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As fontes seminais das letras no ocidente: a Antigüidade clássica

1. A poesia épica e lírica

A literatura da grécia antiga é um paradigma para o ocidente. ela surge com as epopéias de homero, entre os séculos ix e Vii antes da nossa era. poemas como a Ilíada e a Odisséia cumprem função pedagógica na civilização helênica: criam, a partir dos mitos, “imagens ideais da vida, que exercem influência duradoura sobre a

17 A mídia exalta a expansão dos portais cibernéticos (como o You Tube ou o Yahoo, que dão acesso

a 100 milhões de vídeos por dia) e saúda a “nova lógica da cultura de massa” na era da Internet, cuja capacidade de armazenar informações criou uma oferta infinita de produtos que ameaça o monopólio de imagens da tv. mais uma vez, o fetichismo audiovisual converte os meios em fins: sob o ritmo frenético do capital, o consumo das imagens entorpece a reflexão crítica, que só logra amadurecer mediada pela expressão verbal – aquela que organiza o pensamento a fim de desvelar

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realidade grega”.18 os inúmeros combates que se vulgarizam na tradição oral são con-

vertidos em vitórias exemplares de homens superiores, como o excepcional Aquiles, herói da guerra de tróia. Até mesmo a presença dos deuses, ingrediente maravilhoso das narrativas épicas, realça a capacidade que os seres humanos possuem de superar os limites da sua condição. homero torna-se, pois, uma referência ética, um guia para os dilemas que inibem a conduta de seus compatriotas. ele representa, enfim, o próprio mundo grego: nasce junto com sua civilização e sua língua, descrevendo com sua obra bastante amadurecida os primeiros passos de uma civilização que somente chegará ao seu auge alguns séculos mais adiante, quando o mito cede lugar à razão e a pólis grega assiste à completa reordenação do espaço social.19

Além da épica de homero, havia também a poesia lírica, da qual se conhece pouca coisa, à exceção da obra de píndaro, felizmente preservada. este escreveu textos solenes e nobres, exaltando as vitórias nos jogos esportivos, bem ao gosto da aristocracia da época. os fragmentos recolhidos de outros poetas, como Alceu e Safo, indicam porém que o objetivo maior do gênero era a expressão de paixões violentas, de uma forma bem mais “dionisíaca” do que “apolínea”, ou seja, longe do ideal de equilíbrio e harmonia que se costuma atribuir à arte grega. isso explicaria, de certa forma, o desconforto de vários políticos e filósofos diante dos poetas, sua tentativa de discipliná-los e conferir um significado mais ético e elevado, isto é, “apolíneo”, à sua arte.

2. A tragédia grega: ésquilo, Sófocles e eurípides

A contribuição mais fecunda da literatura grega ao mundo ocidental terá sido, talvez, a sua criação dramática. o teatro moderno, de fato, deve muito a nomes como ésquilo, Sófocles e eurípides. Suas tramas habitam o imaginário de todos nós; são quase todas originárias de mitos legados da tradição helênica, que ad- quirem uma feição mais humanizada face ao destino trágico de seus heróis. para o espectador grego, contudo, assistir ao teatro era o mesmo que presenciar uma sessão da assembléia: tratava-se de defender a justeza de uma causa, até mesmo reinterpretar um mito para alterar a ordem social, o que nos explica a extensão dos discursos enunciados pelas personagens, que o público nunca se cansava de ouvir (ao contrário das platéias atuais, que não suportam longos discursos, preferindo

ver e vivenciar a ação).20

18 cArpeAux, obra citada, p. 44.

19 A passagem do mito à razão se dá no século Vi antes da nossa era, nas cidades gregas da ásia

menor. o surgimento da filosofia abre caminho para o pensamento científico, para cujo desen- volvimento também concorrem as reformas de Clístenes, que democratizam a estrutura política

da grécia (até então sob o poder de quatro tribos da ática), assim como a expansão do comércio

e a prática monetária, com a invenção quase revolucionária, no séc. Vii antes da nossa era, da moeda cunhada, índice eloqüente do esforço de abstração que aquela sociedade alcançara. Ver, a

respeito: VernAnt, Jean-pierre. Mito e pensamento entre os gregos. paz e terra, rio de Janeiro, 1990 (cf., especialmente, o capítulo 7: “do mito à razão”).

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os três autores constituem três gerações praticamente contemporâneas. Ésquilo viveu entre 525 e 456, Sófocles entre 496 e 406 e Eurípides nasceu em 480 e tam- bém morreu em 406 antes da nossa era. o primeiro trata de temas coletivos, não de indivíduos; representa os conflitos da pólis e busca solucioná-los por meio da reinterpretação dos mitos, que em geral se encontram em estreita conexão com a vida humana. Ainda assim, em uma peça como Prometeu acorrentado21, em vez de acatar

os preceitos da religião oficial, que ordenava a condenação daquele que transgrediu a ordem divina, Ésquilo se curva à força da poesia e revela clara simpatia pela dor de seu personagem, convertendo-o em um símbolo da nossa civilização.

Ao sentido coletivo de ésquilo contrapõe-se o espírito individualista dos heróis de Eurípides, que não se preocupam em reescrever a ordem social, mas apenas em afrontá- la sistematicamente. esse caráter subversivo da obra do autor, a quem o conservador Aristófanes responsabilizou pelo fim da tragédia ateniense, não o impediu de tornar-se uma referência para o teatro de racine e goethe, assim como, por meio de seu discípulo latino Sêneca, viria a influenciar a dramaturgia de Shakespeare e calderón de la barca. Seu tema, a exemplo de ésquilo, é a família, da qual ambos são inimigos, por razões bem distintas: “ésquilo, porque ela se opõe ao estado; eurípides, porque ela violenta a liberdade do indivíduo”.22 dentro desse universo de seres trágicos, acossados pela

moral tradicional, suas grandes personagens são as mulheres, dentre elas Fedra, Electra e, sobretudo, Medéia, a mãe enfurecida que, após ser abandonada pelo argonauta Jasão, com quem fugira, vinga-se do amante decapitando seus dois filhos.23

entre esses dois “extremos” buscou situar-se Sófocles, que, por conta do seu equilíbrio puramente estético, veio a tornar-se o autor preferido dos classicistas. Além de dominar a palavra, ele foi um mestre na composição do enredo, combinando o conflito coletivo e o drama individual com enorme densidade, como ocorre em

Antígona, em que o tirano creonte, contra a sua vontade, deve aplicar a lei que impõe a perseguição do inimigo mais além da sua morte, ao passo que a heroína revela um sentimento piedoso e quase cristão, confessando que não nasceu “para odiar com os outros, mas para amar com os outros”.24 Sófocles é um humanista, que busca a

harmonia sem ignorar os abismos do homem, conforme ilustra a tragédia clássica

Édipo Rei, cujo herói se converte em um símbolo perene dos erros da humanidade:

21 Segundo a mitologia grega, Prometeu, filho de Atlas, era um gênio do fogo, que, após ter moldado

o homem com argila, resolve roubar o fogo do céu para dar uma alma a sua criatura. A fim de puni-lo, zeus, o deus dos deuses, mandou que hefesto, deus do fogo, o acorrentasse no monte cáucaso, onde uma águia lhe devorava o fígado (que sempre se reconstituía). reza ainda o mito que este autêntico criador da civilização humana ao final teria sido salvo por hércules.

22 cArpeAux, op. cit., p. 56.

23 Além da tragédia clássica de eurípides, a lenda de medéia inspirou também obras do romano Sêneca

(século i) e do francês corneille (1635). o texto grego foi recriado ainda por chico buarque e paulo pontes (1976), que transformaram uma história de reis e feiticeiros em um drama afro-brasileiro, protagonizada nos palcos cariocas pela inesquecível atriz bibi Ferreira.

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embora exilado para que não se consumasse seu trágico destino, ele assassina o pai (laio, o rei de tebas) e, após decifrar o enigma da esfinge, regressa ao reino para desposar a mãe, Jocasta, com quem mantém relações incestuosas, caindo em desgraça e arrancando os próprios olhos em sinal de expiação.

3. Sócrates, platão e Aristóteles

A busca da cidade ideal, inspirada nos mitos que sua cultura lhe legara, faz de Pla- tão (427-347 antes da nossa era) um dos maiores nomes da filosofia e da arte gregas. A imagem mais ilustrativa de seu pensamento talvez esteja no livro Vii de A República, com a famosa alegoria da caverna. A exemplo das criaturas aprisionadas numa gruta que nunca vêem a luz do sol e devem contentar-se em adivinhar a realidade exterior a partir das sombras que os objetos projetam nas paredes de pedra, nós, seres humanos, tampouco conhecemos a essência das coisas: tudo o que vemos são apenas toscas refra- ções dos conceitos mais puros, as idéias, que nossas almas contemplaram mas nosso espírito não logrou reter. e o artista, que busca imitar este mundo “imperfeito”, vive no reino do simulacro, entretido por cópias de formas imperfeitas.

A platão coube também reescrever a trajetória de Sócrates (470-399 a. n. e.), o filósofo que combateu os sofistas e empenhou-se na busca da verdade por meio do seu método dialético, que busca despertar o conhecimento adormecido dentro de nós para promover o “parto das idéias” (a maiêutica socrática). é o que ocorre no diálogo Mênon, em que o próprio Sócrates interroga um escravo até fazê-lo enunciar o célebre teorema de pitágoras.25 os Diálogos platônicos são textos de profundo valor

literário e filosófico, em que o discípulo busca dar forma artística às conversações filosóficas de seu mestre. pecam, contudo, pelo excessivo idealismo do autor, para quem a existência das idéias e o seu reflexo em nossa mente valem como um dogma absoluto, que se vale da crença na imortalidade da alma e na sua transmigração.26

por fim, cumpre destacar o papel de Aristóteles (384-322 antes da nossa era), que se notabilizou pelo esforço em sistematizar todo o conhecimento acumulado de seu tempo, seja no âmbito das ciências naturais, com a Física, seja no campo dos saberes do espírito, isto é, mais além da phisis (“natureza”, em grego), com a sua Me-

tafísica. embora não tenha escrito nenhuma obra poética ou dramática, ocupou-se bastante dos textos literários, classificando-os e fixando seus princípios básicos de composição em dois livros essenciais: Arte retórica e Arte poética. Além disso, estabele-

25 Aquele segundo o qual, para os triângulos retângulos, “o quadrado da hipotenusa é igual à soma

dos quadrados dos catetos”.

26 para fundamentar sua concepção de que o espírito guarda consigo a lembrança dos conceitos puros

que ele pôde contemplar no “desfile das idéias”, platão se valeu da “doutrina de transmigração da alma”, já formulada por pitágoras, de quem, ademais, o discípulo de Sócrates também herdou o profundo gosto pela matemática, visível na própria inscrição feita no pórtico de sua academia (“neste recinto só entra quem souber geometria”). compreende-se, assim, a atração que muitos pensadores cristãos irão demonstrar pela obra do filósofo grego.

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ceu os fundamentos da lógica Formal e da própria gramática. Seu sistema racional descreve-nos a natureza como um esforço maiúsculo da matéria para elevar-se até a inteligência e o pensamento (o logos).

4. os artistas romanos

A arte romana sofre visível influência do espírito grego. Se, por um lado, no cam- po institucional, roma nos legou uma obra sólida e definitiva no que diz respeito ao arcabouço jurídico e político da sociedade, de outro lado pode-se dizer que a literatura romana é uma imitação menor de modelos estrangeiros por parte de sua elite ilustrada – uma espécie de diletantismo espiritual que se opõe por completo à concepção grega, segundo a qual “estado e poesia, religião e teatro estão no mesmo plano” e a distinção entre o mundo material e o mundo além da phisis não faz o menor sentido.27 o mais

singular é que, embora o império romano tenha conquistado a grécia, submetendo-a a seu poder político e militar, a força da cultura helênica sobrepôs-se à latina e tornou- se a principal referência para os artistas da roma imperial.

dessa forma, muitos críticos julgam a comédia romana um mero reflexo da comédia nova ateniense, assim como a tragédia de Sêneca (4-65 antes da nossa era) se pautaria na tragédia escrita por eurípides. na poesia lírica, os romanos teriam se limitado a imitar Alceu e Safo, o que não desmerece o brilho de Ovídio (43 a. n. e.- 18), célebre autor de A arte de amar e As metamorfoses, cujos versos iriam influenciar decisivamente inúmeros poetas medievais. quanto à poesia épica, considera-se que a Eneida (uma epopéia ao estilo da Ilíada e da Odisséia, dedicada a narrar os feitos de enéias, herói nacional romano), de Virgílio (70-19 a. n. e.), o mesmo autor das

Bucólicas e das Geórgicas, estaria à sombra da obra de homero.

o terreno mais propício ao talento e à ação incisiva de um intelectual teria sido a oratória, instrumento com o qual se torna possível interferir com espírito literá- rio na política, como o fez Cícero (106-43 a. n. e.), autor das Catilinárias, um dos maiores tribunos romanos, cujos discursos se tornaram um paradigma da retórica latina. àquele que não se submetesse a tal opção só caberia valer-se de sua arte para buscar um espaço de evasão, o “jardim das delícias” em que o poeta se abrigasse das adversidades do seu tempo ao lado dos pares mais diletos, como nos sugere Lucrécio (98-55 antes da nossa era) em De natura rerum (Sobre a natureza das coisas), obra lírica e didática devotada à divulgação da doutrina do filósofo grego epicuro, para quem o bem máximo do homem era o cultivo do espírito e a prática da virtude.

o dilema do homem de letras romano é que ele vive no centro de um grande império, sufocado pela presença ostensiva de políticos, militares e burocratas que disputam o poder com a força da palavra e das armas. é claro que isso abre espaço à prédica de inúmeros demagogos, os quais buscam influenciar as massas urbanas

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que se deslocam dos latifúndios e das colônias em direção à capital do império, em busca de melhores dias. Se o artista não intervier nesse cenário, deverá ele próprio exilar-se na natureza, único refúgio contra as violentas transformações que ocorrem no espaço urbano. Ao contrário do que muitos supõem, pois, a fuga para o campo e a idealização de uma paisagem bucólica, fonte de equilíbrio e serenidade, não é uma atitude nascida após a revolução industrial inglesa, com o neoclassicismo europeu. conforme assinala o crítico inglês raimond Williams, essa “evasão” é uma “escada rolante retroativa”, que remonta do bucolismo árcade até as éclogas romanas: sempre que a cidade oprime o artista, ele busca na paisagem campestre o seu mundo ideal e inabalável.28

A literatura greco-romana: traços essenciais

Embora toda súmula das características básicas de um estilo ou época literária incida sempre no risco de apresentar uma visão demasiado simplista e esquemática do movimento estético analisado, julgamos válido destacar os seguintes traços:

1. Hegemonia do pensamento racional, tanto na esfera científica quanto na filosófica 2. Busca de equilíbrio e harmonia das formas estéticas

3. Valorização da mitologia pagã29

4. Estipulação das normas clássicas de criação estética, como a “lei das três unidades”30

5. Tripartição convencional dos gêneros literários em lírico, épico e dramático