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Tripartição convencional dos gêneros literários em lírico, épico e dramático 6 Consagração do poema épico ou epopéia por Homero e Virgílio

As fontes seminais das letras no ocidente: a Antigüidade clássica

5. Tripartição convencional dos gêneros literários em lírico, épico e dramático 6 Consagração do poema épico ou epopéia por Homero e Virgílio

7. Projeção da tragédia clássica por Ésquilo, Eurípides, Sófocles e Sêneca

ii. A literAturA medieVAl

A idade média é vista por alguns historiadores, de maneira estereotipada, como um período de trevas e obscurantismo espiritual, confinado entre o esplendor da Antigüidade clássica greco-romana e o vigor artístico e intelectual do renascimento. para alguns autores cristãos, ela seria um eclipse temporário do espírito humano, des- de o fim do paganismo e da igreja primitiva até a eclosão do humanismo e da igreja reformada no limiar da era moderna. preconceituoso e estreito, tal esquematismo ignora o fato de que a civilização medieval é um fenômeno bastante complexo, cuja definição não caberia em uma única frase. conforme nos adverte mestre carpeaux, além de comportar diversas “renascenças” ao longo de sua trajetória (como a renas-

28 Ver, a respeito: WilliAmS, raimond. O campo e a cidade: na história e na literatura. cia. das letras,

São paulo, 1989.

29 no panteísmo grego, várias forças naturais e sentimentos eram representados por divindades. Assim,

além do deus dos deuses (Zeus ou Júpiter), havia o deus dos mares (Poseidon ou Netuno), o deus do fogo (Hefesto ou Vulcano), o deus da guerra (Ares ou marte), a deusa da beleza (Afrodite ou Vênus), o deus do amor (Eros ou Cupido) e vários outros.

30 princípio estabelecido por Aristóteles para a composição da tragédia, cuja ação deveria tratar de

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cença carolíngia do séc. ix31, a “franciscana” dos séculos xii e xiii e a francesa ou

escolástica do séc. xiii), ela conjuga distintas mentalidades (tanto a eclesiástica, de ordens religiosas poderosas como os beneditinos, quanto a leiga dos cavaleiros) e civilizações (desde a feudal propriamente dita, assentada no poder dos senhores de terras, até a burguesa, em gestação nos prósperos centros urbanos).32

também no âmbito artístico devemos reconhecer uma clara diversidade de gêneros e escolas literárias, que se espalham pelas mais diversas regiões da europa medieval, como a literatura provençal do séc. xii, o trovadorismo galego-português do séc. xiii e os romances de cavalaria que se valem das mais diversas fontes, desde as lendas célticas (como a paixão irresistível e proibida de Tristão e Isolda, baseada numa saga irlandesa, ou as célebres aventuras de Arthur e os cavaleiros da távola redon-

da) até a herança da poesia erótica de ovídio, o autor latino mais lido nas escolas do século xii. constata-se, assim, um “internacionalismo prodigioso” da literatura medieval, que, a exemplo do latim litúrgico difundido entre as principais nações do Velho mundo, amplia a unidade européia entre os povos românicos (italianos e franceses, espanhóis e portugueses, provençais e catalães) e anglo-saxões (alemães e ingleses), além de estender as fronteiras literárias da europa até o mundo nórdico (dinamarca, Suécia, noruega e islândia).33

em suas Lições de literatura portuguesa, o crítico literário lusitano m. rodrigues lapa destaca o papel da cultura trovadoresca no imaginário popular europeu. ela se consolida entre a primeira e a segunda cruzada (1099-1147), “numa época de espantosa agitação religiosa e econômica”, em que os líricos cortesãos buscam na aura mística do seu tempo “o alento para o vôo espiritual do seu amor”.34 o primeiro trovador provençal

aparece já ao final do séc. ix, com guilherme ix; e na segunda metade do século xii o sul da França presencia uma verdadeira explosão da lírica trovadoresca. nesta versão provençal do trovadorismo se projetarão alguns elementos de forte impacto na imagi- nação do leitor, como a valorização da figura feminina35 e a denúncia da impostura

do amor cortês, ou seja, da incompatibilidade entre o amor e o casamento. por outro lado, o trovador serve a sua dona como o vassalo serve o senhor. Atitu- des e expressões próprias do feudalismo e do código de honra da cavalaria povoam a lírica amorosa provençal. Assim como a arte grega se vinculava à aristocracia, a poesia medieval não logra desprender-se do seu caráter institucional e palaciano (muitos reis,

31 A renascença carolíngia ocorre durante o domínio de carlos magno (742-814), rei dos francos e

senhor do ocidente, que foi coroado imperador de roma pelo papa no ano de 800. A fim de estimular a cultura e as artes, ele criou uma escola no seu palácio de Aix-la-chapelle, convocou letrados estrangeiros para a corte e instalou oficinas de arte nos mosteiros.

32 cArpeAux, op. cit., p. 161. 33 Idem, p. 181.

34 WechSSler, ed. Das Kulturproblem des Minnesangs. niemeyer, halle, 1909. citado por lApA,

m. rodrigues. Lições de literatura portuguesa. 7ª e. coimbra editora, coimbra, 1977, p. 7.

35 Atribuída por lapa ao status privilegiado que a mulher obtém ao Sul da França, em especial o



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aliás, eram trovadores). o poeta jura fidelidade e eterna submissão à sua senhora, prestando-lhe diversos graus de “vassalagem”: para alcançar as graças da amada, ele será primeiro um aspirante, que se consome em suspiros (fenhedor); depois um supli- cante, que já se atreve a pedir (precador); mais tarde um namorado (entendedor) e por fim um amante (drut). Já a cantiga de amor portuguesa é mais simples, sem tantos rodeios de hierarquia, que o trovador compensa com emoção e arrebatamento. de ambas, no entanto, sorverá séculos mais tarde o escritor romântico, ao descrever, na poesia e na prosa, de modo bastante idealizado, a figura feminina.

o cancioneiro português, em geral, guarda outras características. em vez de exibir a ardente fantasia provençal, impregnada do espírito clássico latino, pagão e sensual, a cantiga de amor e a cantiga de amigo são a voz idealista do coração. elas recalcam o “mito do amor cortês”, ou seja, o sonho de um amor impossível a que o poeta aspira sem nunca alcançar. Sob essa aura de sutil espiritualidade, insinua-se o princípio do amor platônico, largamente difundido pela igreja cristã, que o concebe como um instrumento de educação moral e de elevação ou ascese dialética em dire- ção ao supremo bem e à suprema beleza, como já predicara platão em O banquete. um poeta lírico alemão tratou de sintetizar esse poder edificante e pedagógico do amor sob a máxima de que “aquele que goza do amor de uma boa senhora irá se envergonhar de qualquer ação feia”.36 é claro que a conquista dessa prenda pressu-

põe uma jornada dolorosa, repleta de inúmeros sacrifícios, o que acusa a vigência do estoicismo cristão na ética dos trovadores e imprime à cantiga de amor o tom melancólico e esperançoso que lhe é tão peculiar:

Pois naci nunca vi Amor e ouço d’el sempre falar. Pero sei que me quer matar

mais rogarei a mia senhor que me mostr’ aquel matador ou que m’ ampare d’el melhor.37

Ca sei de mi E cuidarei

quanto sofri e pensarei

e encobri quant’ aguardei

en esta terra de pesar. o ben, que nunca pud’ achar.

Como perdi Esforçar-m’ei

e despendi, como guarrei,

vivend’aqui, e prenderei

meus dias, posso-m’ queixar. conselh’ agor’ a meu cuidar.38

36 “Swer guotes wibes minne hât / der schamt sich aller missetât.” Walther von der Vogelweide. transcrito

por lApA, obra citada, p. 22.

37 nuno Fernandes torneol. Cantiga de amor. esta canção foi gravada pelo grupo legião urbana com

o título de “love Song”. in: Legião Urbana V. cd 798514-2, emi-odeon, São paulo, 1991.



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nas cantigas de amigo, persiste a mesma melancolia, mas agora o enuncia- dor cede vez ao eu-lírico feminino, propiciando-nos com sua arte uma gama de curiosas observações sobre o perfil psicológico da mulher. como nos comenta rodrigues lapa, toda a escala sentimental da vida amorosa de uma menina nos é comunicada com o mais vivo realismo: “a timidez, o pudor alvoroçado e a inex-

periência do amor, a garridice, a travessura, a alegria e o orgulho de amar e ser amada, os pequeninos arrufos, as tristezas e ansiedades, a saudade, a impaciência e o ciúme, a crueldade e a vingança, a compaixão e o arrependimento e, finalmente, a reconcilia- ção”.39 diante de tamanho espectro de sentimentos, como ignorar a força e a

influência dessa poesia nas letras portuguesas e, ainda, na própria literatura de nossa terra? como desconhecer o impacto de um amor fatal e fulminante, mas que vive no recato e na timidez?

Amiga, des que meu amigo vi, Des que o vi, primeiro lhi falei, el por mi morr’ e eu ando des i el por mi morre e eu d’el fiquei

namorada. namorada.0

Vedes, amiga, meu amigo vem Ca eu nunca com nulh’ ome falei e enviou-me dizer e rogar tanto, me non valha Nostro Senhor, que lh’ aguis’ eu de comigo falar, des que naci, nem ar foi sabedor e de tal preito non sei end’ eu ren; de tal fala, nen a fiz, nen a sei;

e pesa-mi que m’ enviou dizer e pesa-mi que m’ enviou dizer que lhi faça o que non sei fazer; que lhi faça o que non sei fazer.1

recitadas pelos menestréis para um público em grande parte analfabeto, as cantigas de amor e de amigo possuem uma estrutura bastante musical, para a qual concorre, além do verso metrificado e da rima, a presença constante de um estribilho ou refrão, cuja reiteração é também uma maneira de sublinhar o esta- do amoroso do eu-lírico, sua eterna melancolia e ansiedade. lembremos que os primeiros “trovadores” foram os padres do séc. ix, que acresciam pequenos versos ao texto litúrgico oficial a fim de amenizar a secura do canto religioso...

por fim, a poesia trovadoresca portuguesa registra ainda duas outras formas de enorme relevância literária, lingüística e social: a cantiga de escárnio e a cantiga de maldizer. nelas, a força da sátira e o apelo às obscenidades para desvelar a podridão moral dos contemporâneos é avassaladora, com a diferença de que, na primeira, o trovador escarnece de alguém por meio de palavras dissimuladas de duplo sentido que gerem certa dúvida e hesitação no leitor, ao passo que na segunda o poeta ataca diretamente sua vítima, sem se valer de meias palavras ou de linguagem figurada:

39 lApA, op. cit., p. 167.

40 Cancioneiro da Ajuda, cantiga nº 476 (fragmento). 41 Idem, cantiga nº 119 (fragmento).



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Dona feia, nunca vos louvei El fez sempre mal e cuydou em meu trovar, embora muito trovei; e ia mays nunca fezo ben, mas agora já um bom cantar farei e eu são certo por en em que vos louvarei sempre; d’el que sempre em mal andou, e dir-vos-ei como louvarei, que nunca ia, poys assy é, dona feia, velha e sandia!2 pode veer, por bõa fé,

a face do que nos comprou.3

toda essa produção irá repercutir na tradição satírica de nossas letras, em que avultarão poetas como gregório de matos, o Boca do Inferno da bahia colonial, e

Tomás Antônio Gonzaga, o autor das polêmicas Cartas chilenas, célebres versos que denunciam os desmandos do governador de minas na fase áurea da mineração.

Valeria a pena, ainda, mencionar que as letras portuguesas acolhem em algumas obras ecos indiscutíveis das lendas bretãs em torno do rei Artur e dos cavaleiros da távola redonda, que se tornaram o romance favorito de várias gerações de es- cribas feudais. A comunicação e a identidade cultural entre a galícia, no noroeste da península ibérica, e os povos da bretanha parecem estar documentadas por estudos arqueológicos e etnográficos que identificam um fundo comum entre as duas civilizações. o substrato celta não seria um devaneio literário, mas sim um fato científico, o que explicaria a longevidade de certas lendas, símbolos e crenças nas duas regiões.44 Assim, o ideal do “amor cortês”, além de inspirar o cancioneiro

lírico, também é cultivado na prosa romanesca. nomes como lançarote, percival e tristão tornam-se comuns em portugal, conforme já atesta, em 1383, a presença de

Persifal na célebre Crônica de João I, escrita por Fernão lopes.

o ciclo novelesco de maior aceitação foi a Demanda do Santo Graal, romance tradicionalmente dividido em três partes, duas delas com versões em português: a primeira, intitulada José de Arimatéia, em que se revela a origem e o significado do graal45; e a terceira, que é a Demanda propriamente dita, na qual se narram os

feitos dos 150 cavaleiros da corte de Artur que partem em busca do cálice sagrado. não se conhece em nossa língua a segunda parte, em que se relatam as profecias

42 Joaquim garcia de guilhade. Cantiga de Escárnio. 43 d. Afonso lopes. Cantiga de Maldizer.

44 A lenda da rainha Santa isabel, que separa dois irmãos em desavença, lembra a lenda bretã de belin

e brene; o simbolismo da fidelidade amorosa poderia associar-se à gesta amorosa de tristão e isolda, bem conhecidos dos trovadores portugueses dos séculos xiii e xiV; o culto delicado da honra da mulher será retomado por camões com o episódio dos doze de inglaterra; e até mesmo a crença messiânica dos lusitanos pelo regresso ou ressurreição do rei d. Sebastião, desaparecido durante uma batalha contra os mouros nas cruzadas, possui traços afins com a ansiosa fé dos bretões pela volta do rei Artur, o seu libertador. Ver, a respeito, lApA, op. cit., p. 242.

45 o “graal”, como se sabe, seria o cálice santo em que o soldado romano José de Arimatéia teria

depositado o sangue de Jesus, após lavar-lhe as feridas da crucificação. A taça possuiria poderes excepcionais, brindando felicidade e vida eterna a quem a possuísse.



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do mago merlin, um preâmbulo dos sucessos maravilhosos que ocorrerão ao final do ciclo. mesmo assim, a existência dessa tradução ajuda-nos a compreender a intenção religiosa da obra, que nos revela uma completa “inversão de valores” em relação à moral cortês que inspira as cantigas de amor. conforme observou o crítico José António Saraiva, enquanto na lírica se exalta o amor como “o caminho para a felicidade e a perfeição moral”, na Demanda todo amor é reprimido e julgado pecaminoso, admitindo-se somente a virgindade como um atributo perfeito: até mesmo o antigo herói, lançarote do lago, modelo de cavaleiros e amantes, vê-se eclipsado por seu filho, galaaz, que é réplica fiel do pai, porém “não conheceu nunca mulher”.46

A imensa popularidade do romance pode ser confirmada ainda hoje pela sua sobrevivência no imaginário popular do nordeste, cujos poetas de cordel escreveram inúmeras variantes das aventuras de Artur e seus cavaleiros. Ali, onde o brasil é mais ibérico, o espírito aguerrido do sertanejo acolhe com simpatia a lenda bretã e por vezes a reveste de ingredientes messiânicos, os mesmos que se manifestam no sebastianismo confesso de alguns episódios de resistência popular (lembremos apenas a guerrilha de canudos e a fé obstinada de Antônio conselheiro e sua gente). os mesmos elementos, aliás, de que se valerá mestre Ariano Suassuna para compor o seu Romance da pedra do reino (1970), obra que, no plano da ficção, condensa as várias pesquisas realizadas em busca de uma identidade de raízes populares e eruditas da arte nordestina.

A literatura medieval: traços relevantes

Os itens destacados abaixo são apenas alguns aspectos marcantes de um período complexo e contraditório, em que a mentalidade cristã e a laica, o mundo feudal e o burguês coexistem em franca turbulência: