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2 TEORIZANDO SOBRE AS DIMENSÕES NARRATIVA E TELEVISUAL

2.7 A questão da ficção

Tendo nossas reflexões passado pela natureza das narrativas, por peculiaridades do televisual, seus gêneros, formatos e serialização, cabe nos dedicarmos um pouco à dimensão ficcional. Jost (2012), especialista em televisão, realiza um exame da produção ficcional televisiva que nos ajuda a pensar sobre suas narrativas e o porquê de seus êxitos. No geral, o autor se questiona sobre os benefícios simbólicos que os telespectadores encontram nas séries americanas. Segundo o pesquisador, apreciamos séries que nos são familiares. Familiares em termos de mobilizarem, não necessariamente de forma extremamente fiel, elementos que

fazem parte de nosso universo. E um dos recursos citados para que a ficção se torne familiar que queremos destacar é o que Jost (2012) chama de “universalidade antropológica” (2012, p. 30), que se refere ao fato de que, mesmo uma série trabalhando com fatos que não pertencem à concretude do cotidiano de uma maioria dos telespectadores, os problemas sentimentais dos personagens os aproximam desses sujeitos da audiência.

Nessa direção, o autor aponta que o sucesso das séries advém da contemplação de duas aspirações contraditórias: explorar um novo continente, mas ao mesmo tempo encontrar nele a familiaridade de nossa realidade (JOST, 2012, p. 32).

A força das séries americanas advém da contemplação de duas aspirações contraditórias: o desejo de explorar o novo continente, de ir rumo ao desconhecido, de descobrir o estrangeiro e, ao mesmo tempo, de encontrar nesses mundos construídos a familiaridade reconfortante de uma atualidade que é também a nossa, as contradições humanas que conhecemos e, enfim, os heróis que, como o telespectador, chegam à verdade mais pela linguagem do que pelo contato direto. (JOST, 2012, p. 32).

De um lado, temos a curiosidade pelo novo e, de outro, o conforto gerado pelo conhecido, pelo familiar, de que também fala Serge Moscovici (2013), psicólogo social romeno. Ao tratar das representações sociais, que exploramos mais a fundo adiante (no quarto capítulo), Moscovici (2013) sustenta que criamos representações – uma maneira de interpretação e comunicação das coisas do mundo – para “[...] tornar familiar algo não familiar [...]” (MOSCOVICI, 2013, p. 54). Quando nos deparamos com algo não familiar, atípico, que foge dos padrões a que estamos acostumados e não conseguimos encaixar em nossas referências, somos acometidos por um sentimento horrível de perturbação e ansiedade.

Isso se deve ao fato de que a ameaça de perder os marcos referenciais, de perder contato com o que propicia um sentimento de continuidade, de compreensão mútua, é uma ameaça insuportável. E quando a alteridade é jogada sobre nós na forma de algo que “não é exatamente” como deveria ser, nós instintivamente a rejeitamos, porque ela ameaça a ordem estabelecida. (MOSCOVICI, 2013, p. 56).

Nesse sentido, nós fabricamos representações (como as que são veiculadas por uma série ficcional televisiva) para amenizar esse mal-estar. Por meio de representações, aproximamos o que nos é estranho do que já nos é conhecido (nossos conhecimentos e experiências prévias), e assim suavizamos a perturbação e o desconforto. “Tal processo [de aproximar o não familiar do familiar] nos confirma e nos conforta; restabelece um sentido de continuidade no grupo ou no indivíduo ameaçado com descontinuidade e falta de sentido.” (MOSCOVICI, 2013, p. 59). Desse modo, a partir de imagens, conceitos e linguagem compartilhadas, nós fabricamos representações para nos comunicarmos, e também recorremos a elas para interpretarmos pessoas, objetos e eventos no mundo.

Dialogando agora novamente com Bruner (2014), podemos transpor para a narrativa audiovisual suas reflexões sobre a literatura e, nesses termos, o autor defende que a ficção deve trabalhar com o familiar, mas ir além dele para causar estranhamento, para que haja o que relatar.

A estratégia da ficção de primeira grandeza consiste em tornar estranho aquilo que é familiar e ordinário [...]. Ela [a ficção] fornece mundos alternativos que lançam nova luz sobre o mundo real. O principal instrumento através do qual a literatura cria essa mágica é, obviamente, a linguagem: as alegorias e os artifícios que levam nossa produção de significados para além do banal, até o reino do possível. Ela [a literatura] explora os dilemas humanos sob o prisma da imaginação. No que tem de melhor e mais poderoso, a ficção – assim como a fatídica maçã do Jardim do Éden – é o fim da inocência. (BRUNER, 2014, p. 19).

Enfim, dar estranheza ao familiar, em certo sentido, para desnaturalizar uma situação e gerar reflexão. Esse processo de estranhamento do comum seria uma estratégia da produção audiovisual para desnaturalizar algo socialmente construído que tenhamos naturalizado e provocar, assim, reflexão por parte dos sujeitos; o que, ao fim e ao cabo, é um grade potencial do audiovisual. Nisso, podemos dizer que a narrativa opera numa eterna dialética entre o estabelecido e o possível. “[...] embora a ficção inicie sua trilha pelo terreno familiar, ela almeja ir além dele: para o reino das possibilidades, para o vir-a-ser, para o que poderia ter sido, para o que talvez seja”. (BRUNER, 2014, p. 23).

Portanto, deparar-se com um modo de narração com o qual o sujeito se identifique, com o qual já esteja familiarizado, mais do que uma reprodução exata e rigorosa do real é o que o fascina em relação às séries. De qualquer forma, as séries ficcionais de estilo mais realista15 respondem a uma aspiração dos sujeitos por saber. Sobretudo pelo “saber-ser” (JOST, 2012, p. 45), pois abastecem-nos com conhecimento sobre os comportamentos possíveis em certas situações da vida particular e social. E, portanto, a “[...] impressão de aprender com a realidade cotidiana [...]” (JOST, 2012, p. 47) explicaria a atração por essas séries.

Enfim, entre suas conclusões sobre o ficcional, Jost (2012) defende que “o sucesso das séries explica-se menos pela sua capacidade de refletir de forma realista sobre o nosso mundo do que por suas condições de fornecer uma compensação simbólica” (JOST, 2012, p. 69). Os sujeitos procuram numa série ficcional televisiva elementos da realidade, sim, mas mais do que isso, buscam outras possibilidades para além da realidade, para equilibrá-la. Talvez a

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Jost (2012) fala em estilo realista não se referindo ao Realismo enquanto escola literária; mas, sim, fazendo referência a um gênero narrativo ficcional que trabalhe mais próximo do real concreto, e não de ficções científicas ou fantásticas.

narrativa de Once upon a time seja feliz nesse sentido, pois mescla e equilibra o universo mais próximo do real concreto com o universo fantástico.

Orofino (2006), pesquisadora brasileira do campo da comunicação, explorando uma variedade de elementos da linguagem televisual, passa pelo gênero narrativo e enfatiza o quanto sutil é a fronteira entre o narrativo ficcional e o não ficcional. Isso em virtude do drama próprio da vida social. Ou seja, em razão do elemento “ficcional” do real. “[...] a dramaticidade da vida social rompe ela própria com estas delimitações classificatórias [o que é real e o que é ficcional]” (OROFINO, 2006, p. 153). Em outras palavras: “[...] no plano das representações, a fronteira entre realidade e ficção é tênue justamente porque a vida tem uma característica dramática” (OROFINO, 2006, p. 155). Aliás, citando Roger Silverstone (1994), Orofino (2006), inclusive, revela o “segredo” do sucesso do drama ficcional, que remonta à matriz do melodrama:

Silverstone destaca que o drama ficcional seriado atua como um coro grego para o drama da vida social. Isto é, como modo de reconhecimento, de identificação daquilo que todos nós vivemos em nosso cotidiano, em nossa mundana experiência do dia-a-dia. (OROFINO, 2006, p. 155, grifo da autora).

Em verdade, toda história, mesmo real, é ficção. Afinal, tudo é representação: “a ficção enfatiza a ficcionalidade de uma história [...]; a própria verossimilhança, portanto, implica ficcionalidade” (RIFFATERRE, 1990, p. XV apud BRUNER, 2014, p. 32).

Trata-se, então, menos da exatidão do texto em relação ao real concreto e mais da impressão de realidade que um texto deve causar: o “efeito de real” de que fala Barthes (2012). Em seu texto O efeito de real, Barthes (2012) analisa a técnica da descrição e sua finalidade em uma narrativa, passando das narrativas da Antiguidade (retórica clássica) às da Modernidade (realismo literário ou literatura realista e discurso histórico objetivo). Nisso, Barthes (2012) defende que, nessa passagem, a finalidade da descrição, na narrativa realista moderna, passa a ser, além de estética, como na Antiguidade, também referencial. A descrição passa a ser empregada para se aproximar com exatidão do referente, colocando o referente como o real concreto – o que por si só já justifica a existência dessa descrição na narrativa, independente de sua função ali. Aliás, o realismo moderno rompe com o que o autor chama de “antiga verossimilhança”. Na Antiguidade, a verossimilhança estaria relacionada às determinações do gênero discursivo, e agora a verossimilhança seria referencial, no sentido de fazer referência imediata ao real concreto. Essa “nova verossimilhança” na narrativa diz respeito ao arranjo direto entre o referente (objeto) e seu significante (sua expressão), privado de significado (ideológico). Assim, Barthes (2012), problematizando a descrição de “pormenores inúteis” no romance Um coração simples, de Gustave Flaubert, escritor francês

do século XIX, e na obra História da França, do historiador francês também do século XIX, Jules Michelet, defende seu conceito de “efeito de real”. A descrição (de pequenos detalhes insignificantes), segundo ele, daria uma impressão de realidade a uma narrativa. Ou, nas palavras do próprio autor, “[...] produz-se um efeito de real, fundamento dessa verossimilhança inconfessa que forma a estética de todas as obras correntes da modernidade” (BARTHES, 2012, p. 190). Mayra Rodrigues Gomes (2000), pesquisadora brasileira das ciências da linguagem, falando a partir do jornalismo, localiza bem a ideia de efeito de real de Barthes (2012): “diz respeito a um sistemático esquecimento da ordem simbólica, e de si próprio como imerso nesta ordem, para enaltecimento de um real como auto-suficiente, como não mediatizado, na suposição de pura concretude” (GOMES, 2000, p. 24). Mais ainda: “o verossímil encontra-se em direta relação ao efeito de real discursivamente construído” (GOMES, 2000, p. 30). Importa, enfim, mais a sensação de realidade que a própria realidade.