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Se estamos em busca do amor humano e suas possibilidades

próprias e específicas, convictos de que ele também possui uma

essência, bastando-nos elucidá-la em vez de negá-la em benefício de um amor divino, parece esgotada, junto com a Antiguidade helênica e o mundo antigo, a tematização de compreensões ascéticas ou impessoais do amor. Todavia, acredito que este livro pareceria a muitos, com razão, incompleto e até pouco sincero se deixasse de lado a doutrina sobre o amor que efe- tivamente encerra e dá como que a palavra final sobre tudo o que vimos neste capítulo até o momento: refiro-me à tese de Santo Agostinho, natural do continente africano tal como os últimos filósofos discutidos aqui. Afinal, a doutrina agostiniana do amor é a mais celebrada entre as antigas, sendo nela que vemos mais explicitado o sentido da caritas que ama sem ver a quem. Uma vez que lemos Plotino, certamente fica mais claro como é possível conceber que se possa amar sem ver, muito embora Eros seja, segundo o próprio Plotino, um olhar. Mas, com Agostinho, no alvorecer da Era Medieval, será estabelecido o grande paradigma da concepção cristã do amor, sendo, até hoje, uma referência privilegiada mesmo para filósofos que se autodenominam ateus ou que simplesmente colocam Deus à

parte de suas considerações e alheio a seus pressupostos. Sua influência, portanto, não se estende apenas sobre os teólogos cristãos, mas sobre os pensadores em geral no mundo cristia- nizado, e não apenas em questões estritamente teológicas, mas também ontológicas, éticas e epistemológicas, de Anselmo a Tomás de Aquino, de Descartes a Kant – e mais além.

Para o bispo Agostinho, o amor é a coincidência de sujeito e objeto em uma união. É evidente que tal “definição” nada diz de claro, sobretudo a quem, em matéria de filosofia, não seja mais do que um diletante. Suas influências, contudo, deverão ficar claras o bastante para que não seja mais necessário explici- tá-las a cada vez em meio à originalidade do próprio Agostinho enquanto estabelece sua peculiar versão do ideal neoplatônico de fusão. Primeiramente, deve-se destacar alguns pressupostos. Traço particular do Cristianismo é a centralidade da doutrina do livre-arbítrio, ainda não tematizada de maneira tão específica pelos gregos e romanos e que receberia, em Agostinho, não apenas proeminência, mas aprofundamento em relação a seus antecessores. Outro traço peculiar e definitivo na história da Filosofia como um todo, herdado da mística de então e também aprofundado exemplarmente por Agostinho, é a oposição entre exterioridade e interioridade, que de certo modo toma o lugar daquela outra mais tradicional entre matéria e forma, corpo e alma, da qual, aliás, deriva. A exterioridade ocupa o lugar dos primeiros termos, estando relacionada à multiplicidade dos corpos materiais, enquanto a interioridade correspondente a tudo aquilo que há de mais estritamente espiritual ou inteligível. Pressupostos esses dois traços, somente a partir daí, e eis um dos grandes méritos da obra agostiniana, faz sentido falarmos em subjetividade. Mais do que um dos “Pais da Igreja” ou “Mestre do Ocidente”, como o distinguem Etienne Gilson e Philotheus Boehner, Agostinho é o precursor da Modernidade, sendo amplamente notada sua antecipação do “Cogito, ergo sum” (“Penso, logo existo”) cartesiano como

evidência da própria existência. Cabe mesmo uma paráfrase dizendo que toda a história da filosofia cristã (sob cujo título não se inscreve apenas a filosofia medieval) seja constituída de notas de rodapé à obra de Agostinho. Antes disso, “sujeito” (hypokeimenon) não significava mais do que uma coisa dotada de propriedades, de predicados, de qualidades, expressa pelo termo técnico “substância”, aquilo que jaz no fundo de algo –

substratum, subjectum, substantia. (Quando, portanto, se pretendia

falar de um sujeito no sentido que hoje entendemos, se falava outrora de uma alma ou de uma essência – por exemplo, se falava do que Sócrates era, de sua alma etc.)

Retornando, então, a sua definição do amor, é necessário destacar que “objeto” não é uma coisa qualquer, algo necessaria- mente material, tal como normalmente queremos indicar com esta palavra. Objeto e sujeito são, antes de tudo, os polos da relação de conhecimento: o conhecido e o conhecedor, respectivamente. Para que fique mais clara a diferença com relação aos gregos antigos, o conhecimento agostiniano é uma atividade do sujeito, algo que acontece em nosso interior, não apenas um olhar da alma incorpórea adequado àquilo que, como ela, tem natureza incorpórea. Quando Agostinho diz que o amor é a coincidência de sujeito e objeto, isto significa que a coisa conhecida é a mesma que conhece – incidem juntas no mesmo e como o mesmo –, ou seja, amar é estar unido consigo mesmo no autoconhecimento. Tal experiência tem sua possibilidade teoricamente justificada na medida em que a multiplicidade, sempre implicada na própria oposição sujeito-objeto, é própria à natureza extensa dos corpos, não pertencendo, pois, ao âmbito do espírito, mas à exterioridade. O que, por sua vez, a alma tem imediatamente diante de si é seu próprio conteúdo. Em suma, conhecer a si mesmo é a atividade que produz o amor, que é antes de tudo amor de si, pois é a nós mesmos que cabe primeiramente nos unirmos mediante a recomendação de retração com relação aos bens exteriores, sejam eles corpóreos e materiais, como a beleza física ou o dinheiro, sejam abstratos como o poder, a fama etc., que certamente envolvem apreço pelo

juízo alheio. É interessante observar o que quer dizer Agostinho com essa unidade interna da alma, que significa uma unidade da vontade requerida até mesmo quando ela se divide no desejo de bens autênticos:

Com efeito, pergunto-lhes se é bom deleitar-me com a leitura do Apóstolo, se é bom deleitar-me com o canto moderado de um salmo ou se é bom comentar o Evangelho. A cada uma destas perguntas, responderão: ‘É bom’. Mas se todas nos agra- dassem igualmente e ao mesmo tempo, não atormentariam já estas diversas vontades o coração do homem, enquanto delibera qual delas preferentemente deve abraçar? E todas são boas e lutam mutuamente até que se tome uma resolução para a qual a vontade, que dantes se dividia, se volte inteiramente, já unificada (AGOSTINHO, 1996, p. 219-220).

Os bens exteriores nos solicitam e exigem atenção e isso sempre produz um desvio maior ou menor com relação ao que é superior. É, nesse sentido, sempre perturbador o desejo do bem temporal, que é múltiplo, pois a vontade dividida “quer uma ou outra coisa”, devendo-se, com “vontade plena”, pre- ferir a eternidade segundo a verdade que julga os bens e cujo conhecimento deve produzir o retorno a si.

Isso envolve dois princípios – de que é necessário conhe- cer para amar e de que não pode amar a outro quem não ama a si, o que receberá a seguinte reformulação por Descartes (2000b): não se pode querer o que não se conhece e a primeira coisa que se conhece com certeza (e, portanto, se quer antes de tudo e mais do que tudo) é a si mesmo. De fato, isso pode ser muito elucidativo para algo como um dito “instinto de autoconservação”, mas prossigamos. Amar é um querer, um desejar, estando vinculado à vontade e, desse modo, pensam os cristãos, à liberdade de arbítrio, na medida em que o objeto do querer é arbitrado à luz do que se conhece a seu respeito. Não é à toa que, ao mesmo tempo, se deve conhecer para crer (e querer atingir aquilo em que se crê) e crer para (querendo aquilo em que se crê, estar apto a) conhecer.

É claro, pois, que ninguém ama o desconhecido. Para poder tender a um objeto é necessário que a alma já possua dele uma representação prévia, por vaga ou confusa que seja. Ela forja em seu interior uma figura daquilo que deseja atingir. E o que é mais: ela tem amor a esta imagem, a ponto de sentir- se desiludida se o objeto for disconforme àquela imagem ideal. Portanto, nós amamos o desconhecido no conhecido. Se o objeto corresponder à nossa expectativa não dizemos: agora, enfim, quero te amar, e sim: eu já te amava (BOEHNER; GILSON, 2008, p. 165-166).

Mas não seria isso um egoísmo, ou pelo menos um ego- centrismo: amo-me primeiro (ou amo algo que forjo em mim) para somente então amar mais alguém (que corresponda a mim mesmo ou ao que tenho forjado em mim)? Não deixa de ser este um novo modelo para as concepções de amor, ainda não mencionado até agora, e dos mais populares hoje em dia, preferido das psicanálises de botequim e dos “gurus” de auto- ajuda. Uma versão menos vaga dessa concepção, na verdade tão contemporânea, diz que não se pode dar a outro o que não se tem em si. Mas o que acontece é que, como veremos, a assimilação contemporânea do ensinamento de Agostinho, desviada por formas muito diferentes de se ver o mundo, perde de vista o que realmente está em jogo em suas palavras. Desse modo, se o amor como amor a si mesmo não foi indicado antes como um modelo à parte, é porque, em Agostinho, remete a modelos já surgidos na tradição, enquanto que, na versão contemporânea, terá a ver com concepções modernas sobre a vontade, que Agostinho, de fato, antecipa em certa medida, mas que só “amadureceriam” sob a ideologia individualista surgida mais de um milênio depois. O amor a si, tal como o compreende Agostinho, não tem como objeto próprio esta pessoa que sou, mas o “si mesmo” como imagem de um bem. Entra em cena aqui o caráter fundamentalmente platônico da psicologia e da ontologia agostinianas, o que significa dizer: através do sensível, temos a oportunidade de vislumbrar um indício do inteligível, do universal, causa e fundamento do particular. Nas palavras de Gilson,

[...] amar um bem qualquer é sempre amar sua semelhança à bondade divina e, como é essa semelhança a Deus que faz que esse bem seja um bem, pode-se dizer que aquilo que se ama nele é o Soberano Bem. Em outras palavras, é impossível amar a imagem sem amar ao mesmo tempo o modelo, e se sabemos que essa imagem não passa de uma imagem, tal como sabemos, é impossível amá-la sem preferir o modelo a ela (GILSON, 2006, p. 363).

Por isso, o bem eterno é preferível às ocupações junto aos bens temporais. Assim, o idealismo platônico é o ponto de partida de toda a compreensão agostiniana do Cristianismo. O que se visa, em última instância, no fenômeno, nas coisas particulares, exteriores, sensíveis, é a essência, a causa universal, a realidade inteligível que Agostinho situa na interioridade humana, sendo relevante notar que este dualismo permeia toda sua obra.

Uma observação importante é o problema de sabermos se a imagem amada é uma ilusão que produzimos em nós ou se é dotada de uma realidade autônoma e verdadeira em sentido forte, dotada de positividade ontológica. Deveremos passar a vida esperando a comprovação de que o objeto a que dedicamos nosso amor é conforme ou não à imagem ideal que encontramos em nós? Haverá alguma pista para que possamos reconhecer “clara e distintamente”, com cartesiana certeza, a verdade da imagem e nos possamos livrar, por conseguinte, de todo engano e decepção? Por insatisfatórias que eu considere as respostas de Agostinho, é inegável que em tais questionamentos se encontra a raiz de todos os tormentos dos amores humanos, de maneira que Agostinho enfrenta o problema como ninguém antes dele, segundo uma perspectiva que se poderia qualificar como exis- tencial. Para ele, a solução é relativamente clara, na medida em que, a cada vez diante de uma imagem da beleza, prefere-se o

modelo universal – que é Deus – a seus casos particulares. Se as

respostas não me satisfazem é justamente pelo fato de tenderem à desvalorização do que denomino “amor humano” em nome de outra coisa: o amor divino. Eis o que, a meu ver, desvia a

orientação existencial das perguntas para valores ideais já estabelecidos por Platão, tendo como consequência o reforço do caráter estritamente ético da discussão.

No entanto, o problema do “amor à imagem”, que, do ponto de vista do platonismo agostiniano, é respondido segundo a tese de que esta imagem seja uma primeira intuição (inata) do “objeto verdadeiro”, inscrevendo-se em um processo de ascese da alma, será retomado na Modernidade justamente no sentido de indicar o que, no amor humano corriqueiro, constitui seu caráter ilusório. Dito de outro modo, Rousseau e Schopenhauer, por exemplo, muito mais interessados na dimensão mais estri- tamente humana do amor, darão merecida atenção à diferença entre o que seja amor e o que o amante comumente pensa que ele seja. É nesse sentido que, no quarto livro do Emílio, escreve Rousseau (1992, p. 395): “Ama-se bem mais a imagem que se faz do que o objeto ao qual ela se aplica”. Para ele, ao invés de essa imagem constituir um degrau da bem-aventurada ascese, é, pelo contrário, o princípio de ilusão capaz de pôr tudo a perder, tese que deverá ser tomada bastante a sério em nossas reflexões quando chegar o momento apropriado – afinal, o fim do amor não se deve ao fato de quem se amava haver mudado, mas à descoberta de que o amado não corresponde (ou jamais correspondeu) à imagem que se lhe atribuíra, coisa de que a culpa é toda de quem imagina, não de quem fora objeto de fantasia. Como vimos, não é que o amor verdadeiro seja cego ou produza cegueira, mas sim, que o que veem seus olhos e o que nos mostram não é jamais o que veríamos sem sua mediação, fosse com os olhos do corpo, fosse com os da razão, cujas respectivas “verdades” são de uma natureza completamente outra21. Desse

modo, o que, na ausência de amor, se estima como “descoberta” é, ao invés disso, o maior dos autoenganos: movido pelo mito de

21 V. tb. A nova Heloísa, primeira parte, carta XLVI (ROUSSEAU, 1772, Vol. I, p. 164). E também no mesmo lugar o “Prefácio de Júlia, ou conversa sobre o romance” (p. X-XI).

uma verdade única e objetiva, o pretenso “descobridor” recusa o suposto engano decorrente da ação do véu de beleza, através do qual vira não o que de fato estava fora, mas dentro de si mesmo – a isto se chama “ilusão” –; então, querendo sujeitar

esta verdade àquela, seja a calculada pelo raciocínio, seja a

da evidência sensorial, o que efetivamente descobre, sem o aceitar, é que não ama mais ou que jamais amara verdadeira e

profundamente, culpando o outrora amado por sua própria

traição cometida contra ambos. Acerca de tudo isso, serve como máxima o seguinte: “A inconstância e o amor são incompatíveis: o amante que muda, não muda; ele começa ou termina de amar” (ROUSSEAU, 1772, Vol. III, p. 255)22. Não haveria outra expressão

mais legítima da eternidade do amor, do fato de que pertence a seu próprio “tempo”, e não a “uma vida”; ao contrário, a vida é que lhe pertence, sendo sempre eterno enquanto dura em uma

vida, cujas inconstâncias são alternâncias entre presença e

ausência de amor, de modo que, sem amor, não se vive e não se

é, conforme também deverei aprofundar oportunamente.

Todavia, uma vez que o dualismo metafísico é constitutivo do pensamento agostiniano, o amor ao modelo é naturalizado, o que, no caso do amor a Deus, ou à verdade, não incorreria no risco de uma discrepância entre o objeto e sua imagem.

Se o homem ama naturalmente a Deus mais que a qualquer outra coisa, sobretudo mais que a si mesmo, não é simples- mente porque Deus é o bem universal, sob o qual está contido qualquer outro bem particular, do qual o homem depende em sua existência e que prefere espontaneamente a si como condição necessária da sua própria existência e da sua própria perfeição? (GILSON, 2006, p. 361-362).

Assim a questão é recolocada pela filosofia cristã em geral, tomando como pressuposto a inverificável disposição natural do homem para o cumprimento do primeiro mandamento, o que faz supor que a lei de Deus esteja impressa em nossas almas desde

as origens. Aliás, tal predeterminação já bloqueia o caminho de uma solução existencial para o questionamento, contornando o dilema mais profundo que o suscita pelo estabelecimento de uma causa – neste caso, teológica – para a dor de amar o que não se pode reter.

O amor a si como imagem do amor a Deus é, portanto, algo de intermediário pertinente à nossa condição decaída, mas jamais um fim em si mesmo, o que também significa dizer que o egoísmo não é natural no ser humano, cuja essência seria “ser vivo racional” (zoon logon echon).

Em si, tal como seu criador o quis, o homem amava esponta- neamente a Deus mais do que se amava a si mesmo, e é por isso, aliás, que uma reeducação, uma retificação do amor humano para trazê-lo de volta ao seu objeto natural são coisas possíveis. [...] admitir que o homem se ama naturalmente mais que a Deus seria admitir que uma inclinação possa ser ao mesmo tempo natural e perversa, de acordo com a natureza e contra a natureza; muito mais, seria admitir que, para fazer triunfar em seguida o amor a Deus sobre o amor a si, a graça deve destruir a natureza, em vez de levá-la a seu ponto de perfeição (GILSON, 2006, p. 358-359).

Esta observação final de Gilson, inspirada em passagem da Suma teológica de Tomás de Aquino, é de grande importância na medida em que reabilita a natureza negligenciada pelo neoplatonismo, tornando-a compatível com o mundo da graça. Ou seja, trata-se antes de estabelecer o devido lugar do amor humano em relação ao amor divino, não de suprimir o primeiro por completo, o que, como veremos (§19 infra), implica uma

hierarquia de valores, uma ordem do amor, talvez mais ampla do

que a admitida pela tradição grega.

Tanto por seu cuidado em reformular questões tradi- cionais quanto pela originalidade que faz transparecer nesse trabalho, Agostinho é comparável a Plotino, não sendo, contudo, tão radical em sua recusa das coisas do mundo na medida em que, como Platão, as vê marcadas pela bondade divina, como

imagens ou cópias que reproduzem um modelo. Em toda a obra, conforme se lê no tratado de Agostinho Sobre o livre-arbítrio, o Criador deixara seus “vestígios” como as impressões digitais que o escultor eventualmente deixa na matéria que modela com as mãos, aí se encontrando – conforme citado por Boehner e Gilson (2008, p. 170) – “toda a formosura das criaturas”. Cabe-nos, portanto, amá-las segundo sua proveniência, mas não antes de amarmos a nós mesmos, sendo esta a grande contribuição agostiniana à luz de sua doutrina da subjetividade como “mundo interior”. Eis um pré-requisito para a caridade, que só poderá ser adequadamente conhecida, compreendida e praticada se antes entendermos o que, de fato, é o agostiniano amor de si mesmo, que já sabemos ser produto do autoconhecimento. A pergunta a ser feita antes de qualquer outra é, então: o que se deve conhecer em si mesmo para com ele se unir?

O retorno para Deus mediante a retificação do amor humano é considerado possível “pelo fato de todas as criatu- ras trazerem impressos os vestígios da Santíssima Trindade” (BOEHNER; GILSON, 2008, p. 184), cuja primeira imagem se mani- festa na alma como o trinômio espírito-conhecimento-amor. Isto significa que o conhecimento é o primeiro objeto desejado pela alma, cuja busca pela posse de tal objeto é chamada “amor”. Amor, aqui, faz a mediação entre conhecedor e conhecido em vista de sua união no conhecimento. Por ser a posse de si mesmo (entendida como liberdade) melhor do que a posse de bens exteriores, o melhor a se conhecer não será algo exterior, mas a si mesmo. Do contrário, o amor produziria escravidão em vez de redenção. Nesse sentido, o autoconhecimento é condição para o conhecimento adequado de qualquer outro objeto.

Se este desejo de autopossessão e autofruição abrange o espírito inteiro, o amor identifica-se ao objeto amado; são uma só coisa; são dois apenas na relação de amor. Ora, é impossível que o espírito se ame sem conhecer-se. Assim como o espírito e o amor que ele tem a si mesmo são uma só coisa em si, mas duas no amor, assim o espírito e o conhecimento que ele tem de si são dois apenas na relação do conhecer, mas um

só em si mesmos [conforme diz Agostinho no tratado Sobre a

Trindade]. Estamos pois na presença de três coisas, diferentes

por sua relação, mas idênticas em si mesmas (BOEHNER; GILSON, 2008, p. 185).

Desse modo, o autoconhecimento como reconhecimento da imagem da Santíssima Trindade e sua misteriosa natureza, enquanto vestígio de Deus na criatura, bem como do amor de Deus a si mesmo, produz o reconhecimento desse mesmo Deus em toda criatura. Com isso, já se antecipam as respostas às perguntas formuladas acima: “Deveremos passar a vida esperando a comprovação de que o objeto a que dedicamos nosso amor é conforme ou não à imagem ideal que encontramos