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Não só de Eros ou Afrodite vive o amor. Assim como Apolo, deus solar da retidão e da ordem, inspira o amor da sabedoria e da beleza, atributos seus, Dioniso, o “novo deus”, e seu culto,

que se tornou tão popular na Antiguidade mais recente junto ao povo grego, tem sua parte no amor e sua característica embriaguez. Dioniso, deus do vinho, vinculado ao delírio e seus perigos, presenteia os homens com o néctar que, segundo os versos de Eurípides na epígrafe, tem o poder de instilar o amor e, assim, pela alegria, apaziguar os sofrimentos: o vinho alegra o coração dos homens, conforme diz uma máxima antiga. São justamente os efeitos dessa alegria que servem de cenário e inspiração para a dramatização que encontramos no Banquete, de Platão – os personagens principais, exceto Sócrates, estão de ressaca, enquanto Alcibíades, chegado tardiamente, ainda bebe muito. Carregados pelo vinho, os personagens de Platão decidem se suceder uns aos outros em elogios ao amor que se mostram cada vez mais elevados, dando-lhe uma voz que, segundo Fedro, ainda não teria sido adequadamente expressa pelos poetas, muito embora, conforme lembra Franco (2008, p. 63), houvesse escritos sobre o amor na época.

Destaco, em primeiro lugar, como curiosidade (e algo mais do que isso), o discurso do cômico Aristófanes, que dá origem à ideia de que o amor se funda na busca por uma metade perdida. O mito, que se tornou muito popular desde o Renascimento mediante a tradução e o comentário publicados por Marsilio Ficino, inspirou a canção “The origin of love”, de Stephen Trask, que, no premiado filme de John Cameron Mitchell, Hedwig and the

angry inch (2001), receberia uma bela animação de Emily Hubley.

Conservador, o Aristófanes de Platão conta que os huma- nos, originalmente felizes, foram divididos ao meio como puni- ção por terem se rebelado contra os deuses. De fato, é uma verdade que os seres humanos, quando felizes, não apenas tendam a negligenciar o que está acima deles como também, muito comumente, se sintam superiores a todo o resto e até mesmo invencíveis. A paixão extremada encoraja a confiança na vitória contra tudo e contra todos. A união com o amado, afinal, não deixa de inspirar aquela arrogante segurança de si, do

mesmo modo que a perda de um traz consigo a desorientadora perda da outra. De acordo com o mito, a separação os tornou infelizes, ansiosos por recuperar a unidade perdida mediante o encontro e a fusão com sua “cara-metade”, tão difícil de procurar e reconhecer em meio a tamanha multidão. Em seu discurso também, diferente dos demais que o precederam, o elogio da pederastia não parece sincero; talvez até carregue um forte cinismo, uma crítica mordaz à cultura e aos valores de seu tempo, especialmente no que diz respeito à elite política.

Não deixa de ser profunda a “psicologia” de Aristófanes, tanto quanto promissor foi seu futuro em nosso imaginário: sempre que pensamos ter encontrado a metade que nos com- pleta, que só pode ser uma, procuramos nos unir a ela, e qual não é nossa decepção ao percebermos que aquela metade não é a “nossa”, que não se encaixa com perfeição, qual não é nosso desespero, por outro lado, se o reconhecimento acontece, mas a união é inviável? Movidos por essa busca ansiosa, imedia- tamente sentimos o desconforto que nos empurra para uma próxima tentativa, e assim ao infinito, consumindo energias e a própria fé no utópico encontro. Sua utopia é a unidade perfeita que tanto nos torna desatentos com relação a todo o resto! Por essa razão, como no episódio bíblico da Torre de Babel, os humanos uma vez dispersos se voltam para si mesmos e seus próprios negócios deixando a divindade em paz, desistindo da empreitada de alcançar os céus.

Ao mesmo tempo em que o discurso de Aristófanes nos explica a irrefreável, insaciável e conturbada sede do desejo, nos ilude com a esperança de sua satisfação, com a ambígua promessa do amor predestinado, “escrito nas estrelas”. Assim é. A cínica ironia paradoxal do quadro por ele pintado dá a entender que a única saída para a ansiedade consiste em sucumbir a cada vez a um desejo sem saída e sem recompensa, sempre às voltas com uma promessa cuja realização parece das mais improváveis. A esperança, que prontamente dá as mãos ao desejo, aprofunda

seu malefício, transforma-o em obstinação – o último dos males contidos na caixa trazida por Pandora só surte efeito na medida em que é conservado no interior, enquanto que, deixado escapar, se produziria a resignação heroica em face da fatalidade. “Zeus quis que os homens, por mais torturados que fossem pelos outros males, não rejeitassem a vida, mas continuassem a se deixar torturar. Para isso lhes deu a esperança: ela é na verdade o pior dos males, pois prolonga o suplício dos homens” (NIETZSCHE, 2006, p. 60, §71). Afinal, a esperança move as preces dos homens, necessárias ao império dos deuses. O tema é retomado por Nietzsche no §23 de O Anticristo:

A poderosa esperança é um estimulante bem maior da vida do que alguma felicidade que realmente ocorra. Os que sofrem têm de ser mantidos por uma esperança que não pode ser contrariada por nenhuma realidade – que não é terminada com sua realização: uma esperança de além. (Justamente por essa capacidade de manter os infelizes à espera é que os gregos consideravam a esperança o mal entre os males, o mal realmente insidioso: ele permaneceu na caixa dos males.) (NIETZSCHE, 2012, p. 46).

Nos versos de Manuel Bandeira (1996, p. 130-131), “Ao nosso ouvido, embaladora,/ A ama de todos os mortais,/ A espe- rança prometedora,/ Segreda coisas irreais.// [...] A vida assim nos afeiçoa,/ Prende. Antes fosse toda fel!/ Que ao se mostrar às vezes boa,/ Ela requinta em ser cruel...”. Assim também se pode ler as palavras dadas por Goethe ao Criador no “Prólogo no Céu” de seu Fausto: “O humano afã tende a afrouxar ligeiro,/ Soçobra em breve em integral repouso;/ Aduzo-lhe por isso o companheiro/ Que como diabo influi e incita, laborioso” (v. 340-3) (GOETHE, 2011, Vol. I, p. 53).

Eis, na verdade, a irremediável infelicidade da vida humana, radicada no esperançoso anseio de uma perfeição cuja existência sequer é comprovada, cuja possibilidade de experimentarmos parece tão remota, muito embora tampouco se possa verificar sua impossibilidade ou inverdade – provavelmente a esperança

tire daí mesmo sua força. Não é, aliás, sem importância que Platão coloque palavras de esperança, citando Píndaro, justamente na boca do velho Céfalo, no primeiro livro da República (331 a), e nos seguintes termos: como o que “governa, mais que tudo, os espíritos vacilantes dos mortais”. Também afirma Nietzsche, mais uma vez, no §38 de Aurora, que “os gregos [...] viam-na como cega e pérfida”, ao invés de “acreditar na esperança como uma virtude” (NIETZSCHE, 2004, p. 37).

O mito filosófico inaugural atribuído a Aristófanes como que antecipa o desafortunado destino dos amores ideais. É como se estivéssemos condenados à prostração diante de alguns bilhões de minúsculas peças quase indistinguíveis de um quebra- cabeça que sequer podemos saber se está completo ou quanto de seu conjunto original se extraviou no irrefreável fluxo do tempo. A população do planeta gira em torno dos sete bilhões, o que significa tantas quantas metades em meio às quais e em qualquer lugar pode estar (ou não!) a nossa única, destinada exclusivamente a nós como nós a ela, especialmente porque tal metade pode ser do mesmo sexo ou não. Por onde começar? Muita gente hoje em dia joga seu perfil na Internet, em várias redes ao mesmo tempo, e fica aguardando... Triste solidão em tempo de multidão...

Só de pensar, isso causa imenso desânimo e a certeza de que, nessa comédia, não há nada de engraçado, sem mencionar que qualquer exigência de adequação a alguém aparece como sintoma de que, ali, não há de se esperar felicidade. O amor como adequação é taxativamente negado. A obstinação nos deixa cegamente egoístas pela crença de que o par perfeito é o único capaz de nos compreender plenamente e de fazer justiça a nosso amor. O amor, portanto, só é possível entre partes de um mesmo todo. No amor, o que se busca a cada vez é o reconhecimento, a identidade, não o outro de si mesmo, mas o si mesmo no outro. Muito comum é desejar encontrar no outro um mero reflexo de si mesmo, poder dizer “eu também” a

tudo que o outro pensa e sente e, em contrapartida, ser por ele antecipado e satisfeito, como se não fosse realmente frustrante não ter nada mais com que se surpreender além da profusão de “coincidências”. Na verdade, o que primeiro excita em tais “coincidências” é precisamente, tornado banal, corriqueiro, finalmente aborrece. A comicidade reside, na verdade, em parte, no grotesco retrato daqueles que caem na devassidão enquanto procuram apenas a si mesmos. Análoga é a crença em “almas gêmeas”, representada de modo bastante perverso no filme Heavenly creatures, de Peter Jackson (1994), baseado em fatos reais, onde vemos não haver limites para o empenho em se preservar uma união dessa natureza. No entanto, trata-se da simples obstinação em ser completado por si mesmo, pois em tal familiaridade é que comumente encontramos a cômoda tranquilidade, não no estranhamento que sempre nos aflige. Não saber o que esperar dos outros nos tortura, como se acaso fôssemos capazes de saber o que esperar de nós mesmos – quem nunca se surpreendeu consigo próprio?

A coisa vai ainda mais longe se nos damos conta de que o tal encaixe das metades dispersas se dá pelo sexo. Eis a natureza da comunhão, lembrando que a deusa Harmonia, cujo nome significa precisamente “encaixe”, é filha de Afrodite... Quanto à felicidade em questão, que seria se não o gozo ininterrupto? Acontece que, em nossa atual condição, o normal é que o prazer seja não apenas finito, mas brevíssimo. Como nos diz Badiou (BADIOU; TRUONG, 2011, p. 28-29.), “a sexualidade, por magnífica que seja, e ela pode sê-lo, termina em uma espécie de vazio”, “razão pela qual ela está sob a lei da repetição: é a cada vez necessário recomeçar. Todos os dias, quando se é jovem!”. Mas “o amor”, prossegue ele, “seria a ideia de que algo se demora nesse vazio, de que os amantes são ligados por outra coisa que não essa ligação que não existe”. Muitas vezes, afinal, o prazer suscita um deleite mais duradouro em que se frui de um longo abraço que termina em profundo sono. Nesse abraço adormecido de plena saciedade, que então parece sem fim, do qual não se

espera despertar jamais – pois, além da felicidade, nada mais se quer –, reconheço o sentido das lindas palavras de Marguerite Yourcenar em seu livro Feux, dedicado a figuras gregas do amor: “Em teus braços, eu só podia morrer”. Eis o máximo que se costuma obter pelo amor sexual, o prazer máximo distendido ao máximo, mas que precisa sempre recomeçar do zero até que se cumpra, por um feliz acaso, a utopia. Não sobreviver ao amor – por conseguinte, ao amado – pode ser nossa única chance!

Chega a ser perturbador tentar imaginar o estado em que nos encontraríamos se nos acontecesse de vivenciar o êxtase contínuo, aquele abraço que jamais se desenlaça, aquele encaixe definitivo, mas essa é a ideia que se pode fazer da tal felicidade a que, à primeira vista, se refere o Aristófanes de Platão – seria o puro delírio dionisíaco, a embriaguez absoluta. Enquanto isso não ocorre, porém, vive-se viciosamente a perseguição dos breves momentos de prazer que, por sua própria brevidade, se convertem nas esparsas moedas do tesouro possível, as quais nos inspiram todo tipo de usura e ganância justamente por seu baixo valor aquisitivo. Há quem procure experimentar um vislumbre da utopia usando das técnicas mais curiosas, que podem incluir desde o uso de drogas e instrumentos vários até estrangulamentos no momento do orgasmo – tudo para intensificá-lo e torná-lo persistente, ou mesmo permanente visto que o desfecho fatal muitas vezes é procurado e se dá de fato. Contudo, o que se obtém não é senão a demora do vazio, não daquela “outra coisa” que eventualmente habita ou pode habitar esse vazio.

É possível que se oculte nesse mito uma crítica à promis- cuidade em sua ânsia por prazer sexual, mas o mito também faz lembrar a singela busca do príncipe por sua Cinderela dispondo apenas de um sapatinho mágico que, criado sob medida para ela, não pode caber senão em um único pé, como uma chave que permite encontrar a única porta que leva à felicidade mesmo que a busquemos em meio à mais profunda escuridão. Fora

os mitos e lendas, a verdade é que muitos concebem o amor verdadeiro como esse perfeito encaixe, essa perfeita corres- pondência pela qual dois se tornam um – trata-se, enfim, de uma variedade da concepção de amor como força unitiva, pela qual dois indivíduos se sentem essencialmente conectados desde uma origem imemorável.

Além disso, há também algo muito importante a se desta- car. Embora reconheçamos mais uma vez o amor designando um ímpeto natural, constitutivo, não se trata mais de um terceiro distinto dos amantes como um intermediário, uma força da natureza personificada, mas, sim, de algo que se produz no homem e que marca sua condição no mundo em virtude dele mesmo, do que ele é ou se tornou: um ser ao qual falta um pedaço. O mito atribuído a Aristófanes é a primeira ocasião em que o amor é algo estritamente humano, designando um tipo muito particu- lar de paixão, muito embora já tenhamos aí a ameaça de sua redução ao desejo sexual, ao erótico tal como é modernamente interpretado. Trata-se de um período da cultura grega em que a “antropologia” ganha centralidade em relação à “física”, em que o homem se torna protagonista e ocupa o lugar antes exclusivo da Natureza na Filosofia e nas artes. Outra característica nova é que a aspiração pela metade perdida é a ânsia pela beleza perdida, ama-se a harmonia original por uma nostalgia da perfeição de que se fora privado e de cuja privação resultou nossa condição carente, fraca, necessitada, sofredora. Sexo e desejo são meio e sintoma de algo mais profundo, como se vê na parte final do discurso atribuído a Aristófanes. Tal beleza, harmonia e perfeição são platonicamente expressas pelo formato original dos corpos – esféricos – e por seu movimento – circular. Com a arrogância, veio a decadência; com esta, a paixão. E assim se abre, por sua vez, o precedente para a recusa das paixões e para a desvalorização do amor humano pelo humano, bem como para a busca de uma beleza mais digna de ser amada, uma beleza divina acessível, contudo, apenas a nós, humanos.