jameson, já citado) seria marcado pela transitoriedade, pela fragmentação e pela descontinuidade. São qualidades que Harvey (2014) situa como já presentes na modernidade, mas que agora estariam, além de intensificadas, também apartadas da busca por um discurso universalizante para a compreensão do sujeito e do mundo que se fazia presente na modernidade.

Harvey (2014) explora todo esse panorama, sobretudo, para contextualizar sua tese – que é o que nos interessa mais de perto neste momento – de que houve uma profunda transformação nos sentidos de tempo e de espaço na transição da modernidade para a pós- modernidade. Teria ocorrido, segundo o teórico, uma compressão do tempo-espaço, a qual seria consequência de uma série de fatores que o autor concentra no conceito de acumulação flexível, que seria a lógica que veio a substituir a lógica e as práticas rígidas do fordismo enquanto sistema de produção na era moderna. A partir dos anos 1960, teríamos tido, então, uma intensificação da compressão tempo-espaço em virtude de várias práticas que emergiram

e que assumimos. Começamos pensando sobre a dimensão temporal. Novas tecnologias têm possibilitado a aceleração da produção de bens, envolvendo/exigindo, consequentemente, acelerações na aquisição e no consumo desses mesmos bens. Nessa mesma linha, sistemas de distribuição mais avançados possibilitaram a circulação de mercadorias com velocidade também maior. Somado a isso, ainda há o investimento tanto na racionalidade da moda, cujo princípio é o da obsolescência programada e do descarte rápido e contínuo, quanto na oferta e no consumo de serviços (como educação, saúde, entretenimento, etc.), os quais são infinitesimamente mais efêmeros que bens duráveis, pois alguns, como um show, ou um espetáculo duram em média duas horas e se esgotam aí. Destaca-se, assim, a valorização do instantâneo (que se dá rapidamente) e do descartável; incluindo nisso não apenas bens, mas também valores e relacionamentos. Enfim, tudo se acelera. Vivemos em uma sociedade que se transforma cada vez mais com maior rapidez e na qual ocorrem mais acontecimentos em um mesmo intervalo de tempo. Com esse breve cenário, já é possível vislumbrar uma precipitação grande da experiência temporal contemporânea, sinalizando a mencionada compressão tempo-espaço. Passando para a dimensão espacial, podemos começar apontando que o mesmo avanço no sistema de distribuição de bens de consumo, além de acelerar a disseminação, também amplia seu alcance, ultrapassando barreiras geográficas e fazendo, portanto, solapar a dimensão do espaço. O mesmo acontece com as imagens, que atravessam continentes via meios de comunicação cada vez mais imediatamente ao ocorrido. Assim, em certo sentido, o espaço encolhe porque temos acesso a produtos e imagens do mundo inteiro em um mesmo e único lugar.

A implicação geral é de que, por meio da experiência de tudo – comida, hábitos culinários, música, televisão, espetáculos e cinema –, hoje é possível vivenciar geografia do mundo vicariamente, como um simulacro. O entrelaçamento de simulacros da vida diária reúne no mesmo espaço e no mesmo tempo diferentes mundos (de mercadorias). (HARVEY, 2014, p. 270-271).

Toda essa compressão temporal e espacial gera consequências sobre o pensamento e os sentimentos dos sujeitos. Harvey (2014) argumenta que vivemos de presentes puros, uma vez que, rejeitando, na pós-modernidade, a ideia moderna de emancipação humana que seria alcançada pela racionalidade iluminista, nega-se a continuidade e a memória histórica; resta, pois, somente o presente, o imediato.

Por sua vez, a produção cultural contemporânea não sai ilesa de todo esse estado de coisas. Na medida em que Harvey (2014) procura entender a sociedade (a economia e a política), também observa formas culturais, como a literatura, o cinema e a arquitetura. Mais especificamente, sobre os filmes que o autor analisa (Blade Runner e Asas do Desejo), a

nosso ver, ao mesmo tempo que são metáforas para trabalhar temas condizentes à condição pós-moderna sobre a qual ele discorre, são também produto dessa condição e, como tal, reproduzem seus traços. O teórico busca compreender as representações do tema da compressão tempo-espaço trabalhadas nesses filmes e, assim, dessa perspectiva que assumimos, Once upon a time pode ser considerada uma representação audiovisual dessa mesma compressão tempo-espaço; a seu modo, distinto das formas culturais examinadas por Harvey (2014), mas com traços convergentes aos delas.

Entre essas marcas da temática da compressão espaço-tempo, a questão de Once upon a time trabalhar com a justaposição de dois mundos é a primeira delas: correspondem a dois espaços distintos que coexistem em paralelo na trama da narrativa. A segunda seria justamente o trabalho que a série faz de colagem de vários textos anteriores (de tempos passados), sobre o qual Harvey (2014), inclusive, menciona que Derrida considera a “[...] modalidade primária de discurso pós-moderno” (HARVEY, 2014, p. 55). O próprio Harvey (2014), antes, admite o inexorável “entrelaçamento intertextual” (2014, p. 54) das produções culturais pós-modernas: “A vida cultural é, pois, vista como uma série de textos em intersecção com outros textos, produzindo mais textos” (HARVEY, 2014, p. 54).

Já a terceira marca da temática da compressão tempo-espaço em Once upon a time está na ênfase dada ao tempo presente, visualizada especialmente no fato de os personagens da série, em seu Mundo Real, não recordarem de suas vidas passadas como personagens de contos de fada e estarem presos num presente infinito, sem suas memórias históricas. Características que ficam evidentes na seguinte fala de Emma no segundo episódio: “Há décadas as pessoas vagam confusas, sem envelhecer, com memórias embotadas, numa cidade amaldiçoada que as faz esquecer?” Esse fato do “viver o efêmero presente”, sincronicamente, gera uma contradição: a busca pelo duradouro. Essa procura pode estar situada exatamente no resgate do passado: em plano micro, na diegese da narrativa, localizamos a busca pelo perene/passado no personagem Henry e seu apego ao livro de contos, ou, em plano macro, podemos localizar no contexto ele próprio de produção/consumo de Once upon a time pelos receptores contemporâneos que demandam e são atendidos por um produto como este. De fato, toda a efemeridade da condição pós-moderna, defende Harvey (2014), produz um paradoxo: “O retorno do interesse por instituições básicas (como a família e a comunidade) e a busca de raízes históricas são indícios da procura de hábitos mais seguros e valores mais duradouros num mundo cambiante” (HARVEY, 2014, p. 263.

Concluindo, Harvey (2014) defende que passamos a ter consciência e a desconstruir a visão linear da temporalidade social. Passamos a nos dar conta das descontinuidades

históricas. Aqui, parece-nos estar a maior conexão do texto cultural de Once upon a time com o macrocontexto concreto em que ele se dá e da qual emerge. Trata-se de uma representação não linear de narrativa como uma mediação, chamando a atenção para essas descontinuidades históricas. Sobrepondo e tecendo textos diversos, também desconstrói-se a linearidade moderna.