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Apesar de o amor platônico ser um amor à distância, amor por algo inatingível na medida em que possuí-lo seria o fim da própria transcendência que dá sentido ao ímpeto filosoficamente erótico que a seu objeto nos impele, fica muito claro que isto não tem nada a ver com a paixão mais ou menos secreta que não se encontra meios para satisfazer. A diferença não está apenas no objeto, na natureza de sua beleza e do bem que proporciona, nem tampouco apenas no caráter “intelectual” da atitude propriamente platônica, mas na natureza do próprio

amor que reconhecemos em um caso e em outro. A paixão

tímida ou a paixão por alguma outra razão e em qualquer sentido destinada a não ser correspondida, indiscriminada- mente chamadas de “amor platônico”, no sentido mais banal de “amor à distância”, passam por mecanismos psicológicos e determinações existenciais completamente diferentes. Não sendo este o momento apropriado para discuti-los, fato ime- diatamente importante é que, buscando a essência do amor, o que para Platão significa buscar a natureza do ímpeto de união ao inteligível e, em sentido mais estrito, à sabedoria, no fim das contas, o que ele encontra é apenas a essência do

eros filosófico, ou, melhor dizendo, e mais interessante até, a

natureza erótica – i.e. impetuosamente desejante – do filosofar, a essência da amizade (afiliação) ao saber e, ouso entender, da amizade em geral. Digo “apenas” porque não é isto o que este livro se propõe a buscar, mas algo que considero existencialmente

maior, algo cuja essência se encontra mais no fundo. De todo

modo, não se pode deixar passar sem menção as consequências da proposta platônica sobre tudo ou quase tudo que se disse a respeito do amor na Filosofia ocidental, contra ou a favor de sua “existência” efetiva, para usar a classificação de Schoepflin. É determinante desta história que, no lugar de uma ontologia que investigasse a essência daquele amor humano que estamos buscando aqui, Platão elaborara uma delicada ontologia do

desejo, fatalmente porque eros e philia, bem como a storge, ou

amor pelos consanguíneos, eram as experiências mais cruciais que lhe interessavam, sendo para elas que encontramos as melhores respostas, diga-se de passagem.

Essa ontologia do desejo, fundamentalmente dualista, é fácil de se compreender bem desde que se tome cuidado com simplificações grosseiras do platonismo e mais ainda do Cristianismo. De início, se considera as diferentes naturezas de corpo e alma e, por conseguinte, do que respectivamente os afeta. Enquanto o corpo compartilha da natureza de tudo que é mortal, a alma compartilha da natureza de tudo que é imortal, consistindo no que há de divino em nós. Nesses termos se estabelece o que é baixo e o que é elevado, o vulgar e o nobre, o que é vício e o que é virtude, a sexualidade de um lado e a castidade do outro. Desse modo, temos uma contrariedade genérica entre o que se pode chamar “amor subjetivo”, pessoal, individualizado, que produz a geração corpórea, e o que se pode chamar “amor objetivo”, impessoal, que produz a ascese espiritual, sendo todo dito “ascetismo” a prática que visa a este último efeito. Como foi visto, Platão formaliza uma série de interdições ao amor sobre as quais se funda, nas palavras de Freud (2012, p. 48), a dicotomia entre o “amor genital [que] conduz à formação de novas famílias” e o amor “inibido na meta” que conduz a “amizades”. Freud, então, constata:

A civilização atual dá a entender que só quer permitir relações sexuais baseadas na união indissolúvel entre um homem e uma mulher, que não lhe agrada a sexualidade como fonte

de prazer autônoma e que está disposta a tolerá-la somente como fonte, até agora insubstituível, de multiplicação dos seres humanos (FREUD, 2012, p. 50).

Na medida em que o amor subjetivo, como anacronica- mente o denomino, consiste em uma paixão da alma movida por algo determinado que afeta os sentidos do corpo, como as belas

aparências, os bens que tem em vista são meramente relativos

e passageiros como o vigor juvenil, estando em conformidade com a natureza do corpo material que é seu intermediário e veículo de realização. Como tal realização não pode ser plena e definitiva, ao prazer sucede a dor da ausência que se pretende curar por meio de um novo prazer e assim por diante, de modo que toda imortalidade possível se restringe à possibilidade de perpetuação em outro, no filho – por isto, o único bom fruto da árvore do prazer. Ao contrário, o amor objetivo – leia-se comum a todos, o bem comum – se mostra perfeito na medida em que tem em vista o universal, o eterno, o divino, ou seja, o que absolutamente é: o melhor, o maior, o mais belo. Somente este bem pode ser tido como permanente, inalienável, de maneira que, ao invés de inquietação, produz a saciada paz interior. Defendo desde já que este horror do efêmero, talvez suscitado pela própria ânsia de eternidade inerente ao prazer, é elemento crucial no processo de purificação do amor, o que significa: é o próprio desejo de prazer e felicidade que busca destruir a si mesmo. No §280 das “Opiniões e sentenças diversas”, que compõe o segundo volume de Humano, demasiado humano, diz Nietzsche: “Todo grande amor traz consigo o cruel pensamento de matar o objeto do amor, para subtraí-lo de uma vez por todas ao sacrílego jogo da mudança: pois o amor tem mais receio da mudança que do aniquilamento” (NIETZSCHE, 2012, p. 25) – aqui, instaurado o niilismo, o que se quer matar é o próprio desejo humano.

Neste sentido, escreve Clemente de Alexandria, conforme citado por Boehner e Gilson (2008, p. 47), no começo do século III em suas Stromata: “Por isso já não deseja coisa alguma, pois já possui, na medida do possível, tudo quanto é digno de ser

desejado. [...] Também não tende apaixonadamente a asseme- lhar-se ao belo, pois já participa da beleza pelo amor”. Diz ainda: “Ser gnóstico ou perfeito, portanto, significa estar livre de toda agitação da alma. Pois o conhecimento”, isto é, a gnose ou apreensão imediata do divino, “produz o domínio de si próprio, e este, fixando-se numa disposição ou estado durável, tem por efeito a apatia, e não a simples moderação das paixões” ensinada tradicionalmente pelos gregos pagãos. Os apetites só devem ter lugar naquilo em que forem necessários ao impedimento da dissolução, uma vez que o cristão encontra na caridade sua total satisfação e tem a paixão substituída pelo amor e pela sabedoria, elos da comunhão com Deus que propiciam um estado de felicidade íntima.

Perfeição significa, no rigor do termo, completude, o que se perfaz e atinge o seu maximum; imperfeição, por sua vez, sig- nifica que falta um acabamento, tratando-se, portanto, de uma carência. É essa carência, que é uma falta essencial, como um vazio interior, um lugar desocupado em nossa intimidade mais profunda que se pretende preencher com bens exteriores, mas o efetivo preenchimento só pode se dar se o que ocupa aquele espaço no mundo interior for algo permanente, igualmente espiritual. Por isso mesmo se passará a pensar, especialmente por obra do Cristianismo, que não apenas a propriedade do bem e da beleza, mas o próprio amor, que se torna ele mesmo um bem, são possíveis apenas, em sua pureza, ao próprio Deus. Digo “especialmente” porque, sob este ponto de vista, o amor não é mais, em si, um desejo, é excesso do inesgotável, abun- dância, o poder de dar sem de nada precisar, e mais, de dar tudo o que tem sem nada perder; não é mais vontade de posse, pois tudo possui eterna e infinitamente o Todo-Poderoso; o “preenchimento” está em um lugar que jamais estivera vazio. A partir desse modelo, cunha-se a noção cristã de desinteresse, ao lado da proposta já encontrada em Platão de que o verda- deiro amor não tem em vista a obtenção de vantagens para si. Resta ao verdadeiro amante humano, em sua pobreza natural,

essencial, predeterminada, apenas imitar o amor divino que, na condição de virtude dadivosa, é traduzido como ágape, ou

caritas. Assim se consolida o imperativo de amar o que se deve

amar, o que envolve a moralidade e, por conseguinte, a doutrina do livre-arbítrio, pois apenas aquele que é livre para escolher pode assumir um dever. Enquanto isso, a casta geração na alma que caracteriza o amor filosófico platônico, cujos filhos viriam à luz por uma maiêutica socrática – o parto das ideais –, no Cristianismo, corresponde à pregação evangélica. A Boa Nova busca ouvintes capazes de reconhecer em si mesmos a verdade eterna sobre o Cristo.

No entanto, semelhanças e influências à parte, vê-se com clareza que há uma mudança essencial entre o amor platônico propriamente dito e o amor evangélico. Como exemplo disso, se pode mencionar o exílio do desejo em geral, que passa a ter a pai- xão do corpo como sua única dimensão, enquanto que a vontade de posse dos bens divinos dá lugar à exigência do abandonar- se a Deus mediante a negação da vontade de querer, ou seja, mediante o querer não desejar. A alma passa a ser a instância deliberativa ordenadora e unificadora, o juiz que arbitra sobre o conflito de vontades de que fala Agostinho nas Confissões (Parte I, Livro VIII, cap. 5, §11; cap. 9, §21; cap. 10, §23-24). Até mesmo querer não desejar se torna um empecilho à luz de doutrinas como a budista: todo querer deve ser suprimido. Como diz mestre Eckhart (2006, p. 288) em seu sermão 52: “Enquanto o homem tiver [em si] a vontade de realizar a amantíssima vontade de Deus [...] <ainda> tem uma vontade, com a qual quer satisfazer a vontade de Deus [...]. [...] deve estar tão vazio de sua vontade criada como ele era quando <ainda> não era”. Assim, mesmo quando o desejo é permitido e assumido no Cristianismo, sofre da marca da limitação humana, ou seja, é o modo como o homem, em sua pequenez, é capaz de querer a Deus, e então se reformula o imperativo sem rever seu fundo: desejar o que se deve desejar – a mais elevada comunhão, ou casamento, tem Cristo como esposo. Conforme nos dizem Boehner e Gilson (2008, p. 123), a

respeito do que afirma o pseudo-Dionísio (século V/VI) em seu tratado sobre os nomes de Deus, “o amor faz com que as almas se renunciem a si mesmas e se transformem em propriedade do amado. Algo similar também é encontrado em Clemente de Alexandria, para quem, conforme citado por Boehner e Gilson (2008, 46), o homem perfeito sequer “necessita da alegria, pois nunca cede à tristeza, convencido de que tudo lhe reverterá em bem” na medida em que se entrega “inteira e exclusivamente” a Deus. Continua Clemente: “É-lhe estranho também todo zelo apaixonado, pois de nada carece para conformar-se ao bem e ao belo; e com razão não ama a pessoa alguma com este amor comum;

ao contrário, ele ama o Criador através das criaturas” (grifo nosso).

Preenchida a carência natural com o abundante amor eterno de Deus, cessa o movimento erótico de maneira que o próprio amor se reconfigura, ou, a meu ver, se desfigura – neste ponto, diria mais apropriadamente o cristão: se transfigura – o que o amante encontra diante de si, dos olhos de sua alma, como objeto de seu amor, não é mais a criatura, mas o Criador.

A antiga concepção platônica segundo a qual o mundo dos sentidos consiste em mero degrau na escala de conhecimento da verdade parece estar na raiz do que grifei no discurso de Clemente, sendo assim expressa mais tarde por Plotino no §1 do tratado “Sobre o amor”, onde também grifo: “Aqueles que, por meio da beleza terrena, chegam a se relembrar da Beleza arquetípica, amam a daqui debaixo apenas como imagem da

outra” (PLOTINO, 2002, p. 101). De Platão provém, em suma, a

ideia basilar de que o que se ama na beleza terrena não é em verdade ela mesma, mas aquilo de que ela é o pálido reflexo, e tal amor somente haverá de ocupar o primeiro lugar se e enquanto não vislumbramos seu modelo eterno. A possibilidade de reconhecermos a essência naquilo que apenas dela participa é precisamente o que Platão pretendia estabelecer com sua teoria da reminiscência; uma vez atingindo a contemplação da essência, o “degrau” da sensibilidade pode (e deve) ser deixado para trás como a escada de Wittgenstein. Segundo Gregory

Vlastos, citado por Ludueña (2015, p. LXXXV-LXXXVI), o amor de que fala Diotima guarda uma falha incontornável, pois, se o que se ama é apenas o que reflete a Beleza, e esta é sempre imperfeita nos humanos, estes “jamais serão o objeto de nosso amor na unidade e integralidade de sua individualidade”, se não pela “versão abstrata das pessoas que consiste no conjunto de suas melhores qualidades”. Por isso, conclui Vlastos, “fazer de homens e mulheres de carne e osso os objetos finais de nossa afeição seria uma loucura ou, pior, um ato idólatra, desviar para as imagens o que somente é devido a seu original divino”. Como diz Ludueña (2015, p. LXXXVI), a crítica é justa na medida em que “Platão falhou em apresentar uma adequada filosofia do ‘amor’”, embora tenha conseguido, conforme observa Halperin, “criar uma teoria erótica que pudesse dar conta da metafísica do desejo”. Afinal, prossegue Ludueña, “o que Platão denominou

éros não é o que chamamos ‘amor’”.

§15. Mortalidade, sexualidade e a