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A representação do campo no imaginário coletivo nacional: visões do pós-modernismo.

em seu criterioso estudo sobre ‘a era dos extremos’, “o historiador inglês eric hobsbawm não hesita em declarar que “o breve século xx” só se inicia a partir de 1914, com a deflagração da i guerra mundial.1 Fruto da acirrada disputa de mer-

cados que as potências imperialistas travam entre si, o terrível evento será acompa- nhado de profundas transformações na esfera econômica e no cenário geopolítico internacional, dentre as quais convém destacar a eclosão da revolução Soviética na rússia czarista, em 1917, o que veio a significar um estímulo extraordinário à luta pelo socialismo nas mais diversas regiões do planeta. A vitória dos comunistas liderados por mao tse-tung, na china, em 1949, ou a própria revolução cubana, dez anos mais tarde (cujo caráter socialista seria proclamado somente em 1961), são desdobramentos óbvios do movimento que lenin e os bolcheviques conduziram em um país semifeudal e agrário, até mesmo contra as expectativas do velho marx, para quem o triunfo do socialismo se daria entre as nações mais industrializadas do Velho mundo, possivelmente na Alemanha, cuja classe operária era bastante numerosa e ativa.

1 o autor, aliás, não considera que os conflitos interimperialistas que se desdobram na europa e em outras áreas

do planeta durante a primeira metade do século xx devam ser vistos como duas guerras mundiais distintas, conforme aparece nos livros escolares e na historiografia mais difundida entre nós. ele os descreve como um processo único e indiviso, a que preferiu chamar de “a guerra dos 31 anos”. cf.: hobSbAWm, eric. A era dos

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Após a i guerra, as contradições do sistema capitalista (cujos sucessivos estágios de acumulação comportam sempre violentas crises cíclicas de notável dimensão) produzem o colapso de 1929, com a quebra da bolsa de nova York e a retração completa da economia e do comércio nos grandes centros ocidentais, além de conseqüências desastrosas para suas (ex-)colônias e todas as zonas periféricas. Apesar dos efeitos daninhos da crise, esta representa para a América latina uma rara oportunidade de progresso e auto-afirmação. Face ao seu isolamento, o subcontinente vive um processo de industrialização crescente – a fim de substituir os produtos importados ausentes do mercado –, sensível urbanização e célere expansão dos meios de comunicação de massa, em especial o rádio, que durante a primeira metade do século xx possui importância equiparável àquela que a televisão assumiria após 1950. este fenômeno, aliás, está diretamente associado ao projeto impe- rialista ianque, que, além da sedução do cinema, se vale da radiodifusão para ampliar seu controle ideológico na região desde as primeiras décadas do século, conforme tão bem atestam seus investimentos em cuba, verdadeiro laboratório estadunidense no caribe, que em 1933 já contava com 52 emissoras de rádio, número bastante superior ao dos seus vizinhos latinos, como brasil (22) e Argentina (17), e só inferior ao dos euA (625), canadá (77) e rússia (68).2

graças ao incremento das atividades produtivas, amplia-se o mercado de trabalho, com o conseqüente crescimento do proletariado e das próprias classes médias urbanas em países como o brasil, méxico e Argentina. esses novos atores sociais influem decisivamente sobre o cenário político-econômico da América latina, seja pelo aumento do consumo que seu maior poder aquisitivo acarreta, seja pela inevitável demanda de serviços e direitos essenciais reclamados pelas organizações populares. não é por acaso que, tanto no brasil quanto na vizinha Argentina, se instalam no poder personalidades como getúlio Vargas (1883-1954) ou Juan domingo Perón (1895-1974), que se apresentam com um perfil nacional-populista, cooptando o movimento sindical e promovendo reformas trabalhistas de grande repercussão. embora o historiador mais agudo saiba que a “consolidação das leis do trabalho” é, antes de tudo, uma exigência do próprio capital, a população recebeu-a como verdadeira ‘bênção’ do “pai dos pobres”: a estipulação do salário-mínimo e da jornada

de 40 h, por exemplo, serve para regular a própria produção de mais-valia no espaço fabril, mas o trabalhador sugado e espoliado pelas elites não as vê sob esse prisma. da mesma forma, ainda que a ampliação da rede pública de ensino fosse, em larga medida, uma resposta do estado à pedagogia popular dos anarquistas e comunistas (que alfabetizavam seus filhos com documentos operários), ela também não deixa de representar, no brasil (país cuja população sempre esteve privada do direito à escolarização), uma razoável conquista das classes trabalhadoras.

2 dados fornecidos pelo escritório telegráfico internacional de berna e divulgados pela revista Radio Guía, em

junho de 1934. o número total de emissoras em funcionamento no planeta era de 1203. cf.: gonzález, reynaldo. Llorar es un placer. letras cubanas, havana, 1988, p. 105.

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conforme as dimensões próprias desse processo em cada país, avalia-se a projeção dos campos intelectuais nas jovens repúblicas latino-americanas. na Argentina, por exemplo, onde em 1930 existiam apenas 6,64% de analfabetos (e só 2,3% entre os nativos!), amplia-se bastante o público leitor potencial e a indústria editorial experi- menta um crescimento extraordinário, com a publicação de diversos livros e revistas populares.3 Ademais, o país abriga ainda uma metrópole gigantesca, que em 1880 já

sofrera uma remodelação inspirada naquela que o barão haussmann promovera em paris sob as ordens de napoleão iii (portanto, 24 anos antes da reforma urbana de pereira passos no rio) – e cuja população, entre 1914 e 1936, cresce de 1,5 milhão para 2,4 milhões de habitantes. por isso, as atividades de escrita e leitura abarcam uma área social muito mais extensa do que a existente no brasil e criam-se inclusive condições para uma atuação profissional dos escritores, algo bastante precário entre nós. dentre esses fatores, convém destacar a promulgação da lei de “propriedade literária” em 1910, a criação por ricardo rojas da cátedra de literatura Argentina na Faculdade de Filosofia e letras, a aparição em 1916 das coleções “la biblioteca Argentina” e “la cultura Argentina”, a preços bastante acessíveis, assim como a adoção de alguns textos “clássicos” de leitura escolar obrigatória e as edições massivas de manuel gálvez e hugo Wast (os romances sentimentais e melodramas alcançavam tiragens de 300 mil exemplares!).

nesses círculos intelectuais periféricos, a despeito da permanente atração pelas velhas metrópoles e pela nascente indústria cultural ianque (desde o apelo audiovisual de hollywood até o balanço dos novos ritmos musicais), registra-se, de certa forma, em meio às inquietudes dos anos 20-30 e à relativa distância que mantínhamos do cenário bélico, uma “virada introspectiva” preocupada em refletir sobre as representa- ções da própria identidade nacional – esse antigo fantasma a espreitar a intelligentsia latino-americana – e em cunhar definições para conceitos tais como a argentinidade, a brasilidade ou a mexicanidade.4 Assim, sob o impulso do boom editorial (com a cria-

ção de poderosas editoras como a emecé, a losada e a claridad na Argentina, ou a editora globo, a José olympio e a companhia editora nacional, no brasil, esta última uma iniciativa arrojada do visionário escritor monteiro lobato) e do acirrado debate entre os grupos artísticos e literários de distintas filiações ideológicas5, surgem

3 cf. riVerA, J. b. “el auge de la industria cultural (1930-1955)”. in: Historia de la literatura argentina. tomo iV.

ceAl, buenos Aires, 1980/1986, pp.577-600.

4 cf.: pAgAno, Adriana Silvino. “’uma coisa chamada livros’: traduções e coleções bibliográficas na Argentina e

no brasil de 1930 a 1950”. in: pereirA, maria Antonieta & SAntoS, luis Alberto brandão. Trocas culturais

na América Latina. pós-lit / FAle / uFmg, belo horizonte, 2000, p. 20.

5 no brasil, houve desde grupos de nítida orientação fascista, como o Verde-Amarelismo (1926), de cassiano ricardo

e menotti del picchia, até os de feição liberal e antiaristocrática, caso típico da cosmopolita e sarcástica Revista de Antropofagia (1928), de oswald de Andrade e tarsila do Amaral. em buenos Aires, viveu-se a célebre opo-

sição entre os escritores de Boedo – o “realismo humanitarista”, de estilo mais combativo e politizado – e os da

Calle Florida, uma vanguarda de postura apolítica aglutinada em torno de Jorge luis borges e da revista Martín Fierro.

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livros excepcionais devotados ao exame mais profundo da nacionalidade, como é o caso de Casa-grande & senzala (1933), de gilberto Freyre, e Raízes do Brasil (1936), de Sérgio buarque de holanda, ou o clássico estudo Contrapunteo cubano del tabaco

y el azúcar (1940), do antropólogo cubano Fernando ortiz.

Sabemos que há diferenças bem evidentes entre cada uma das formações so- cioespaciais aqui mencionadas. Apesar de sua crescente urbanização, o brasil era a nação da casa-grande, ao passo que os portenhos, desde o final do século xix, concentravam suas atividades na monumental cidade de buenos Aires. Aqui, ainda sobressaía a longevidade dos elementos agrários; lá, impunha-se uma “cultura de

mezcla”, síntese das diversas coordenadas que se entrelaçam às margens do rio de la plata (imigração x criollismo, tradição x renovação, etc.). não esqueçamos que a região portenha era uma zona de colonização hispânica, para quem a cidade sempre fora uma referência maior. A classe dominante argentina o comprova sobejamente: ela se instalou cedo na metrópole; tinha vocação urbana, mercantil, cosmopolita. os fazendeiros preferiam viver na capital: compravam e vendiam terras, operavam na bolsa de Valores, cuidavam de variados negócios. desse modo, converteram-se em um grupo dirigente dinâmico, flexível e bem ajustado aos padrões europeus.

por sua vez, a classe dominante brasileira permaneceu na casa-grande até o início do século xx. os senhores de engenho do nordeste ou os barões do café do Sudeste em geral só iam às cidades nos dias de festa. quando se transferem definitivamente para a metrópole, já não há como dissolver o legado da origem agrária. São paulo, por exemplo, era em 1910 uma capital provinciana, que assiste à edificação das pri- meiras mansões e “vilas” residenciais habitadas pelas famílias oriundas das grandes fazendas de gado ou café. por isso, a aventura moderna no brasil assume essa feição tão singular, em que o velho mundo rural parece ditar a metamorfose espacial do país e se transforma sucessivamente em capital industrial e financeiro, sem jamais esquecer a sua gênese. e essa essência oligárquica, além de marcar o imaginário coletivo nacional, conforme ilustra boa parte de nossa literatura, também se perpetuará nas estruturas políticas da nação e no comportamento de suas elites, cujo signo distintivo de poder será sempre a posse de terras (que o diga Fhc: ao ascender à presidência, não obstante o rótulo de intelectual da uSp, logo tratou de adquirir uma fazenda em minas para não se sentir inferior aos coronéis que o elegeram...).

REGIONALISMO x COSMOPOLITISMO: