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Por familiar que isto nos seja ou pareça ser – que o mundo é obra do Amor –, ocorrendo não apenas no Cristianismo como em várias narrativas antigas, esse Amor não é um sentimento que move ou inspira o criador, que apenas por metonímia se identifica propriamente com ele, mas o nome do próprio poder hipostasiado que reúne as diversas partes de um todo e as mantém coesas, dando-lhes durabilidade. No entanto, como Cristo, esse amor é um

intermediário. Desse modo, o Amor de Empédocles se encontra como

que acima de todas as demais divindades, e com ele a Discórdia, não como uma inimiga sua, mas como sua alteridade. Estamos ainda longe da ampla personificação de um Mal que faça, do opositor, um adversário, um inimigo (três acepções reunidas na palavra hebraica “satan”, que imprevisto futuro teria no mundo cristão), embora já se tivesse concretizado na mitologia do Zoroastrismo persa, fundado no final do século VII da Era pré-cristã. De todo modo, desde que considerando cuidadosamente o que acabou de ser dito, a Discórdia pode ser traduzida, sim, como Inimizade, uma vez que o Amor a que se refere Empédocles, é Philotés, Amizade. Neste momento, uma vez que estamos percorrendo teses segundo as quais o Amor é apresentado como uma força cosmogônica (construtiva) e cosmológica (reguladora), não como mera per- sonificação de sentimentos humanos ou de virtudes e vícios em geral, deixemos de lado a deificação popular de terceira ou quarta ordem, como é o caso da Concórdia e da Discórdia cultuadas posteriormente pelos romanos2.

Philia, isto é, a Amizade, é o tipo de amor que dispõe

positiva e beneficamente uma pessoa em relação a outra ou a alguma coisa, sendo a Inimizade sua contradição. No entanto, propositadamente digo se tratar de um tipo de amor, não podendo este ser reduzido àquela amizade, assunto de que nos ocuparemos no momento adequado. A propósito, adianto que

2 P. Commelin ([s.d.], p. 317-318) dedica um breve espaço a essas duas divindades alegóricas em sua Mitologia grega e romana.

prefiro traduzir “filosofia” por “amizade da sabedoria” em vez de “amor da sabedoria” ou “amor à sabedoria”, o que, no entanto, deverei aprofundar também posteriormente. Uma observação mais importante a essa altura é que esse caráter “positivo e benéfico” do Amor-Amizade não é ainda, em Empédocles, algo de cunho moral e isso se reconhece mediante o que já foi dito sobre o sentido do “mal” em questão. O lugar de sua doutrina em que isso surge não tem um caráter ético; trata-se de uma cosmologia e de uma cosmogonia, uma tentativa de explicação do modo natural de constituição do mundo desde suas origens. Assim, a positividade e beneficência produzidas pelo Amor consistem na boa constituição e boa ordenação do mundo, dotado de relativa estabilidade e beleza, bem como da capacidade de se autorreproduzir, embora seja claro que, como se espera de qualquer ser humano, o autor certamente estime as potências do amor-amizade na vida social como pilares de toda paz e segu- rança. O amor-amizade é seguramente construtivo em sua pureza, não sendo à toa que Aristóteles o tematizará demoradamente em sua doutrina das virtudes na Ética a Nicômaco, bem como o par “amor e ódio” em sua Retórica das paixões. De todo modo, por inspiradores que sejam os sentimentos humanos, estou convicto de que Empédocles, como outros “pré-socráticos”, tinha em vista também harmonizar a tradição mítica à razão filosófica, bem como à espiritualidade mística. Independente da estrita correção desta tese, que não é certamente o mais importante agora, é fato notório que os papéis de Amor e Discórdia já se encontravam representados na cultura comum e na poesia.

À primeira vista, essas forças primordiais e amorais corres- ponderiam ao par, contudo masculino, Eros e Anteros, referido por Commelin ([s.d.], p. 23), em seu clássico manual. Seria, então, evidente que o par Amor e Discórdia de Empédocles, ecoando Harmonia e Conflito de Heráclito, se nutre do par Eros e Anteros da cosmogonia mítica. Todavia, a coisa está muito longe de ser tão simples, além do que as fontes de Commelin

não foram identificadas e muito provavelmente são posteriores ao período em questão.

Segundo nos transmite Commelin, Eros e Anteros, ou, em uma simplória tradução, Amor e Antiamor, são divindades originárias, as mais primitivas na mitologia grega, surgidas do Caos primordial como as indefinidas e obscuras deidades Noite e Érebo. Não há o que esteja fora da esfera de influência daqueles irmãos, nem mesmo os deuses supremos que os sucederiam na teogonia. O primeiro fator importante a se destacar é que Anteros não pode ser visto como entidade negativa no sentido moral, tal como já foi dito a respeito da Discórdia de Empédocles: sua tensão com Eros é condição para que qualquer coisa exista sem se dissolver em outra por meio de uma força unitiva ilimi- tada e hegemônica, o mesmo valendo no sentido inverso – uma ilimitada e hegemônica força separadora impediria que qualquer coisa no mundo pudesse chegar a existir. Eros e Anteros, Amor e Discórdia são necessariamente complementares, se não inter- dependentes como dois lados de uma mesma moeda – felicidade e infelicidade. Daí já se pode concluir que qualquer obra do Amor só pode se realizar mediante uma tensão, pois é a tensão a estabelecer os limites necessários a qualquer equilíbrio. Por outro lado, isto também quer dizer que o Amor não tem nem pode ter participação alguma na separação, na dissolução ou na rivalidade em razão de sua própria essência unitiva. Em outras palavras, o ímpeto pela fusão é essencialmente autodestrutivo, o que não deixa de ser uma bela lição para nós na medida em que se reconhece aí uma verdade que ultrapassa em muito o âmbito restrito do mundo físico.

O Amor, na Natureza em geral, supõe um embate perpétuo de modo que as coisas particulares não se anulem reciprocamente. Imaginar o Amor como força unitiva hegemônica é uma ingenui- dade perigosa. O mesmo parece se aplicar à vida cotidiana – é o que a Psicanálise estuda sob a rubrica “fantasias de fusão”:

A fusão com o objeto amado impõe dificuldades. As partes do eu que são diferentes do outro podem se sentir presas, sufocadas. [...] o reconhecimento de que o objeto bom, amado, é separado não só faz com que cada um possa respirar, mas também permite uma troca livre de amor e consideração (SEGAL, 2005, p. 51).

Desse modo, o reconhecimento da tensão inerente à união amorosa é algo de fundamental importância para a compreensão lúcida da relação posta pelo Amor em face das fantasias de fusão que desde a Antiguidade povoam e envenenam o imaginário humano, corroendo laços afetivos e obstaculizando a própria vivência do amor. Não é à toa que Jung diz em uma carta, com precisão cirúrgica, que “o casamento é uma realidade brutal, mas ele é o experimentum crucis [experiência crucial] da vida” (JUNG, 2005, p. 58). Mais tarde concluirá, no §331 de O desenvol-

vimento da personalidade, que “nunca um casamento evolui a um

relacionamento individual de forma serena e sem crises”, uma vez que “não há conscientização sem dores” (JUNG, 2005, p. 41). O tema é recorrente nas observações de Jung, que também escreve em anotações do final da década de 1920 e, um quarto de século depois, novamente em O desenvolvimento da personalidade, §326:

Tudo o que vive junto influencia-se mutuamente; surge uma

participation mystique; o mana de um assimila o mana de outro.

Essa identificação, esse apego, é um grande obstáculo para um relacionamento individual. Quando se é idêntico, não há possibilidade de um relacionamento; este só é possível quando há separação. [...] Talvez ambos escondam segredos um do outro; quando os revelam, podem até estabelecer um relacio- namento. Ou talvez nem tenham segredos para transmitir; então não há nada que os proteja dessa participation mystique, eles afundam nesse abismo sem chão da identificação e depois de um tempo descobrem que não acontece mais nada. [...] Para ter consciência de mim mesmo, preciso diferenciar-me do outro. Só quando existe essa diferenciação é que pode existir o relacionamento (JUNG, 2005, p. 45-46/76).

A coisa é simples de compreender quando paramos um instante para refletir: nenhum voo seria possível na ausência

da gravidade que atrai todos os corpos para baixo, efeito que Aristóteles, no contexto da citação em epígrafe, achava que Empédocles deveria atribuir à Discórdia; afinal, se pensarmos bem, a ausência da gravidade não nos permitiria voo algum, nem sequer o facilitaria, pois sem qualquer força capaz de agir sobre a inércia não seríamos capazes sequer de nos dar alguma direção a nós mesmos; do mesmo modo, retirada a pressão atmosférica, nossos corpos literalmente explodiriam e assim por diante. Se “navegar é preciso”, como escreveu Fernando Pessoa, para navegar é preciso haver a permanente tensão entre forças contrárias, de maneira que a viagem da vida é sempre incerta, imprecisa, conforme complementa o poeta. Essas estranhas conjecturas nos deixam claro que vivemos sob a equilibrada tensão de forças opostas que nos passam despercebidas justamente por estarmos, paradoxalmente ou não, em constante equilíbrio. É extremamente curioso como somos insensíveis ao deslocamento de naves e aeronaves; é, pelo contrário, o atrito dos corpos em instantes de desarmonia o que a cada vez nos desperta, a dificuldade nos deixa atentos, nos torna perceptivos, sensíveis ao que nos rodeia, afasta-nos de toda sonolência. Muitos pensam, inclusive, que alguma tensão é também salutar (ou mesmo propiciadora) para a conservação do amor entre os seres humanos, mas sobre isto deveremos nos debruçar em momento mais adequado, razão pela qual não me demorarei em exemplos de tensões desse tipo. Basta, por ora, reconhecer que o amor envolve uma dualidade, tal como diz Nietzsche, um adversário dos ideais de fusão que pretendem subjugar a irredutível singularidade de cada indivíduo:

O que é o amor, senão compreender que um outro viva, aja e sinta de maneira diversa e oposta da nossa, e alegrar-se com isso? Para superar os contrastes mediante a alegria, o amor não pode suprimi-los ou negá-los. – Até o amor a si mesmo tem por pressuposto a irredutível dualidade (ou pluralidade) numa única pessoa (NIETZSCHE, 2012, p. 22-23)3.

3 Extraído de Humano, demasiado humano, Vol. II, Opiniões e sentenças diversas, §75.

Eis o que vimos há pouco ser ecoado na obra de Jung, para quem amor não é unidade indiferenciada, mas relacionamento anímico entre diferentes – a participação mística na unidade espiritual, ou a fantasia de fusão com o amado, como se prefira chamar, é antes um entrave venenoso do que a feliz realização de uma utopia. Contudo, como veremos, fantasias desse tipo puseram a perder muito do que se pensou e ainda se pensa do amor, seja na Filosofia, seja fora dela.

Acontece, porém, que essa leitura do mito cosmogônico de Eros e Anteros, supostamente primitivo, mas não encontrado em Hesíodo, parece marcada por uma espécie de sofisticação ausente no período arcaico. Antes de Heráclito, uma força limi- tadora da força unitiva de Eros não parece ter sido concebida como necessária. Desse modo, antes de entrarmos mais um pouco na labiríntica teia da Mitologia, abramos parênteses para um fato curioso.

Aristóteles (984 b 32-985 a 7) indica Empédocles como o primeiro a reconhecer duas causas para o movimento das coisas, uma que as une (e produz o que Aristóteles estima como bem), outra que as afasta (e produz o que Aristóteles estima como mal), sem qualquer menção a Heráclito (ARISTÓTELES, 2002, p. 20-23). A razão para o silêncio sobre Heráclito parece simples: seguindo Platão, e creio que com correção, Aristóteles não vê no Conflito e na Harmonia duas causas para as mudanças, mas apenas uma, já que são simultâneas. De fato, Empédocles se referia a ciclos aparentemente muito diferenciados – embora sobre isto haja grande controvérsia –, um sob o domínio do Amor-Amizade, outro sob o da Discórdia-Inimizade, que a essa altura já parece mais adequado denominar, respectivamente, Afinidade e Rivalidade. Heráclito, por sua vez, defendia que a todo tempo temos a tensa contrariedade Conflito-Harmonia, como aquela do arco e da lira que juntos produzem o som, assim como aqui temos dia e noite acolá, um como condição mesma para a existência do outro, expressões de um único elemento, o fogo, que tanto acalenta quanto destrói e, enquanto

carboniza, esclarece, produz sombra além dos limites de sua luminosidade. Aliás, esse único elemento é interpretado por Aristóteles como uma causa única, tese comum aos pensadores jônios. Isto parece correto se se considera a Natureza no seu todo, não em suas partes. Que Aristóteles assim distinga Empédocles de Heráclito, embora de algum modo associados, remeteria a Platão (1983, p. 162), que, no diálogo Sofista (242 d-243 a), faz algo parecido, conforme observam Kirk, Raven e Schofield (1994, p. 207, n. 1). Platão, ali, manifesta sua preferência por Heráclito (a voz mais elevada) em detrimento de Empédocles (a voz mais fraca) – afinal, Platão e Aristóteles são defensores da tese de que há um único princípio-primeiro para todas as coisas, ao qual chamam Bem.

Investigando mais a fundo a originalidade de Empédocles destacada por Aristóteles e constatando que Hesíodo não se refere em momento algum de sua obra conhecida ao tal Anteros, chega-se à conclusão de que esse opositor ao Eros cosmogônico foi concebido posteriormente, sendo sua origem uma incógnita. Assim, Empédocles é de fato o primeiro a se apropriar do que foi dito por seus antecessores no sentido de nos dar uma efetiva contribuição filosófica sobre o significado do amor na Natureza, apresentando ainda a necessidade de um opositor que exista separadamente e não se confunda com ele. As consequências nocivas desse isolamento do amor em relação a toda desunião se tornarão claras e determinantes a partir de Platão. Essa observação enseja a antecipação de algo que mais adiante pode- remos constatar. A despeito de sua voz “mais fraca”, a tese de que o amor tem por exclusiva essência unir o que é afim é a contribuição mais decisiva de Empédocles para a posteridade e superará a “voz de Heráclito” no que concerne às doutrinas do amor verdadeiro. Vimos há pouco que um princípio con- traditório, produtor de tensão, é tido, tanto por Empédocles como por Heráclito – por este em especial! –, como condição necessária à economia cósmica. Contudo, apesar dos perigos que isso implica, a filosofia de Platão buscará um meio de eliminar

o princípio desagregador, recusando, não obstante, que essa força contrária seja inerente ao princípio de unidade, como parecia afirmar Heráclito. Melhor dizendo, Platão traduzirá isso em outros termos. O freio, por assim dizer, que impede a fusão universal assume dois aspectos. No âmbito da Natureza, a desagregação é explicada por Platão, no Timeu, pela impossi- bilidade de a matéria ser conformada e fixada definitivamente pela forma que se lhe impõe, ou seja, ela é resistente e tendente a retornar ao seu caráter amorfo original. Do mesmo modo, a alma, embora imortal, não permanece ligada ao corpo senão por um período determinado, após o que, separando-se dele, ele se dissolve. Sendo assim, a alma deve privilegiar unir-se àquilo que lhe é afim, semelhante, imortal – o Bem, por exemplo. Mas como evitar que se misture a ele? Misturar-se a ele significaria tornar-se o divino. De fato, é isso o que defenderão os místicos, mas não ainda Platão. Enquanto a alma não é idêntica ao divino, enquanto ela não é o Bem supremo, ela será, enquanto tiver em si algo bom, desejosa, amante do Bem. Desse modo, um dos pontos cruciais para se entender o discurso de Sócrates-Diotima no Banquete será: não é necessário um princípio contraditório que provoque uma tensão no amor a fim de evitar o colapso de tudo o que existe, tampouco para que seja possível a existência de algo, desde que se compreenda a dessemelhança essencial de corpo e alma, matéria e forma, e o abismo infinito que separa a alma pessoal do bem absoluto, a beleza finita da beleza em si. Em suma, a fusão é refreada não pela ação de uma força natural contraditória daquela que, ligando, produz o bem, mas pelos diferentes graus de bem no cosmos, cuja ausência total corresponde à própria ausência de ser, ao nada.